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2.4 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA …

2.4.2 A ação como saber independente da compreensão …

Os experimentos realizados por Piaget e colaborados (1977) mostraram que as crianças costumam obter êxito em uma série de tarefas sem saber explicar a forma como conseguem estes feitos. Ou seja, no início o sujeito apenas sabe fazer,

sem saber explicar como o fez. Os dados coletados nos estudos de Piaget, portanto apontam para sucessos da ação que, na maior parte das experiências realizadas (e os casos que fogem a esta observação serão analisados na sequência), antecedem a tomada de consciência da própria ação. Isto parece indicar que este savoir faire (saber fazer) consiste em um saber autônomo, de eficácia considerável, mesmo não se constituindo em um conhecimento consciente (PIAGET, 1977, p. 207).

O que confere à ação esta competência de saber autônomo, independente da representação e da compreensão? Segundo Piaget (PIAGET, 1977, p. 207), a forma como a ação se desenvolve na concretização dos objetivos propostos parece oferecer resposta a essa pergunta. Os sujeitos mais jovens iniciam uma atividade proposta simplesmente com a utilização de esquemas, como que em uma ação puramente exploratória e tateante. Até este ponto os esquemas não são assimilados entre si, eles são apenas empregados. Há poucas acomodações, que são também momentâneas quando ocorrem. A ação até este momento é ainda incapaz de atingir os fins propostos. Ela começa o seu progresso através do emprego de coordenações que se dão, inicialmente, por assimilações recíprocas dos esquemas.

Estas assimilações recíprocas são as responsáveis por associar os diversos esquemas empregados na fase anterior sem muita sistematização. Graças a esta coordenação parece possível defender a existência de um savoir faire capaz de resolver problemas simples.

A evoluçãoda ação continua, a partir deste ponto, com a criação de formas cada vez mais independentes de seus conteúdos, ou seja, com a produção de relações, inferências e outros produtos de uma inteligência ainda não sujeita a reversibilidade e permanência, mas cada vez mais desvinculada dos dados concretos (PIAGET, 1977, p. 207). Outro fator que confere à ação a competência de saber autônomo, que evolui independentemente da conceituação, é a existência de uma determinação biológica, que orienta o “fazer” no sentido de uma satisfação de necessidades. Assim sendo, e para que a ação ofereça ao organismo o que ele necessita, o fazer já está sujeito a uma auto-organização antes mesmo da interferência do compreender (PIAGET, 1978, p. 177), e graças a esta espécie de forma a que está sujeita, a ação pura é extremamente eficiente. Logo, é possível

que se aceite a ideia de que a prática musical em conjunto da criança seja, no início, desprovida de uma compreensão da simultaneidade e da igualdade de durações.

Ela consiste em um saber independente de qualquer conceituação (compreensão).

As antecipações a que as ações estão sujeitas também são explicáveis dentro dos domínios da inteligência sensório-motora. Elas (as antecipações) são fruto de esquemas já assimilados e que sofreram uma modificação em função de adaptações ao objeto, de modo que se torna possível aplicar em situações análogas aquilo que foi realizado anteriormente (PIAGET, 1978, p. 178), sem que a cada nova experiência os esquemas tenham de ser reconstruídos. Ao contrário, eles são apenas modificados e reaplicados.

As coordenações de que se falou anteriormente não se restringem a coordenações de esquemas, origem da assimilação recíproca. Elas se focam também sobre as abstrações refletidoras dos mecanismos utilizados na ação. Em outras palavras, existe uma coordenação das ações interiorizadas pelo processo de abstração. Graças à existência desta coordenação o plano da ação pode se servir dos dados daí oriundos, sem que se possa falar ainda de uma tomada de consciência. O que ocorre de fato é que a ação toma posse dos frutos da coordenação da abstração refletidora de maneira não consciente. Esta espécie de fonte de informações, formada pela coordenação, confere à ação do sujeito competência suficiente para que ele atinja os fins propostos, sem mesmo tomar consciência dos meios empregados para isto (PIAGET, 1977, p. 199).

Agora que já se analisou a forma como a tomada de consciência se processa, por que ela ocorre? Segundo Piaget (1977, p. 199), ela se desencadeia porque as regulações automáticas, realizadas através de correções parciais no momento da ação, se tornam insuficientes, sendo necessária a busca de meios mais eficientes através de regulações mais ativas e de escolhas deliberadas, que pressupõem a existência de uma consciência. À medida em que ocorre a constatação de um fracasso na obtenção do objetivo almejado, o sujeito se engaja na busca pelas falhas que ocorreram na aplicação do esquema ao objeto, ocorrendo assim uma passagem da periferia P para o centro C (para as ações do sujeito) (PIAGET, 1977, p. 199). Conforme a consciência toma posse dos meios empregados, ela se torna

apta a corrigir ou a substituir esquemas através de uma regulação ativa.

