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3. A força da literatura

3.4 Ética e leitura

Para sermos capazes de concretizar plenamente este modo específico de funcionamento do texto literário que opera como um chamamento exigente à nossa capacidade de atenção e determina uma alteração dos modos de percep - ção e entendimento sedimentados pelo hábito, precisamos de assumir uma atitude arriscada de abertura ao «outro», ou seja, o texto literário concreto que temos perante os olhos, o qual como que desperta em nós um sentido de respon sabilidade. Esta responsabilidade ética pelo outro estaria no cerne de toda a actividade criativa: a que impele à produção duma obra inventiva e que, por sua vez, determina a sua leitura literária.

Como já vimos, no caso da obra de arte literária, o texto usa os materiais culturalmente disponíveis de tal modo que abre possibilidades que ultrapassam esses materiais e não são por eles totalmente explicáveis. É por isso que só serei capaz de acolher uma obra como outra se me tiver preparado para tal e, contudo, o evento para o qual me preparei só poderá ocorrer se extravasar todos os meus preparativos e expectativas e me apanhar de surpresa. Isto, claro está, no pressuposto de a obra se me apresentar como inventiva. Ora, a resposta responsável (“responsible reading”, nas palavras de Attridge) a uma obra desta natureza será uma resposta que procure concretizar e fazer jus a essa alteridade, a essa diferença. Tal leitura não pode visar só apropriar-se da obra e interpretá- -la, isto é, trazê-la para o círculo do que é familiar, ainda que tal gesto seja, como vimos, inevitável e inerente ao acto de ler; ela terá também de registar a sua resistência e irredutibilidade. A alteridade, quando a ela atendemos, impede de facto a total apropriação e domesticação. Nenhuma interpretação a esgota.

Ao contrário da resposta a estímulos físicos, a resposta a estímulos artísticos (ou inventivos) e a leitura literária, em particular, envolvem responsabilidade, porque o outro só pode constituir-se como outro se eu for capaz de o acolher, arriscando nele confiar e o acarinhar:

La lecture, en effet, semble la synthèse de la perception et de la création; elle pose à la fois l’essentialité du sujet et celle de l’objet; l’objet est essentiel parce qu’il est rigoureusement transcendant, qu’il impose ses structures propres et qu’on doit l’attendre et l’observer; mais le sujet est essentiel aussi parce qu’il est requis non seulement pour dévoiler (c’est- -à-dire faire qu’il y ait un objet) mais encore pour ce que cet objet soit absolument (c’est-à-dire pour le produire). En un mot, le lecteur a conscience de dévoiler et de créer à la fois, de dévoiler en créant, de créer par dévoilement. (Sartre 1975: 55)

A responsabilidade ética pelo outro, pressuposta pelo acto de ler, bem mais exigente e fundamental do que a responsabilidade ética para com o outro, que por ela também se pressupõe,51é uma forma de hospitalidade e generosidade

em que me implico totalmente, envolvendo todas as minhas faculdades cogni - tivas – as emoções e o meu corpo físico são também chamados a intervir. Daí o risco implícito em qualquer acto deste tipo: afirmo e aceito algo em que me comprometo por inteiro, antes de saber o que está realmente em causa (Attridge 2004: 119). É assim que me constituo voluntariamente enquanto leitor de litera - tura, permitindo que, pelo meu acto generoso de atenção e hospitalidade, a obra ganhe existência: «ainsi la lecture est-elle un exercice de générosité» (Sartre 1975: 64). Respondendo responsavelmente constituo o outro e, ao fazê-lo, recons tituo-me enquanto actor no processo.52A exigência ética distintiva colo -

cada pela obra literária não se torna identificável apenas por via das suas personagens, ou da sua intriga, ou das relações humanas que retrata e dos julgamentos que veicula, da descrição de vícios e virtudes e da dificuldade de os destrinçar. Tudo isto se pode descobrir noutros tipos de discurso, tais como o relato histórico ou a reportagem jornalística. Não está em causa a capacidade da literatura em propiciar instrução ou educação moral, visto que também essa é uma propriedade que partilha com outros tipos de discurso (qualquer cate cis - mo, por exemplo).53O que distingue a experiência ética colocada pela literatura

reside justamente naquilo que singulariza esta última: o seu encenar dos proces - sos fundamentais pelos quais a linguagem opera sobre nós e sobre o mundo. A obra literária exige do leitor uma leitura que faça justiça à elaboração formal desses processos, uma leitura no sentido duma performance, um pôr-em-acção e um pôr-em-jogo implicando tanto acolhimento passivo como empe nhamento activo, acolhimento do outro e invenção do outro. Porque o outro que a literatura cria é simultaneamente desafiador e vulnerável – o seu poder está na

ISABEL FERNANDES

LITERATURA: A (IN)DISCIPLINA NA INTERSECÇÃO DAS ARTES E DOS SABERES 45

sua fragilidade: “[l]iterature for all the force which it is capable of exercising can achieve nothing without readers – responsible readers”. (Attridge 2004: 131)54

Contribuir para ajudar a formar “responsible readers”, no sentido em que a actividade destes pressupõe o tipo de exigências que atrás esbocei, socorrendo- -me da lição de Attridge, vai um pouco ao arrepio do que tem sido a tendência dominante nas abordagens literárias que, sobretudo na última década e meia, valorizaram as realidades representadas nas obras, tomando-as não na sua específica dimensão de artefactos literários inventivos, mas tão-só como invólucros descartáveis portadores de essências desencarnadas ao serviço de causas políticas.

4. A Introdução ao Estudo da Literatura como prática

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