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A Auto-Substituição de Deus

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 72-90)

Focalizamos o problema do perdão na gravidade do pecado e na majestade de Deus, isto é, nas realidades de quem somos e de quem ele é. Como pode o santo amor de Deus confrontar-se com a pecaminosa falta de santidade do homem? O que aconteceria se houvesse uma colisão entre eles? O problema não está fora de Deus; está dentro de seu próprio ser. Visto que Deus jamais se contradiz, ele deve ser ele mesmo e deve "satisfazer-se" a si mesmo, agindo em coerência absoluta com a perfeição do seu caráter. "É o reconhecimento desta necessidade divina, ou o fracasso em reconhecê-la", escreveu James Denney, "que em última instância divide os intérpretes do Cristianismo em

evangélicos e não evangélicos, aqueles que são fiéis ao Novo Testamento e aqueles que

não o podem digerir."1

Além do mais, como já vimos, essa necessidade interior não significa que Deus deve ser fiel a apenas uma parte de si mesmo (quer à sua lei de honra, quer à lei da justiça), nem que deve exprimir um de seus atributos (quer o amor, quer a santidade) a expensas de outro; antes, que deve ser completa e invariavelmente ele mesmo na plenitude de seu ser moral. T. J. Crawford acentuou esse ponto: "É erro total. . . supor que Deus age em certa época de acordo com um de seus atributos, e em outra de acordo com outro. Ele age em conformidade com todos eles em todos os tempos. . . Quanto à justiça divina e à misericórdia divina em particular, o fim de sua (de Cristo) obra não foi harmonizá-las, como se estivessem em oposição uma à outra, mas em conjunto manifestá-las e glorificá-las na redenção dos pecadores. É um caso de ação combinada, e não contra-

ação, da parte desses atributos, que foi demonstrada na cruz."2

Como, pois, podia Deus expressar simultaneamente sua santidade no juízo e seu amor no perdão? Somente providenciando um substituto divino pelo pecador, de modo que o substituto recebesse o juízo, e o pecador o perdão. É claro que nós, pecadores, ainda

temos de sofrer algumas das conseqüências pessoais, psicológicas e sociais de nossos

pecados, mas a conseqüência penal, a penalidade merecida da alienação de Deus foi levada por Outro em nosso lugar, de modo que não necessitássemos suportá-la. Não encontrei uma afirmação mais cuidadosa da natureza substitutiva da expiação do que a feita por Charles E. B. Cranfield em seu comentário sobre Romanos. Embora ela resuma a conclusão em cuja direção se encaminha este capítulo, pode ser útil citá-la perto do começo para que conheçamos o rumo que estamos tomando. A citação faz parte do comentário do Dr. Cranfield sobre Romanos 3:25. Escreve ele:

Deus, porque em sua misericórdia desejou perdoar aos homens pecadores, e, sendo verdadeiramente misericordioso, desejou perdoá-los justamente, isto é, sem acoitar o pecado, teve o propósito de dirigir contra seu próprio ser, na pessoa de seu Filho, o peso total dessa ira justa a qual eles mereciam.

As questões vitais que agora nos deve tomar a atenção são as seguintes: quem é esse "substituto"? E como podemos entender e justificar a noção de ter ele substituído a si mesmo por nós? A melhor maneira de tratarmos destas perguntas é através de um exame dos sacrifícios do Antigo Testamento, visto que eram a preparação planejada por Deus para o sacrifício de Cristo.

O sacrifício no Antigo Testamento

"A interpretação da morte de Cristo como um sacrifício está implantada em todos os

ensinos importantes do Novo Testamento."3 Faz-se menção a ele em muitos lugares. Às

vezes a referência é direta, como na afirmação de Paulo de que Cristo "se entregou a si mesmo por nós, como oferta (prosphora) e sacrifício (thysia) a Deus" (Efésios 5:2). Em outras passagens a alusão é menos direta, simplesmente que Cristo "se entregou a si mesmo" (e.g. Gálatas 1:4) ou "a si mesmo se ofereceu" (e.g. Hebreus 9:14) por nós, mas o contexto ainda é o do sistema sacrificial do Antigo Testamento. Em particular, a observação de que ele morreu "no tocante ao pecado" ou "pelos pecados" (e.g. Romanos 8:3, e 1 Pedro 3:18) toma emprestada a tradução grega de "oferta pelo pecado" (peri

hamartias). Deveras, a carta aos Hebreus retrata o sacrifício de Jesus Cristo como tendo

cumprido perfeitamente as "sombras" do Antigo Testamento. Pois ele se sacrificou a si mesmo (não a animais), de uma vez por todas (não repetidamente), e assim assegurou- nos não apenas a purificação cerimonial e a restauração à comunidade da aliança, mas também a purificação de nossa consciência e a restauração à comunhão com o Deus vivo.

