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2.2. A dicção como abordagem

2.2.2 A abordagem articulatória

Como vimos no capítulo 1, os conhecimentos mais amplos sobre o parâme- tro articulatório da voz (os processos de ressonância) têm servido de base para uma diversa e crescente linha de abordagens orientadas à técnica vocal e à pedagogia do canto. Um desenvolvimento similar se observa também em relação aos estudos sobre a voz cantada no âmbito da dicção. É neste âmbito que estabelecemos as propostas da ‘abordagem articulatória’.

Sabemos que os aspectos que caracterizam os fonemas enquanto mínimas unidades sonoras são múltiplos, simultâneos e por isso eles são dificilmente dissoci- áveis no processo orgânico da articulação, seja nos contextos da fala ou do canto.

Ao falarmos anteriormente sobre a classificação dos fonemas na fala, to- mamos como base um modelo de representação que compreende esta unidade acústica/articulatória da voz como o resultado da sobreposição de feixe de traços distintivos. Entretanto, este modelo assume como pressuposto que é o fonema, e não o traço, que corresponde à menor unidade a ser considerada para representar os segmentos de uma sílaba, uma palavra ou uma frase.

As mesmas razões metodológicas parecem justificar as diversas propostas que tratam das questões da articulação fonética aplicada ao canto. No presente tra- balho, partimos também deste pressuposto.

Conceito

Em linhas gerais, propomos a ‘abordagem articulatória’ como um recurso pa- ra o tratamento dos processos fonético-articulatórios do canto nos contextos especí- ficos e interativos de duas perspectivas que se complementam nas aplicações meló- dicas da dicção53:

• A perspectiva do ‘ponto’, relacionada à articulação dos fonemas, enquanto mínimos componentes verbais/musicais, nos diversos contextos articulatórios da sílaba/nota.

• A perspectiva da ‘linha’, relacionada à organização dos processos articulatórios das sílabas/notas nos contextos articulatórios de ordem verbal/musical da melodia.

Mais especificamente, trata-se de um conjunto de conceitos e procedimen- tos estabelecidos com base em referências teóricos da fonética-fonologia e orienta- dos às práticas interpretativas e pedagógicas do canto. No contexto das práticas in- terpretativas, pode referenciar procedimentos de análise e de execução interpretati- va. No contexto da pedagogia do canto, oferece recursos para o desenvolvimento das relações autônomas e interativas entre o parâmetro vocal da articulação e os demais parâmetros da produção vocal (respiração e fonação).

A abordagem articulatória parte dos dados sobre as características dos fo- nemas, compreendidos enquanto elementos articulatórios mínimos de um dado con- tínuo melódico que podem estar relacionados simultaneamente a dois sistemas componentes deste contínuo: verbal e musical. Em seguida considera a maneira como estes elementos mínimos se organizam, na prática do canto, ao formarem hie- rarquicamente dois conjuntos de estruturas mais amplas tais como as ‘sílabas’ e ‘frases verbais’ (no contexto verbal), relativamente correspondentes às ‘notas’ e ‘fra- ses musicais’ (no contexto musical).

As unidades das sílabas/notas e das frases verbais/musicais correspondem a duas perspectivas complementares que representam os respectivos processos considerados como fundamentais na abordagem articulatória: a perspectiva do ‘pon- to’ e a perspectiva da ‘linha’.

Na perspectiva do ponto, o foco é o tratamento da articulação dos fonemas. O controle fonético-articulatório pode influenciar positivamente a articulação das sí- labas (em um âmbito mais amplo) e a articulação dos traços que caracterizam os próprios fonemas (em um âmbito mais estrito) 54. Na perspectiva da linha, o foco é o tratamento da articulação das sílabas. Nesse caso, o controle fonético-articulatório

54 Por exemplo, as ocorrências de um traço de nasalidade (tal como em [õ] comparado a [o]), de vo- zeamento (tal em [b] comparado a [p]), de continuidade (tal como em [a] comparado a [b]), entre tan- tas outras.

pode influenciar positivamente a articulação das frases (em um âmbito mais amplo) e a articulação das sílabas (em um âmbito mais estrito).

Desse modo, a abordagem articulatória pode contribuir para que o cantor (independentemente das variações contextuais dos modelos de canto e dos repertó- rios aos quais se aplique), tenha a base de suas possibilidades expressivas relacio- nada:

• À boa formação do ‘ponto’ e, consequentemente, da ‘linha’ melódica;

• Às diversas possibilidades de interação entre estas duas perspectivas articulatórias e suas relações com outras categorias de componentes verbais/musicais da melodia que se estabeleçam entre as dimensões do ponto e da linha55.

