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A autonomia e seus significados na organização escolar em Portugal

CAPÍTULO I A AVALIAÇÃO E SUA CONCETUALIZAÇÃO

3. O lugar da avaliação no quadro das políticas educativas

3.4. Avaliação e autonomia

3.4.1. A autonomia e seus significados na organização escolar em Portugal

A propósito da emergência do referencial de autonomia é possível identificar fases assinaláveis no seu processo de construção. Com a democratização do regime político entre 1974-1976, deu-se início a um processo de construção de formas alternativas do governo das escolas: a gestão democrática das escolas, que Lima (2003a: 156-159) analisou e catalogou como a “1ª e 2ª edição da gestão democrática”.

O período que Lima denomina por 1ª fase da “1ª edição da gestão democrática” é

caracterizado por um forte envolvimento de professores, alunos e funcionários e por ausência de cobertura legal para este procedimento. Lima considera que se está perante um fenómeno de ingerência que se distingue por uma participação “directa, informal, activa, e divergente”11.

Durante esta fase, as escolas beneficiaram de um poder de direção de facto. “É a fase do ensaio auto-gestionário, da tomada de poderes à administração central, da busca pela autonomia das escolas”. Esta situação, que não resultou de uma delegação de poderes, mas antes de uma deslocação, segundo as palavras de Grácio (1986: 164, citado por Lima, 2003a: 157), aconteceu

de uma “imposição da periferia e da base do sistema” que convocou per si os poderes de

decisão.

No sentido de inverter esta situação, numa 2ª fase da “1ª edição da gestão

democrática", surge o Decreto-Lei nº 221/74 que constitui uma tentativa da Administração central assegurar, de algum modo, o poder sobre as escolas “controlar e regularizar as práticas socioeducativas” (Lima, 2003a: 158). Porém, a sua capacidade de intervenção sobre as escolas foi ainda muito diluída, por oposição a uma participação, a um entusiasmo e a uma mobilização que permaneceram determinados, assumindo-se com o “movimento revolucionário”. O poder permanece dentro da escola, em particular nas assembleias de escolas.

Seguindo os períodos definidos por Lima, surge a 3ª e última fase da “1ª edição da

gestão democrática”, com a publicação do Decreto-Lei nº 735-A/74, de 21 de dezembro, revogado com a publicação do Decreto-Lei nº 769-A/76. Esta última fase do "período revolucionário" distingue-se, a nível formal, pelo aparecimento de "uma nova morfologia organizacional", manifesta também tendência para uma maior formalização e hierarquização da gestão das escolas, que passa a ser assumida por um conselho diretivo, um conselho pedagógico e um conselho administrativo. Este diploma provocou grande contestação por parte dos atores

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escolares, em especial dos alunos, na medida que significava, no campo formal, um rompimento

com a democracia direta.

Nesta sequência, quando surge o Decreto-Lei nº769-A/76, estavam reunidas as

condições políticas e organizativas para repor o controlo sobre as escolas, permitindo na prática a denominada “normalização” do funcionamento das escolas, o regresso do “paradigma da centralização” e a perda do protagonismo das escolas e dos seus órgãos de gestão, cada vez mais confinados a meros executores de decisões tomadas a nível do poder central.

Após a publicação do Decreto-Lei nº769-A/1976, inicia-se o processo denominado de

“segunda edição da gestão democrática” (Lima 1998b). Este ciclo de “normalização”estendeu-se até 1986, com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo. O objetivo fundamental dessa política consistia em recuperar o poder e o controlo do Estado e da sua administração sobre a educação.

No sentido de regularizar a vida escolar, em pouco tempo, o poder central manifestou a

propensão autoritária e controladora na administração da educação, submetendo as escolas ao poder do ministério, impedindo as práticas democráticas das escolas e as oportunidades de uma autonomia, ficando comprometidas, para poder assegurar ou reforçar os seus poderes e orientação para a dominação. Percebe-se que não há vontade para dotar as escolas de autonomia e para a produção de princípios democráticos e de participação na decisão.

Em termos de discursos e de tomadas de decisão política, as ideias de descentralização,

de autonomia e de participação na decisão assumem um lugar de destaque, porém, na prática foram adiadas, desprovidas de qualquer sentido “político democrático-participativo” (Lima, 2003a: 162). É importante sublinhar que “a descentralização de poderes, a autonomia e a participação nas decisões em educação são matérias essencialmente políticas, mesmo quando são (como têm sido) apresentadas e legitimadas com base em argumentos técnicos” (Lima, 2003a: 163).

Para além disto, a organização escolar e o poder central deparam-se com lógicas e

ações locais que constituem um impedimento à sua articulação, funcionando como desafio ao tradicional poder central, “reclamando por vezes novas prerrogativas, maior autonomia, respeito pelas especificidades e pelas diferenças” (Lima, 2003a: 168), em que os agentes socioeducativos locais passam a ser o centro da ação educativa, contribuindo esta necessidade de mudança para a crise de legitimidade do controlo central sobre a educação.