Entretanto, o que significavam os sacrifícios do Antigo Testamento? Possuíam eles significado substitutivo? Na resposta a essas perguntas não devemos cometer o erro de voltar-nos primeiro aos estudos antropológicos. É certo que sacerdotes, altares e

sacrifícios parecem ter sido um fenômeno universal no mundo antigo, mas não temos o direito de supor a priori que os sacrifícios dos hebreus e os dos pagãos possuíam significado idêntico. Podem ter tipo uma origem comum na revelação de Deus a nossos ancestrais mais primitivos. Mas seria mais coerente com um reconhecimento do status especial da Escritura dizer que os israelitas (apesar de seus deslizes) preservaram a substância do propósito original de Deus, ao passo que os sacrifícios pagãos eram corrupções degeneradas dele.

No Antigo Testamento os sacrifícios eram oferecidos em diversas e variadas circunstâncias. Por exemplo, eram associados à penitência e à celebração, à necessidade nacional, à renovação da aliança, à festividade familiar e à consagração pessoal. Essa diversidade adverte-nos contra a imposição sobre eles de uma significação simples ou única. Entretanto, parece realmente ter havido duas noções básicas e complementares do sacrifício na revelação divina no Antigo Testamento, sendo cada uma associada com ofertas particulares. A primeira expressava o sentido em que os seres humanos pertencem a Deus por direito, e a segunda seu sentido de alienação de Deus por causa do seu pecado e culpa. Características da primeira eram a oferta "pacífica" ou de "comunhão" freqüentemente associada com as ações de graça (Levítico 7:12), a oferta queimada (na qual tudo era consumido) e o ritual das três festas anuais da colheita (Êxodo 23:14-17). Características da segunda eram a oferta pelo pecado e a pela culpa, na qual se reconhecia claramente a necessidade de expiação. Seria incorreto fazer distinção entre esses dois tipos de sacrifícios como se representassem respectivamente a aproximação do homem a Deus (oferecendo dádivas, muito menos subornos com o fim de assegurar o seu favor) e a aproximação de Deus ao homem (oferecendo perdão e reconciliação). Pois ambos os tipos de sacrifício eram essencialmente reconhecimentos da graça de Deus e expressões de dependência dela. Seria melhor distingui-los, como o fez B. B. Warfield, vendo no primeiro o "homem concebido meramente como criatura" e no último "as necessidades do homem como pecador". Ou, a fim de elaborar a mesma distinção, no primeiro o ser humano é "uma criatura que pede proteção", e no segundo

"um pecador que anseia pelo perdão".4 Assim, pois, por um lado os sacrifícios revelam

Deus como o Criador, de quem depende a vida física do homem, e por outro como simultaneamente o Juiz que exige a expiação pelo pecado e o Salvador que a prove. Destes dois tipos de sacrifício reconhecia-se ainda que o último é o fundamento do primeiro, pois a reconciliação com nosso Juiz é necessária mesmo antes da adoração do nosso Criador. E, portanto, significativo que, por ocasião da purificação do templo realizada por Ezequias, a oferta pelo pecado "de todo o Israel" tenha sido feita antes da oferta queimada (2 Crônicas 29:20-24). Além disso, é possível que possamos discernir os dois tipos de oferta nos sacrifícios de Caim e Abel, embora ambos sejam denominados

minha, uma oferta voluntária. O motivo por que o de Caim foi rejeitado, somos

informados, foi que ele não respondeu com fé, como Abel, à revelação de Deus (Hebreus 11:4). Em contraste com a vontade revelada de Deus, ou ele colocou a adoração antes da expiação ou, na sua apresentação dos frutos do solo, distorceu o reconhecimento das dádivas do Criador em oferta própria.

