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2.3 Fundamentos para proposição da Teoria da Prática de Pierre Bourdieu para

2.3.3 A aplicação da concepção de Pierre Bourdieu para compreensão de práticas de

Nos Estados Unidos, Mustafa Emirbayer, professor da sociologia da Wisconsin University, publicou com Victoria Johnson, professora de teoria das organizações, o artigo

Bourdieu and organizational analysis, na revista Theory and Society, em 2008, com o

24Bourdieu (1996a, p.165) comenta “[...] que Mauss descreveu a troca de dádivas como sequencia descontínua

de atos generosos; Lévi-Strauss definiu-a como uma estrutura de reciprocidade que transcende os atos de troca,

nos quais a dádiva remete à retribuição.” Bourdieu acrescenta que, além da retribuição necessária para que o ato

seja considerado dádiva gratuita e generosa, há que existir um intervalo de tempo entre a dádiva e retribuição. Se for muito pequeno e do mesmo valor, implicará o sentido de devolução, o que representa recusa da dádiva, se for muito longo, ou de valor muito menor, parecerá ingratidão.

objetivo de analisar o potencial da agenda da sociologia relacional, em especial, a estrutura do pensamento Bourdieu para a teoria organizacional

Os autores defendem que a teoria organizacional ainda não explorou o potencial e as possibilidades empíricas da contribuição de Pierre Bourdieu, tida como a mais importante da sociologia relacional. Consideram que dois de seus conceitos, campo e capital, são de uso corrente na literatura, mas que o terceiro conceito, habitus, permanece quase desconhecido na administração. Afirmam que a apropriação dos conceitos de campo e de capital dissociada do conceito do habitus não faz sentido, pois se trata de conceitos integrados que formam uma tríade conceitual formulada para operar em conjunto.

Como exemplo, citam o conceito de campo organizacional, de particular valor para estudiosos neoinstitucionalistas, que consideram que a estrutura organizacional e as práticas da cada organização são influenciadas pelas demais organizações integrantes do mesmos setor. Os autores consideram que Paul DiMaggio, para criar o conceito de campo organizacional, fez uma leitura instrumental do conceito de campo de Bourdieu, expresso no trabalho A distinção (BOURDIEU, 2007). Assinalam, porém, que os pesquisadores que utilizam o conceito, em todo o mundo, não sabem que tal conceito faz parte da tríade conceitual de Pierre Bourdieu e que não opera na sua potencialidade quando desconectado dos demais conceitos da teoria da prática.

Ainda nos Estados Unidos, Clinton Free e Norman Macintosh, dois professores da Queen's University, utilizaram a teoria prática de Pierre Bourdieu para analisar os acontecimentos que conduziram à falência a empresa norte-americana Enron, em meio a um dos maiores escândalos financeiros, dentre aqueles de repercussão internacional. O escândalo envolveu fraudes contábeis e fiscais, contribuindo para a falência da empresa Arthur Andersen, que respondia pela auditoria da Enron Corporation. As investigações demonstraram que houve manipulação de balanços financeiros, com auxílio de bancos, escritórios de advocacia e de contadores dentre outros.

O objetivo do estudo foi demonstrar, conforme defendido por Emirbayer, que os conceitos de Pierre Bourdieu, quando tomados em seu conjunto, podem ser adequados para pesquisas na área de auditoria e de sistemas de controle.

Foi identificado na pesquisa que, anteriormente ao escândalo, o habitus da Enron havia sido alterado, devido à mudança na direção. Passa de ambiente de negócio familiar para um ambiente caracterizado por frieza, arrogância, engano e orgulho. A mudança corroeu os procedimentos de controle interno, praticamente anulando sua eficácia. A Enron se

transformou em mercado de sobrevivência do mais forte, em que cada funcionário era instigado a competir e a fazer negócios arriscados nos mercados.

