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PARTE I — ASPECTOS POLÍTICO-SOCIAIS DA INFORMAÇÃO 1 O uso social da informação

2. Informação e democracia 1 Conceitos de democracia

2.2. A base do poder visível — o princípio da publicidade

Qualquer que seja o enfoque da teoria democrática, trazem como importante traço constitutivo dos regimes que se apresentam sob essa forma a questão da visibilidade do poder. Na teoria de DAHL (1993 e 1996) o direito de acesso à informação está presente na descrição das condições e características da poliarquia. Entre as características da democracia poliárquica descrita por Dahl, destacam-se a liberdade de expressão e o acesso a fontes de informação. Essas características estão presentes entre os requisitos para atender quatro dos cinco critérios do processo democrático: participação efetiva dos cidadãos; compreensão esclarecida; inclusão e controle do programa de ação. O quinto requisito, a igualdade de voto, seria atendido através dos princípios de funcionários eleitos e eleições livres e imparciais.

Nas condições para exercício da poliarquia, estão presentes o acesso a informações sobre as alternativas e o acesso a fontes alternativas de informação. Por certo, essas condições de acesso a fontes de informação não são apresentadas como únicas maneiras de observar os critérios do jogo democrático, mas demonstram a importância da visibilidade. Como um dos critérios desse jogo é o controle de programa de ação e inclusão, a exigência de acesso a fontes governamentais de informação como quesito é praticamente uma conseqüência

imediata; isso significa o reforço da necessidade de acesso a informações confiáveis de governo para que seja possível exercer o direito do controle.

Nem na teoria elitista de SCHUMPETER (1961) desaparece o conceito de publicidade. Nenhum regime que se baseie na legitimação pela maioria tem como escapar do momento de apresentação à opinião pública. O que acontece na abordagem de participação restrita como nessa teoria, é que a exigência da publicidade apresenta-se em sua face mais empobrecida ou enfraquecida. O princípio de publicidade, aqui, se descaracteriza não só pelo aspecto da persuasão, mas sobretudo, por aceitar a mentira e a omissão úteis em nome da governabilidade.

Em BOBBIO (1989, 1990 e 2000) a condição da visibilidade é apresentada como papel regulador do processo democrático. O conceito de Estado Social desenvolvido por Bobbio (1990) traz na essência o princípio da visibilidade quando o classifica como a sociedade permeada pelo Estado e o Estado permeado pela sociedade. Do nível de informação que a sociedade dispõe sobre os atos de seus governantes e sobre o poder decisório, dependerá o nível de controle que os cidadãos têm sobre o Estado. Na passagem da democracia direta para a representativa desaparece a praça, mas não a exigência da visibilidade do poder, que se satisfaz através da “publicidade das sessões do parlamento, com a formação de uma opinião pública através do exercício da liberdade de imprensa, com a solicitação dirigida aos líderes políticos de que façam suas declarações através dos meios de comunicação de massa” (BOBBIO, 2000, p. 387). Para o autor, a publicidade dos atos de governo é um dos principais traços que distingue o regime democrático do autocrático. O esquema da utilização do poder público em benefício de interesses de grupos privados se mantém principalmente na falta de visibilidade das ações governamentais.

Ao tratar do jogo entre o "poder invisível e o poder visível", o autor recorre ao que chama de um "aparente jogo de palavras" para definir o governo de democracia como "o governo do poder público em público". Logo em seguida, ele explica o porquê de o jogo de palavras ser apenas aparente, chamando a atenção para o fato de a palavra "público" ter dois significados, conforme venha como antônimo de "privado" ou conforme venha como antônimo de "secreto". Entretanto, faz uma ressalva: “refiro-me, que fique bem claro, ao público ativo, informado, consciente de seus direitos” (BOBBIO, 2000, p. 388). Com essa

observação, assinala o caráter estratégico que a informação assume na regulamentação de um governo democrático.

Bobbio coloca a publicidade dos atos de governo como o "verdadeiro momento de reviravolta na transformação do Estado moderno que passa do Estado absoluto para Estado de direito". É na formação desse Estado moderno que busca os argumentos para comprovar a necessidade da visibilidade do poder. Ele cita Imanuel Kant como o ponto de partida da sua discussão, ao apresentar as bases de sustentação da democracia. As instituições se alternaram ao longo dos séculos de construção do Estado moderno, as sociedades tornaram- se ainda mais complexas, as relações sofreram mudanças substanciais. Entretanto, as bases conceituais permanecem inalteradas. São os chamados princípios sobre os quais se constrói o regime democrático. São pré-requisitos para a existência desse tipo de regime. Sem eles, não se pode falar em democracia. Kant13 (apud BOBBIO, 1989) toma o princípio da publicidade como conceito transcendental do direito público. É adotado como critério para distinguir o bom do mau governo, o lícito do ilícito. Toda ação que não for suscetível de se tornar pública, é considerada, por definição, injusta. Ou seja, todos os atos realizados fora da esfera legal são, obrigatoriamente, realizados em segredo. São aqueles atos que, se fossem praticados publicamente, causariam reação no restante da sociedade para impedir que fossem realizados. É na esfera do secreto que surgem os atos de corrupção. O escândalo nasce, conforme descreve o autor:

“no momento em que se torna público um ato ou uma série de atos até então mantidos em segredo ou ocultos, na medida em que não poderiam ser tornados públicos, pois, caso o fossem, aquele ato ou aquela série de atos não poderiam ser concretizados.” (p. 91)

A corrupção é o momento da desobediência à regra do jogo. O escândalo é o momento em que essa desobediência é tornada pública.