A noção de substituição é que uma pessoa toma o lugar de outra, especialmente a fim de levar sua dor e livrá-la dela. Tal ação é universalmente vista como nobre. É bom poupar dor às pessoas; é duplamente bom fazê-lo ao custo de levá-la sobre si mesma. Admiramos o altruísmo de Moisés em estar disposto a ter o nome apagado do livro de Yavé se tão-somente com esse gesto Israel fosse perdoado (Êxodo 32:32). Respeitamos também um desejo quase idêntico expressado por Paulo (Romanos 9:1-4), e sua promessa de pagar as dívidas de Onésimo (Filemom 18-19). Da mesma forma, em nosso século, não podemos deixar de nos comover com o heroísmo de Ma-ximilian Kolbe, um franciscano polonês, no acampamento de concentração de Auschwitz. Quando vários prisioneiros foram selecionados para execução, e um deles gritou que era casado e tinha filhos, "Kolbe deu um passo à frente e perguntou se podia tomar o lugar do condenado.

As autoridades aceitaram a sua oferta, e ele foi abandonado numa cela subterrânea para morrer de fome".5

De modo que não é de surpreender que esse princípio comumente compreendido da substituição tivesse sido aplicado pelo próprio Deus aos sacrifícios. Abraão "ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho", o carneiro que Deus havia providenciado (Gênesis 22:13). Moisés determinou que, no caso de um assassínio não solucionado, os anciãos da cidade deviam primeiro declarar sua própria inocência e a seguir oferecer uma novilha em lugar do assassino desconhecido (Deuteronômio 21:1-9). Miquéias evidentemente compreendia bem o princípio substitutivo, pois falou de como devia apresentar-se perante Yavé, e perguntou a si mesmo se devia levar ofertas queimadas, animais, ribeiros de azeite ou até mesmo "o meu primogênito pela minha transgressão? o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma?" O fato de ele ter dado a si mesmo uma resposta moral em vez de ritual, e especialmente o fato de ele ter rejeitado a horrorosa idéia de sacrificar seu próprio filho em lugar de si mesmo, não significa que ele tenha rejeitado o princípio substitutivo do Antigo Testamento, embutido no sistema sacrificial (Miquéias 6:6-8).

Esse elaborado sistema provia a subsistência das ofertas diárias, semanais, mensais, anuais e ocasionais. Incluía também cinco tipos principais de ofertas, que são apresentadas com detalhes nos primeiros capítulos de Levítico, a saber, a queimada, a de cereal, a de paz, a pelo pecado e a pela culpa. Visto que a oferta de cereal consistia em trigo e azeite, em vez de carne e sangue, era atípica e, portanto, feita em associação com uma das outras. As quatro restantes eram sacrifícios de sangue e, embora houvesse algumas diferenças entre elas (com relação a sua ocasião própria e ao uso preciso da carne e do sangue), todas partilhavam o mesmo ritual básico que requeria o adorador e o sacerdote. Era muito vivido. O adorador trazia a oferta, colocava a mão ou as mãos sobre a oferta e a matava. Então o sacerdote aplicava o sangue, queimava parte da carne, e dispunha para o consumo do que sobrava. Este era um importante simbolismo, não uma magia sem sentido. Ao colocar as mãos sobre o animal, o ofertante certamente se estava identificando com ele e "solenemente" designando "a vítima como estando em seu lugar".6 Alguns eruditos vão mais longe e vêem a imposição das mãos como "uma

transferência simbólica dos pecados do adorador ao animal",7 o que era explicitamente

verídico no caso do bode expiatório, de que trataremos mais adiante. Em qualquer dos casos, o animal substituto, tendo tomado o lugar do ofertante, era morto em reconhecimento de que a penalidade do pecado era a morte, seu sangue (simbolizando que a morte havia sido realizada) era aspergido, e a vida do ofertante era poupada.

A observação mais clara de que os sacrifícios de sangue do ritual do Antigo Testamento possuíam significado substitutivo, entretanto, e que por causa desse significado o derramamento e a aspersão do sangue eram indispensáveis à expiação, encontra-se nesta afirmativa, feita por Deus, ao explicar a proibição de comer o sangue:

Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas: porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida (Levítico 17:11).