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Para a compreensão da mudança então em curso, impõe-se compreender a política de

autonomia das escolas públicas, desde o seu impulso inicial, em meados da década de oitenta, até às suas medidas mais recentes, como as relativas à autoavaliação das escolas.

O primeiro momento da reforma (1987-1991) acontece com o ministro Roberto

Carneiro. No âmbito da criação da Comissão Reforma do Sistema Educativo e da aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), a referência à “autonomia das escolas” assume grande centralidade no discurso político e é consagrada no Decreto-Lei nº 43/89, onde está inscrito o regime jurídico da autonomia das escolas. Com a mudança do papel do Estado, em finais da década de 1980, surge um modo de regulação designado como política de "reforço da autonomia das escolas”, que visava o reforço da escola enquanto espaço de decisão política. Contudo, a dita “autonomia das escolas” que dominava os discursos dos responsáveis de então não passou além da retórica, não se fez corresponder na ação da organização escolar, (Barroso, 2004: 55-57).

A partir do quadro “reforço da autonomia das escolas” associado com as medidas de

“reorganização e redefinição do aparelho funcional do Estado” considerava-se que, do ponto de vista formal, estavam reunidas as condições que permitissem e promovessem “o processo de transferência de competências para as escolas”, passando estas a dispor de poderes de produção e de decisão, e de “co-responsabilização da sociedade local na prestação de serviço público de educação nacional” (Barroso, 2004: 69).

Em vez de se assistir ao reforço da autonomia das escolas, proporcionando-lhes

condições para a deliberação democrática e para a produção de orientações e regras próprias para o seu autogoverno, pelo contrário, persiste cada vez mais um reforço do poder central nas periferias: “O reforço da autonomia das escolas parece cada vez mais numa miragem. O reforço do controlo central sobre as escolas é, pelo contrário, uma realidade” (Lima, 2007: 45). Mais uma vez, a autonomia é intensamente condicionada pelas decisões políticas de quem domina, ficando apenas a “autonomia” confinada a dimensões operacionais e técnicas própria da execução de orientações prescritas. (Lima, 2007: 45 e 52). O mesmo autor acrescenta assistir-se a uma “autonomia” fictícia adequada ao reforço do controlo central sobre as escolas: “Cada escola é, desta forma, heterogovernada (…) na ilusão da sua centralidade” (Lima, 2007: 52).

Na mesma linha de ideias, Barroso (2004: 68) considera que não resolve

“regulamentar” a autonomia, pois não existe uma “autonomia decretada”, é preciso criar condições para que ela seja “construída”, dado que representa “Um investimento nas escolas,

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pelo que tem custos, baseia-se em compromissos e tem de traduzir-se em benefícios” (Barroso, 2004: 72).

Portanto, para Lima (2003a: 147) não se trata de uma reforma política da administração

caracterizada por princípios democráticos e descentralizadores que incentive a autonomia para as escolas. Trata-se sim de “uma reestruturação e reorganização que (…) permitirá não só manter, mas mesmo conquistar novos poderes para o centro, através de uma cuidada separação entre concepção (nível central) e execução (nível periférico)”. Significa isto que se tratou apenas de uma transferência das “temáticas da democratização e da descentralização” para as “temáticas da modernização e da racionalização” (Lima, 2003a: 146).

Em Portugal, a democratização da educação e a descentralização da administração

deixaram de constar dos discursos políticos e dos normativos, diluídas “num quadro de referência modernizador e de inspiração tecnocrática”, recorrendo a uma lógica económica (Lima, 2003a: 146).

Barroso (2004: 74) defende que o reforço da autonomia das escolas representa uma

condição importante para a “revitalização da sua democracia interna”. Por isso, a relação entre autonomia e democracia é um processo fundamental. Apenas a autonomia assegura o poder, os recursos e a capacidade de decisão coletiva essenciais ao exercício democrático de uma organização. A capacidade democrática resulta da própria construção e desenvolvimento da autonomia e dos novos modos de organização. Baseando-se na obra de Paulo Freire, Lima (2000: 75) afirma:

Uma escola (mais) democrática é, por definição uma escola (mais autónoma), (…) sempre em processo. É através do processo de democratização do governo das escolas, em direcção ao seu autogoverno, tal como a democratização das práticas educativas/pedagógicas, envolvendo professores e alunos mais livres e responsáveis que se torna possível uma educação comprometida com a “autonomia do ser dos educandos”.

A partir do que já foi referido, compreende-se que as escolas continuam distantes de

serem organizações educativas democráticas e autónomas na medida em que a autonomia da escola manifesta “excesso de futuro e défice de presente (Fernando Ferreira, 2005: 327, citado por Lima, 2007: 55).