Veremos mais adiante que, teoricamente, a abordagem articulatória se es- tabelece a partir da representação da unidade correspondente ao ‘ponto’, que no contexto da ‘linha’ melódica funciona como uma espécie de sílaba verbal/musical. Esta ‘sílaba melódica’ é compreendida pelo acoplamento de um modelo específico de ‘sílaba verbal’ (referenciado pelas teorias fonológicas da sílaba) a um modelo de representação do ‘envelope dinâmico’ da nota musical (referenciado pelos estudos de acústica musical). A consideração do envelope dinâmico de uma determinada no- ta musical nos permite estabelecer um modelo de representação da articulação des- ta nota com base das fases de variação da sua amplitude sonora em função do seu tempo total de duração.

Chamamos de ‘envelope silábico’ o modelo teórico resultante do acoplamen- to dos modelos da sílaba verbal e do envelope dinâmico da nota musical. Em linhas gerais, podemos descrever o envelope silábico como uma unidade formada por qua- tro camadas de subcomponentes organizados hierarquicamente, sendo que a ca- mada mais extensa e superior corresponde ao mesmo tempo à delimitação do âmbi- to total do envelope dinâmico de uma determinada nota musical e de uma determi- nada sílaba verbal justaposta a esta nota.

A partir da consideração dos elementos contidos nestas camadas sobrepos- tas o cantor poderá levantar dados sobre as características articulatórias da síla-

ba/nota, fazer escolhas a partir dos dados levantados e organizar o processos articu- latórios a serem realizados no canto. Sem maiores aprofundamentos podemos dizer que estas escolhas resultam na formação de uma única linha interna, delineada por entre as camadas do envelope silábico com base em algumas proposições rígidas (tal como a não desconsideração da energia articulatória do ataque silábico em rela- ção à da vogal que ocupa a posição de núcleo da sílaba) e outras mais brandas (tal como a consideração de um grau de energia articulatória relativamente maior ou menor para os fonemas que ocupam a posição da coda silábica)56.

Nos capítulos seguintes apresentaremos com mais detalhes estas informa- ções relacionadas à abordagem articulatória, incluindo-se os referenciais teóricos e modelos considerados no estabelecimento da proposta e algumas de suas possibili- dades aplicativas.

56 Os termos relacionados aos componentes silábicos (ataque, núcleo, coda) serão melhor detalha- dos adiante.

CAPÍTULO 3

A ABORDAGEM ARTICULATÓRIA NO ENTORNO DAS SÍLABAS

Neste capítulo trataremos das referências teóricas centrais do presente tra- balho, estabelecidas a partir das considerações da fonologia prosódica sobre a ‘síla- ba’ enquanto mínimo componente sobre o qual se aplicam as regras relacionadas às organizações e transformações sonoras que ocorrem no processo de articulação de um enunciado verbal. Estas considerações têm como referência os principais mode- los de representação da estrutura interna da sílaba, no âmbito dos estudos fonológi- cos, com destaque para a referência da teoria métrica que tomaremos como base para as nossas propostas.

As referências da fonologia prosódica, conforme apresentadas por NESPOR e VOGEL (1986), serão estabelecidas como fundamento para a consideração de duas perspectivas complementares na formalização de aspectos que consideramos relevantes no contexto da prática do canto e, mais especificamente, em relação ao que chamamos de abordagem articulatória, no âmbito da dicção. Tratam-se da ‘perspectiva do ponto’ e da ‘perspectiva da linha’, respectivamente relacionadas aos processos fonoarticulatórios da sílaba e da frase, em um contexto de justaposições de componentes verbais e musicais.

Veremos a seguir que a sílaba, enquanto unidade referencial para a aborda- gem articulatória na prática do canto, ocupa um lugar de interface em relação às du- as perspectivas mencionadas. Na perspectiva do ponto, que pode ser dimensionada no âmbito ‘da sílaba para dentro’, ela referencia a prática do canto no que diz respei- to às escolhas e o controle dos parâmetros fonoarticulatórios relacionados ao ‘cará- ter paradigmático’57 da dicção, incluindo-se as suas implicações verbais e musicais. Na perspectiva da linha, dimensionada no âmbito ‘da sílaba para fora’, ela referencia a prática do canto no que diz respeito às escolhas e o controle dos parâmetros fono- articulatórios relacionados ao ‘caráter sintagmático’, frasal ou prosódico da dicção,

57 Este ‘caráter paradigmático’ se refere diretamente à boa formação de cada processo articulatório, de cada fonema, até o agrupamento de fonemas para a boa formação de uma unidade silábica. Refe- re-se também à articulação da nota musical e todo o desenvolvimento do seu ‘envelope dinâmico’. Finalmente, refere-se à boa formação da ‘sílaba melódica’.

incluindo-se as suas implicações verbais e musicais. Este lugar de interface corres- ponde ao espaço no qual o cantor, independentemente do modelo técnico e estético ao qual se aplique, relacione as dinâmicas articulatórias no entorno da sílaba para a realização da fascinante trama de pontos e linhas que caracteriza o canto.