Esse texto faz três importantes afirmações acerca do sangue. Primeira, o sangue é o símbolo da vida. A compreensão de que "sangue é vida" parece ser muito antiga. Volta pelo menos até a época de Noé, a quem Deus proibiu comer carne "com seu sangue" (Gênesis 9:4), e essa proibição mais tarde foi repetida na fórmula "o sangue é a vida" (Deuteronômio 12:23). A ênfase, contudo, não era sobre o sangue que corre nas veias, o símbolo da vida sendo vivida, mas sobre o sangue derramado, o símbolo da vida terminada, geralmente por meios violentos.

Segunda, o sangue faz expiação, e o motivo de seu significado expiador é dado na repetição da palavra "vida". É somente porque "a vida da carne está no sangue" que "é o sangue que fará expiação em virtude da vida". Uma vida é poupada; outra vida é sacrificada no seu lugar. O que torna a expiação "sobre o altar" é o derramamento do

sangue substitutivo. T. J. Crawford expressou-o bem: "O texto, portanto, segundo sua importância clara e óbvia, ensina a natureza viçaria do ritual do sacrifício. Dava-se vida

por vida, a vida da vítima pela vida do ofertante", deveras, "a vida da vítima inocente

pela vida do ofertante pecador".8

Terceira, Deus deu o sangue com esse propósito expiador. "Eu vo-lo tenho dado", diz ele, "sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas". Assim, devemos pensar no sistema sacrificial como dado por Deus, e não feito pelo homem, e nos sacrifícios individuais não como um recurso humano para aplacar a Deus, mas como um meio de expiação providenciado pelo próprio Deus.

Essa perspectiva do Antigo Testamento ajuda-nos a compreender dois textos cruciais da carta aos Hebreus. O primeiro é que "sem derramamento de sangue não há remissão" (9:22), e o segundo que "é impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados" (10:4). Não haver perdão sem sangue significa não haver expiação sem substituição. Tinha de haver vida por vida ou sangue por sangue. Mas os sacrifícios de sangue do Antigo Testamento não passavam de sombras; a substância era Cristo. Para que um substituto seja eficaz, deve ser um equivalente adequado. O sacrifício de animais não podia expiar os seres humanos porque "mais vale um homem do que uma ovelha" (Mateus 12:12). Somente o "precioso. . . sangue de Cristo" tinha valor suficiente (1 Pedro 1:19).

A Páscoa e o "tirar o pecado"

Voltamo-nos agora do princípio da substituição, como visto no que o Antigo Testamento diz acerca do sacrifício de sangue em geral, a dois exemplos particulares desse sacrifício, a saber, a Páscoa e o conceito do "tirar o pecado".

Começar com a Páscoa é apropriado por duas razões. A primeira é que a Páscoa original marcou o princípio da vida nacional de Israel. "Este mês vos será o principal dos meses", Deus lhes havia dito, "será o primeiro mês do ano" (Êxodo 12:2). Devia inaugurar o calendário anual deles porque nesse mês Deus os redimira do longo e

opressivo cativeiro egípcio, e porque o êxodo os levara à renovação da aliança de Deus

com eles no monte Sinai. Mas antes do êxodo e da aliança vinha a Páscoa. Deviam celebrar esse dia "como solenidade ao Senhor: nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo" (12:14, 17).

A segunda razão para iniciar aqui é que o Novo Testamento claramente identifica a morte de Cristo com o cumprimento da Páscoa, e a emergência de sua comunidade nova e redimida com o novo êxodo. Não é somente por ter João Batista apresentado a Jesus

como "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" (João 1:29, 36),9 nem apenas

pelo fato de que, segundo a cronologia do fim, Jesus estava pendurado na cruz no

momento preciso em que o cordeiro da Páscoa era morto,10 nem também porque no livro

do Apocalipse ele é adorado como o Cordeiro que foi morto e que, por meio do seu

sangue, comprou os homens para Deus.11 É, de modo especial, pelo que Paulo

categoricamente declara: "Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso celebramos a festa. . ." (1 Coríntios 5:7, 8).

O que, pois, aconteceu na primeira Páscoa? E o que isso nos diz acerca de Cristo, nosso cordeiro pascal?