Um outro momento forte do processo surge com o ministro Marçal Grilo (1995-1999), quando, no âmbito do Pacto Educativo para o Futuro, se introduziu um programa de reforço da autonomia das escolas que levou, depois, à publicação do Decreto-Lei nº 115 A/98 sobre a autonomia e a gestão das escolas, começando a ser aplicado no ano letivo de 1998/1999. Este

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diploma que regulamenta o intitulado Regime de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos de Ensino em Portugal, sublinha: “A autonomia constitui um investimento nas escolas e na qualidade da educação, devendo ser acompanhada, no dia-a-dia, por uma cultura de responsabilidade partilhada por toda a comunidade educativa”.

A partir deste excerto normativo é visível a valorização do papel retórico da comunidade educativa na organização da escola, enquanto exigência e responsabilidade de todos os intervenientes no processo educativo. A construção de uma democracia política reclama a afirmação de um sentido de comunidade. Assim, partir da conjugação das diversas forças de intervenção, (Estado, cidadãos e professores) estão criadas as condições para outras “formas de regulação local da escola pública que não fiquem prisioneiras da dicotomia Estado – mercado” (Barroso, 2004: 76).

Por isso, ao invés de uma mudança essencialmente retórica, impõe-se a necessidade de mudança efetiva: “as instituições não mudam apenas (…) por força das mudanças juridico- normativas (…) A reforma-decreto e a reforma-mudança têm distintas regras e diferentes ritmos”, como afirma Lima (1998a: 68), sendo concedida à comunidade educativa a oportunidade de modificar e melhorar o sistema educativo. Por sua vez, à administração é reservado o dever de acompanhar e apoiar as escolas na construção da autonomia, dedicando particular cuidado às que apresentam mais dificuldades, incentivando e mobilizando os diferentes atores locais para esse fim.

Como este modelo reclama a partilha do poder, em interação com todos os

intervenientes no processo educativo, concede-se à escola a responsabilidade pela qualidade educativa que oferece, podendo, em certa medida, recompensar as assimetrias socioculturais, no sentido de promover o sucesso educativo dos alunos. Este modelo de parceria que se procura implementar reclama um novo paradigma, uma nova perspetiva de escola.

Contrariamente a todas as implicações e tendo por base o conhecimento da realidade

dos fatos, sabe-se que a reforma é assumida e promovida segundo uma determinada conceção de mudança, dirigida do “topo para a base do sistema (top-down)”, com a intensificação de meios de planeamento e legitimada politicamente por um discurso "modernizador", como sublinha Barroso (2003: 70).

Por fim, um outro momento corresponde ao da governação socialista de Mª de Lurdes

Rodrigues, iniciado em 2005 com a medida política “Avaliação e autonomia das escolas”, conjugada com a medida “Reforço das competências de gestão das escolas”, sendo criados dois

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grupos de trabalho, um para a avaliação das escolas e outro para o projeto de desenvolvimento da autonomia das escolas.

A política de autonomia das escolas procurava a mudança da escola em várias

dimensões. Contudo, apenas se assistiu a «medidas que, sob o referencial genérico da “autonomia da escola”, se traduziram por uma retórica transferência de competências de níveis superiores da administração para o estabelecimento de ensino (dimensão administrativa)», referem Barroso et al. (2007: 12).

Em função desta situação, admite-se haver divergências entre discursos e práticas, entre

mudanças retóricas e mudanças efetivas, como confirma Lima (1998a: 25): “mudanças juridicamente consagradas e centralmente decretadas não asseguram automaticamente as mudanças das realidades educativas e das práticas escolares”.

É do conhecimento geral que a mudança de comportamentos depende pouco de

legislações ou de normas. Neste seguimento, Elmore conclui que “mudar a estrutura não muda a prática; pode ser mais visível e até mais fácil que mudar a prática lectiva, mas não muda o essencial” (Elmore, 2002, citado por Azevedo, 2007: 70).

Apesar das administrações educativas recorrerem ao discurso da autonomia escolar, na

prática decidem-se por medidas autoritárias de controlo e de vigilância das escolas12, defende

Santomé (2004: 30): “Estamos perante uma notável recentralização de poder, contudo, de uma forma mais subsumida (…) não obstante os discursos oficiais remeterem para uma aposta forte na descentralização. No fundo, tal recentralização promove uma interiorização do controlo central”. Este modo de regulação estende-se até aos nossos dias e foi marcado pela ambivalência e pelo hibridismo.

Desta forma, a avaliação só produzirá mudanças caso esteja implicada com uma visão

de autonomia e de descentralização da administração da educação: “a avaliação das escolas, em termos desta visão política de mudança, só faz sentido se estiver associada com uma política activa de promoção de autonomia da gestão escolar, e com uma política activa de descentralização da administração da educação” (Afonso, 2007: 227-228).

12 Como, por exemplo, os conteúdos mínimos obrigatórios para cada disciplina e nível educativo, assim como a lista e indicadores que se utilizam

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3.5. Papel dos intelectuais na avaliação: a (contra) hegemonia, a dominação e o