2.2.1. Zona de tensão entre o público e o secreto

As recentes denúncias de escândalos em várias sociedades democráticas mostraram que a instituição da democracia como um governo que se baseia no princípio do poder público

1 3 Bobbio recorre a KANT, I., “Risposta alla domanda : che cosa é l’illuminismo”, in Scritti polittici e di

em público, por si só, não erradicou as possibilidades de formação de poderes paralelos e redes de corrupção. Não eliminou completamente o risco de criação de uma esfera oculta de governo. Ninguém pode ignorar, principalmente nas sociedades de massa, a existência de agentes persuasores que atuam nas zonas de sombra dos bastidores do poder, beneficiando determinados grupos econômicos que sejam de seu interesse. Entretanto, há mecanismos de combate a esse tipo de comportamento ilícito, o que não ocorre em sociedades autocráticas. "O que distingue o poder democrático do poder autocrático é que apenas o primeiro, por meio da livre crítica e da liceidade de expressão dos diversos pontos de vista, pode desenvolver em si mesmo os anticorpos e consentir formas de desocultamento" (BOBBIO, 1989, p. 102).

O desafio da democracia está em reduzir, se não eliminar, a tendência do poder a manter-se oculto.“O segredo está no núcleo mais interno do poder”, diz Elias Canetti14, citado por Bobbio (2000), mas não deve ter espaço ampliado e valorizado no regime democrático. A origem da razão da necessidade de subtrair -se ao olhar do público, afirma Bobbio, está no desprezo pelo povo. Também os monarcas se mostram para exibir potência. Mas “essa visibilidade puramente exterior do senhor da vida e da morte de seus próprios súditos deve corresponder à opacidade das decisões das quais a sua vida e a sua morte dependem” (p. 388).

O poder secreto é caracterizado por Bobbio como o ato de “subtrair-se à vista do público no momento em que se tomam as deliberações de interesse público e vestir a máscara quando se é obrigado a apresentar-se em público” (p. 403). O autor utiliza o termo “mascaramento” em sentido metafórico e há várias formas de se recorrer a ele como forma de burlar a obrigação da publicidade, o que é possível com o uso da linguagem para ocultar o pensamento. Isso se manifesta, basicamente, de duas formas, conforme descreve Bobbio: “ou usando a linguagem para iniciados, esotérica, compreensível apenas àqueles de seu círculo, ou então, usando linguagem comum para dizer o oposto do que se quer dizer ou dar informações erradas ou distorcidas” (p. 404).

Bobbio reconhece não ser possível a ausência total de segredos perante o homem. Mas, ao contrário da democracia, a autocracia permitiria não só o segredo, mas também a mentira. Ou seja, permite que o príncipe se utilize da palavra para esconder suas reais intenções porque os mecanismos de controle estão ausentes. É a mentira útil citada e defendida por Maquiavel, Platão, Aristóteles e Xenofon e presente também na teoria elitista de Schumpeter. Aí se encontra mais uma diferença. A democracia, por outro lado, exige o conhecimento da sociedade. “O cidadão deve saber, ou pelo menos deve ser colocado em condição de saber” (p. 392). Cannetti, citado por Bobbio, reconhece a existência do segredo como segurança do poder. E essa situação seria reforçada pelo desenvolvimento tecnológico, pois permite o maior controle das informações sobre a sociedade, o que distancia do ideal do Estado social descrito por Bobbio (o Estado permeia a sociedade sem ser visível a ela) e aproxima do protótipo do Panopticon de Betham (1791)15 — uma elevada torre de controle localizada no centro do território que permite o monitoramento dos movimentos de todos os cidadãos sem que o controlador seja visto. A dúvida que surge a partir desse protótipo é: quem fiscaliza o fiscalizador? Betham se propõe a fazer a crítica à estrutura centralizadora e autocrática de controle pelo príncipe da sociedade sem se fazer visível ou sem se sujeitar à fiscalização e avaliação pública. O poder de “guardar os guardiães” deve ser do povo, que deve fazer inspeções regulares à torre central. Isso porque a inspeção, segundo Betham, deve ser feita não só por inspetores designados, mas também pelo público. Com isso, antecipa a discussão sobre dever da transparência e o direito à informação, o acesso às informações e decisões das agências governamentais.