A história da Páscoa (Êxodo 11—13) é uma auto-revelação do Deus de Israel em três papéis. Primeiro, Yavé revelou-se como Juiz. O cenário foi a ameaça da praga final. Moisés devia advertir a Faraó nos termos mais solenes de que à meia-noite o próprio Yavé passaria através do Egito e feriria todo primogênito. Não haveria discriminação entre os seres humanos e os animais, nem entre as diferentes classes sociais. Todo primogênito masculino morreria. Haveria apenas um meio de escape, determinado e provido pelo próprio Deus.

Segundo, Yavé revelou-se como o Redentor. No dia dez do mês cada casa israelita devia escolher um cordeiro (macho de um ano de idade, sem defeito), e no crepúsculo da tarde

do dia quatorze matá-lo. Então deviam tomar do sangue do cordeiro, molhar nele um ramo de hissopo e aspergi-lo na verga e em ambas as ombreiras da porta da frente. Não deviam sair de casa toda aquela noite. Tendo derramado e aspergido o sangue, deviam refugiar-se sob ele. Pois Yavé, que já havia anunciado a intenção de "passar pelo" Egito em juízo, agora acrescentava sua promessa de "passar por cima" de cada casa marcada com o sangue, a fim de protegê-la da destruição por ele ameaçada.

Terceiro, Yavé revelou-se como o Deus da aliança de Israel. Ele os havia redimido a fim de torná-los seu próprio povo. De modo que quando ele os salvou de seu próprio juízo, deviam comemorar e celebrar a bondade divina. Na noite da páscoa deviam banquetear- se com o cordeiro assado, com ervas amargas e pão não levedado, e deviam fazê-lo com os lombos cingidos, as sandálias nos pés e o cajado na mão, prontos a qualquer momento para a sua salvação. Alguns aspectos da refeição falava-lhes da sua opressão

(e.g. ervas amargas), e outros, da sua libertação (e.g. sua vestimenta). Então em cada

aniversário o festival devia durar sete dias, e deviam explicar aos seus filhos o que significava toda a cerimônia: "É o sacrifício da páscoa ao Senhor que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas." Além da celebração da qual participaria toda a família, devia haver também um rito es- pecial para os filhos primogênitos. Eram eles que haviam sido pessoalmente salvos da morte pela morte do cordeiro da páscoa. Assim redimidos, pertenciam de um modo especial a Yavé que os havia comprado com o sangue, e portanto deviam ser consagrados ao seu serviço.

A mensagem deve ter sido absolutamente clara aos israelitas; é igualmente clara a nós que vemos o cumprimento da páscoa no sacrifício de Cristo. Primeiro, o Juiz e Salvador são a mesma pessoa. Foi o Deus que "passou através" do Egito a fim de julgar os primo- gênitos, que "passou por cima" das casas dos israelitas a fim de protegê-los. Jamais devemos caracterizar o Pai como Juiz e o Filho como Salvador. É o mesmo Deus que por intermédio de Cristo nos salva de si mesmo. Segundo, a salvação foi (e o é) por meio da substituição. Os únicos primogênitos poupados foram aqueles em cujas famílias um cordeiro tinha morrido em seu lugar. Terceiro, o sangue do cordeiro, depois de derramado, devia ser aspergido. Devia haver uma apropriação individual da provisão divina. Deus tinha de "ver o sangue" antes de salvar a família. Quarto, cada família salva por Deus era, pois, comprada para Deus. A vida toda deles agora pertencia a ele. A mesma coisa acontece com a nossa. E a consagração conduz à celebração. A vida dos redimidos é um banquete, ritualmente expresso na Eucaristia, o festival cristão de ações de graça, como examinaremos com maiores detalhes no capítulo 10.

O segundo exemplo maior do princípio da substituição é a noção de "levar o pecado". No Novo Testamento lemos a respeito de Cristo que ele mesmo carregou "em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados" (1 Pedro 2:24), e de igual forma que foi "oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos" (Hebreus 9:28). Mas o que significa "levar o pecado"? Deve ser a expressão compreendida em termos de levar a penalidade do pecado, ou pode ser interpretada de outras maneiras? E está a "substituição" necessariamente relacionada com o "levar o pecado"? Se assim for, que tipo de substituição tem-se em mente? Pode ela referir-se somente ao substituto inocente, provido por Deus e que toma o lugar do partido culpado e sofre a penalidade

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 72-90)