Depois da falência da empresa, vários executivos se declararam culpados de uso de informações privilegiadas e de esquemas para esconderem dívidas e aumentar receitas e lucros. No estudo, foi localizada a perda de referência para discernimento entre o certo e o errado por parte desses executivos, com o avanço da cultura mercenária na empresa.

O estudo revela o poder que a mudança do habitus de uma organização pode ter sobre as estruturas cognitivas dos agentes que integravam a empresa. Executivos, cujas vidas profissionais foram construídas observando normas e comportamentos éticos, praticaram atos de fraude e de corrupção, que marcaram definitivamente suas vidas. Esse estudo coloca em xeque a noção de agente honesto ou desonesto como determinante para a decisão sobre participação em fraudes e corrupção.

Também no setor público, estudos utilizando a teoria da prática têm favorecido novas compreensões sobre problemas que têm desafiado a ciência tradicional, tais como mudança no desempenho das instituições no setor público e no comportamento dos agentes, inclusive envolvendo combate à corrupção.

Andrew Goddard, professor de contabilidade da Universidade de Southampton, investigou a relação entre contabilidade, governança e accountability em governos locais no Reino Unido, utilizando a estrutura conceitual de Pierre Bourdieu (GODDARD, 2005). Seu problema de pesquisa era descobrir se o habitus direcionador das práticas de governos locais que passaram por reformas administrativas era derivado de referências de accountability (nas dimensões da responsabilidade política, gerencial, profissional e pessoal) ou de governança (nas dimensões do desempenho e da conformidade). O autor detectou que o habitus predominante era derivado de compromisso com accountability e que os administradores consideravam que, para o alcance desse compromisso, eram mais relevantes as ferramentas de controle orçamentário e financeiro do que práticas de NPM, de controles contábeis e de auditoria.

Na Austrália, Janet Chan, em meados dos anos 90, utilizou os conceitos de campo, capital e habitus para realizar um estudo longitudinal que investigou os efeitos de reformas ocorridas na polícia australiana, entre os anos 80 e 90. Demonstrou que os agentes exercem papel ativo em processos de mudança organizacional, desautorizando as abordagens unidirecionais e deterministas que privilegiam estrutura e cultura nas organizações (CHAN, 2004). Concluiu que, na presença de cultura estável e homogênea, a maioria dos recrutas

mostrou, com o tempo, a tendência de ajustar seus habitus com o novo ambiente e suas ações passaram a se orientar inconscientemente pelo habitus preponderante no espaço social em que se encontram. Entretanto, se o habitus organizacional se caracteriza pela fragmentação ou se está havendo processos de mudança, eles continuam mantendo seus habitus e permanecem atentos e conscientes de suas ações.

Karp (2007), em sua tese de doutorado, se baseou nos trabalhos de Chan (2004), para estudar por que a reforma dos anos 90 na New South Wales Police Service não havia alterado os comportamentos dos policiais da corporação. Estudando as decorrências da instituição da comissão nacional que investigou denúncias de corrupção da polícia australiana, em 1994, a autora demonstrou que, embora comissões de inquérito e processos administrativos para esclarecimento de práticas irregulares afetem a vida e o trabalho dos agentes diretamente envolvidos nos escândalos, eles são ineficazes para promover mudança das práticas da corporação como um todo.

A autora utilizou a concepção teórica de Pierre Bourdieu para analisar a complexa relação entre policiais que realizam trabalhos internos nas redes organizacionais e os que fazem trabalhos externos, com as comunidades. A noção de que a natureza do jogo objetivo do campo imprime disposições subjetivas para os agentes fornece pistas sobre possíveis fontes de dilemas morais, crenças pessoais e comportamento pessoal. A conclusão é que existem elementos relevantes que definem a estrutura de comando e de controle da gestão do campo policial, com consequências para as condutas dos integrantes do campo, que as investigações de comissões disciplinares, as ações de agências de controle oficiais (auditorias externas) ou o próprio controle interno da polícia não acessam.