Também veremos, a partir das duas perspectivas apresentadas, que o re- corte metodológico proposto por este trabalho nos leva a tratar com mais detalhes das questões relacionadas à sílaba e seu âmbito interno58, na perspectiva do ponto. Esta perspectiva inclui as considerações sobre a natureza e organização dos sub- componentes silábicos, com o objetivo de estabelecer uma série de propostas sobre como estas informações podem contribuir com o cantor nas questões que dizem respeito à dicção e suas diversas implicações relacionadas à técnica vocal, à análise musical e à execução interpretativa59.

Estas propostas, essencialmente orientadas à prática musical, são estabele- cidas a partir da consideração de um modelo de representação da estrutura silábica que parte do modelo não-linear adotado pela fonologia prosódica e busca, na refe- rência das propostas apresentadas por algumas outras importantes teorias fonológi- cas da sílaba, os elementos necessários à definição de um modelo híbrido de repre- sentação que propomos como referência para o estudo da abordagem articulatória aplicada à prática do canto.

A proposição deste modelo de representação silábica leva também em con- sideração as correlações que podem ser estabelecidas entre a ‘sílaba verbal’ e a

58 Isso não quer dizer que as que as questões relacionadas ao âmbito externo da sílaba sejam menos relevantes como fontes de informações e recursos para os propósitos deste trabalho. Mas sim que, neste trabalho, as questões relacionadas à perspectiva da linha serão abordadas aqui de maneira complementar ou referencial, uma vez que já tivemos a oportunidade de tratar de alguns de seus principais fundamentos e implicações em ‘Análise rítmico-prosódica como ferramenta para a perfor- mance da canção’ (MATTOS, 2006).

59 No que diz respeito à prática do canto, é importante observar a distinção que se pode fazer aqui entre as ideias de ‘execução interpretativa’ e ‘performance’. Consideramos a ideia de ‘execução inter- pretativa’ como a realização prática do canto aplicada à execução de uma determinada obra musical, com base no resultado de um conjunto de processos autorais do cantor em relação à interpretação desta obra, tais como os processos de leitura e análise, de escolha entre as possibilidades levanta- das, da busca pelo refinamento técnico na realização das escolhas, da avaliação sobre a sua eficiên- cia expressiva, entre outros. Quanto à ideia de ‘performance’ – que pode ser considerada como um dos processos que caracterizam a execução interpretativa – consideramos que ela esteja mais espe- cificamente relacionada à questão do desempenho do cantor em relação aos meios pelos quais ele objetivamente ‘dá forma’ ao seu canto, durante o ato de cantar. Por sua vez, esta noção de desem- penho que caracteriza aqui a nossa ideia de performance pode ser considerada sob a perspectiva geral da realização prática do canto ou sob a perspectiva de parâmetros específicos, tais como os parâmetros da técnica vocal, da relação verbo-música ou da expressão musical. Ocorre que alguns destes parâmetros podem ser considerados fora da dinâmica que vincula a nossa ideia de perfor- mance à temporalidade do ato de cantar, como os demais processos que relacionamos à ideia de execução interpretativa. Daí a confusão que pode se estabelecer em relação às duas ideias.

‘nota musical’ – esta última, compreendida como o componente musical de caráter igualmente pontual que forma a estrutura linear da melodia –, para a formação da estrutura que chamamos de ‘sílaba melódica’. Consideramos a sílaba melódica, cuja estrutura interna é formada essencialmente pelos processos de coarticulação entre os subcomponentes da ‘sílaba verbal’ e da ‘nota musical’60, como o elemento que define o domínio do menor componente ou do componente de base no qual se esta- belece a justaposição dos componentes verbais e musicais da melodia. Propomos que estes processos sejam compreendidos no contexto da delimitação e das dinâ- micas de um ‘envelope silábico’ a ser considerado pelo cantor na realização dos processos articulatórios internos e/ou externos à sílaba melódica, processos estes que caracterizam simultaneamente a sua conformação pontual e a sua pré- disposição à linearidade no fluxo rítmico-prosódico da melodia.

Finalmente, serão apresentados alguns exemplos com a finalidade de de- monstrar a aplicação do modelo da sílaba melódica de maneira mais especificamen- te orientada ao tratamento dos processos fonético-articulatórios na perspectiva do ponto. Com estas ilustrações, veremos de que maneira a aplicação das propostas relacionadas acima podem contribuir para a melhor compreensão sobre as questões relacionadas à dicção no contexto das práticas interpretativas do canto.