Uma tomada de consciência, entretanto, também pode se desencadear sem que haja nenhum fracasso na obtenção dos resultados, ocorrendo, neste caso como resultado do processo de assimilação: quando um objetivo é estipulado em face de um objeto, este objeto já é assimilado a um esquema prático que o sujeito tem em sua posse. Objetivos e resultados, já no princípio do processo assimilador, permitem o surgimento de um nível de consciência. Graças a isto, o esquema também se tornará um conceito (lembrando que o processo de tomada de consciência está intimamente ligado ao surgimento da conceituação). A assimilação, que reuniu ação e objeto, se tornará a partir de então representativa, permitindo futuras evocações. À medidaem que situações diversas forem comparadas entre si, o sujeito se colocará perguntas a respeito da diversidade das resoluções, dos sucessos ou insucessos obtidos, etc. Para solucionar estas questões o processo assimilador será utilizado como um instrumento de compreensão que, em função do seu caráter representativo, permitirá sucessivas idas e vindas entre os dados do objeto e os da ação, fazendo com que ocorra uma tomada de consciência dos meios empregados (PIAGET, 1977, p. 199 – 200). Em síntese, a tomada de consciência pode ser provocada porque as regulações automáticas para que ocorra o sucesso da ação se tornam insuficientes, ou porque pode ser compreendida como um resultado do processo assimilador. No caso desta pesquisa, como se verá na discussão dos dados, a tomada de consciência da simultaneidade e da igualdade de durações ocorre como resultado do processo assimilador.

Piaget e seus colaboradores observaram em seus experimentos também que

“a partir de um certo nível há influência resultante da conceituação sobre a ação”

(PIAGET, 1978, p. 173). Parece que, a partir de um certo ponto do desenvolvimento e principalmente com relação a alguns determinados tipos de ações a serem desempenhadas, o objetivo só é alcançado quando o pensamento, e não mais apenas a inteligência prática, começa a intervir na regulação dos meios, ou seja, apenas o uso da ação é insuficiente, sendo necessária a intervenção do conceito.

Esta descoberta, entretanto, não contradiz as considerações anteriores a respeito da existência de uma autonomia da ação sobre a conceituação e de um

processo que se orienta no sentido da periferia (da compreensão dos objetivos a serem atingidos) para o centro (para a compreensão dos meios empregados).

Através das experiências realizadas poder-se-ia deduzir que a lógica do indivíduo e as explicações causais construídas sobre ela - ou seja, o ponto C e C' do processo periferia-centro – são os instrumentos responsáveis pelos sucessos da ação. No entanto, não se pode ignorar que todos os instrumentos operacionais se constroem sobre a ação. (PIAGET, 1978, p. 173).

O que ocorre, nos casos de sucesso da ação possível apenas através da intervenção da conceituação, é que os dois processos, um que busca o sucesso da ação e o outro que se orienta no sentido da conceituação, se constroem quase que simultaneamente e de modo solidário (PIAGET, 1978, p. 174). Há, portanto, nestes casos, uma tomada de consciência dos meios que é praticamente concomitante à tomada de consciência dos objetivos. A construção da conceituação é quase concomitante ao alcance do sucesso na ação, porque é esta que permite a construção daquela, não havendo conceito que não se origine de uma relação com os objetos (uma ação), em alguma medida. A solidariedade destas construções prova, novamente, que o processo de tomada de consciência se orienta no sentido periferia-centro e jamais ao contrário. A autonomia da ação continua igualmente mantida uma vez que, como se viu, ela não está subjugada à conceituação, mas se constrói em paralelo com esta. Piaget afirma que a conceituação adquire sua autonomia quando se torna independente da ação concreta (PIAGET, 1978, p. 175), mas jamais se pode esquecer que sua existência depende da ação.

A tomada de consciência da simultaneidade e da igualdade de durações em música não parece ser desse segundo tipo, ou seja, desenvolvida em conjunto com o sucesso prático. Essa tomada de consciência parece ser daquele tipo que se manifesta após um período de sucesso na ação, desacompanhado de compreensão. Embora a conceituação possa interferir na ação, melhorando-a e tornando a simultaneidade e a igualdade de durações mais precisas. Esse problema será retomado na conclusão deste trabalho, entretanto.

Se a ação e a conceituação se constroem de modo solidário, e se aquela permite o surgimento desta, resta-nos, diz Piaget (1978, p. 174), saber de que modo

a conceituação favorece a execução de ações adequadas à resolução dos problemas impostos.

O que a conceituação fornece à ação é um reforço de suas capacidades de previsão e a possibilidade, em presença de uma dada situação, de dar um plano de utilização imediata. Em outras palavras, essa contribuição consiste em um aumento do poder de coordenação, já imanente à ação, e isso sem que o indivíduo estabeleça fronteiras entre a sua prática (“o que fazer para conseguir?”) e o sistema de seus conceitos (“por que as coisas se passam dessa maneira?”). (PIAGET, 1978, p. 174).

A tomada de consciência dos processos, adquirida nesse nível, ainda não corresponde ao nível máximo de consciência que o sujeito pode atingir. Mesmo os indivíduos habilitados a utilizar sua estrutura operacional para agir se mantém sem consciência, durante longos períodos, das estruturas cognitivas que os levam à solução dos problemas práticos. A reflexão sobre estas estruturas só se estabelece depois de um nível de abstração bem mais elevado que o encontrado nesses casos de sucessos práticos concomitantes com a construção dos conceitos. Também nesses casos, a conceituação fornece à ação planos conceituais que são restritos e provisórios, sendo necessários ajustes durante a execução. Esta forma de conceituação ainda não é completa, e são necessárias algumas evoluções da estrutura para que o conceito se torne definitivamente autônomo, permitindo que a prática se apoie apenas sobre teorias (PIAGET, 1978, p. 175).

Ao longo da análise de dados, que seguirá em breve, o processo da tomada de consciência aqui exposto será retomado, e novas conexões serão feitas entre ele e o desenvolvimento da compreensão da simultaneidade e da igualdade de durações a partir da ação (ou, da execução musical em conjunto).

2.5 ABORDAGENS COGNITIVAS SOBRE TEMPO E TEMAS AFINS, E