Segundo a pesquisadora, a estrutura de comando e controle da polícia prioriza a fiscalização sobre indivíduos e a definição legal das condutas, sendo direcionada pelas estratégias da camaradagem, do paternalismo e do nepotismo. Essas práticas de gestão refletem valores localizados em relação específica entre a estrutura/agente, que resultam na aceitação da ocorrência de pequenos atos ilegais, comportamentos pouco profissionais, corrupção por causas nobres (como aliciar bandidos para obter informações estratégicas).

Seus estudos indicam a existência de um ciclo perverso no combate à corrupção. Seus estudos, utilizando a estrutura de Pierre de Bourdieu, indicam que as ações de combate à corrupção, como investigações e inquéritos fazem parte do mesmo jogo em que se instala a corrupção. Esse ciclo integra cinco elementos: 1. práticas da polícia, que incorpora a lógica da corrupção em alguns processos; 2. denúncia (sopro no apito de algum integrante do jogo que

tenha sido prejudicado ou algum dado que vem a público de forma não programada); 3. apurações e inquéritos; 4. explicações oficiais para própria polícia; e 5. explicações oficiais para a comunidade.

O tipo de trabalho da polícia, caracterizado por sigilo e isolamento, favorece a internalização de comportamentos e valores que não estão alinhados com a regra oficial das estruturas e dos agentes que são do conhecimento de todos. Sua análise permitiu concluir que o próprio trabalho favorece o habitus da transgressão, indicando causas para um problema identificado em estudos estatísticos em todo o mundo.

Os policiais de rua, diretamente em contato com os investigados, podem ser tentados a lançar mão de meios ilegais para resolver seus problemas. Essas práticas integram o habitus da transgressão. Como as chefias conhecem os processos de trabalho e as formas de transgressão utilizadas para realizar o trabalho cotidiano na rua, há aceitação tácita da transgressão. Tudo continua sob controle da corporação, até a ocorrência de denúncias (sopro no apito, no jargão da área), que advém de intrigas entre aliados, o que faz com que um resolva denunciar os demais por se achar prejudicado, ou por denúncias de pessoas afetadas na comunidade ou de jornais com perfil investigativo.

Todo escândalo é seguido de declarações oficiais sobre a moral e ética dos dirigentes da corporação. São abertos inquéritos, realizadas auditorias e processos de penalizações individuais. Respostas oficiais são dadas pelo próprio corpo policial para tranquilizar a corporação, que pode se ressentir com a aplicação de penas. Respostas também são dadas para a comunidade, para restaurar a confiança na corporação. No entanto, fora os expurgos dos diretamente envolvidos, tudo continua como antes. A natureza do jogo, que incorpora ações não previstas pelas regras oficiais, garante a continuidade das práticas antigas a despeito das tentativas de reformas.

Dessa forma, a autora conclui que o objetivo principal dos mecanismos de controle e dos inquéritos é reconstruir o sentimento de estabilidade da comunidade e preservar o poder simbólico da polícia. Os resultados indicam que as crises continuarão a acontecer, mesmo após os escândalos e suas consequências, que certamente provocarão novas investigações, em comportamento cíclico. A saída que a autora sugere é a modernização da gestão, com mudança na forma de enfrentamento do problema, priorizando não o inquérito, mas a alteração dos processos de gestão da polícia.

Esses estudos apontam para a eficácia da estrutura conceitual e metodológica da teoria da prática para evidenciar razões que, a despeito de ficarem submersas aos fatos e aos

discursos dos agentes, são relevantes para a compreensão das realidades de interesse. Nos casos da Enron nos EUA, das ferramentas da NPM em governos locais na Inglaterra, da mudança do comportamento de recrutas na polícia australiana e da detecção do ciclo que integra corrupção e mecanismos de investigação da corrupção na Austrália, a aplicação da teoria favoreceu a compreensão de razões para práticas sociais que escapam à vontade dos agentes e às determinações das estruturas formais e informais que caracterizam os campos específicos.