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breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

4. Pesadelos urbanos: egotismo, alienação e crimes perversos

4.2. Dentro do abismo de escuridão: Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis

4.2.4. A cidade migueisiana: as ruas de pesadelos

Na esteira do pensamento de Eduardo Lourenço que sintetizou o estado da literatura da primeira metade do século XX em dois símbolos, de Narciso e D. João, Miguel Real considera Narciso o “retrato cultural do homem contemporâneo: tão individualista quanto egotista, solitário e isolado” (Real, 2008, p. 108). Temos aqui, portanto, a imagem do homem novecentista, egotista e, simultaneamente, perdido dentro do seu próprio labirinto interior. É o que, enfim, demonstram as narrativas de Rodrigues Miguéis e Branquinho da Fonseca, cujos protagonistas não sabem resolver os dilemas que se travam nas suas profundidadades interiores, terminando por cometer um crime, imaginado ou real, que declara a sua alienação total. Mas para além dos problemas intrínsecos à psique humana há ainda, nas personagens, um tipo de sensibilidade que involuntariamente reage ao ambiente. Todas as narrativas aqui estudadas (e muitas outras de semelhante problemática) são inseridas no espaço urbano. Não interessa, neste momento, o facto de se tratar da capital portuguesa que na época abordada não exibia um caráter tão héctico e alienatório como as grandes metrópoles de formato do Londres ou Nova Yorque. Interessa, sim, o facto de a urbanidade, correspondente a qualquer cidade, se tornar nos inícios do século XX o paradigma da modernidade definida por uma considerável alteração nas relações humanas.

Por sinal, todas as personagens aqui consideradas são funcionários públicos ou privados, existindo pouca diferença entre o ex-empregado do ministério (“O Resto”), o escriturário na Alfândega (“A prova de força”) e o guarda-livros (Páscoa feliz). Todas estas profissões caraterizaram já na literatura oitocentista o tipo humano nomeado “pequeno” ou “simples”, em contraste à figura do herói de traços semi-divinos. O russista checo Vladimír Svatoň, ao estudar as prosas urbanas de Gogol, chamou a atenção para a figura de Popriscin, conselheiro titular de um dos Contos de Petersburgo (1842), que é internado no manicómio por se considerar o rei da Espanha (cf. Svatoň, 2002). O raciocínio de Popriscin baseia-se na ideia de que não há nenhuma diferença moral entre ele e um rei. Porquê, então, ele não poderia ser o rei? Svatoň vê neste dilema o tema central do demonismo, uma vez que o “demónio” corresponde a um ser humano que não pretende subjugar-se ao plano do universo, à sua ordem intrínseca (cf. Svatoň, 2002, p. 227). Gogol, assim, conforme Svatoň, retratou o homem “simples” como uma versão dos heróis sublimes das obras românticas, como a sua revalorização interna (cf. Svatoň, 2002,

161 p. 227). Simultaneamente, ainda na esteira do pensamento de Svatoň, Gogol desvelou assim a essência da situação urbana, assente no individualismo e no caos que penetra também no interior humano, amortecendo a capacidade do homem de se formar como uma personalidade (cf. Svatoň, 2002, p. 222). O ser humano, portanto, transforma-se num nó de pequenos desejos e reações nervosas (cf. Svatoň, 2002, p. 222).

Deste modo, a novela migueisiana comprova também a existência da estrutura da “cidade simbólica” a que Svatoň se refere nas suas análises de Petersburgo (cf. Svatoň, 2002, p. 222). A cidade migueisiana de Páscoa feliz, porém, não entra somente em correlação com as outras obras portuguesas que retrataram a capital portuguesa, mas exibe alguns traços em comum com várias outras narrativas que focaram a experiência urbana nos séculos XIX e XX. Além de paralelos com a obra dostoievskiana, que é em geral aceite como uma das fontes ideológico-artísticas de Páscoa feliz (cf. Marques, 1997), há também o já referido parentesco com Gogol ou com um autor alemão de Praga, não muito conhecido, chamado Paul Leppin (1878-1945). Com efeito, na novela Severins gang in die finsternis. Ein Prager gespensterroman (O caminho de Severin até à escuridão. Um romance de horror de Praga, 1914)157 de Leppin encontramos também a figura de um empregado de escritório, precisamente um guarda-livros como Renato migueisiano, que se evade à rotina monótona do trabalho ao sonhar sobre aventuras158 e ao caminhar pela cidade (“With his eyes wide open he looked into the city, where people were moving like phantoms”, Leppin, 2001, p. 12).159 Fica então fascinado pelo espaço urbano, transfigurado numa aparência fantasmática, esse espaço que pode ser apreendido pelas sensações visuais, auditivas ou olfativas (p. ex. “The noise of the carriages and the rattling of the trams blended with the voices of the people to make a harmonious clamor in which a distinct cry or shout occasionally sounded.”, Leppin, 2001, p. 12).160 Os dois textos, portanto, utilizam vários recursos estilísticos que já em Cesário Verde configuravam a cidade como uma paisagem

157 Utiliza-se aqui a tradução inglesa Severinʼs journey into the dark – a Prague ghost story de Kevin Blahut. 158 P. ex. “Here the stories of knights and adventures of sailors that he read at home became a small but genuine reality that brought heat to his face and hands and stifled his breath in mute agitation.” (Leppin, 2001, p. 13). Tal como o protagonista migueisiano, Severin sente-se bloqueado, sem a liberdade de viver a vida que deseja (“Sometimes he was overcome by a senseless fear and a horror that his life would amount to nothing. Since he had become an adult and started earning his own bread, bleak and vapid walls had risen around him and blocked his view. All around, everywhere he looked, he saw dull and mundane convention.”, Leppin, 2001, p. 14)

159 Repare-se no poder transfigurador do espaço, em muito semelhante à poética espacial de Cesário Verde, Rodrigues Miguéis e Branquinho da Fonseca: “He knew every part of the city, but now it gained a timid, unfamiliar power over him. (…) His senses were clear and alert, he saw how the night transformed everything, how everything lived a separate, different life than it did by day. He saw how it made melancholy landscapes from the bleak, empty squares, and dark subterranean dungeons from the narrow lanes.” (Leppin, 2001, p. 47)

160 Há ainda, no texto de Leppin, belas imagens olfativas, p. ex. “He walked past the walls of the large gardens that enclosed the hospitals and institutes. He was struck by the smell of decaying leaves and damp earth.” (Leppin, 2001, p. 12)

162 urbana visual e sonora, em certos momentos até espetral.161 Os dois personagens, migueisiano e leppiniano, podem ser considerados, de um certo modo, “vítimas” de um mundo urbano cada vez mais automatizado e, daí, não só falho de contornos “reais”, mas ainda prenhe de violência que acompanha a revolta fracassada (“Now, alienated and bereft of expectations, he sat in this world, which seemed automated and unreal.” Leppin, 2001, p. 48). Os pesadelos que atormentam os dois personagens simbolizam, assim, a sua caminhada para dentro da escuridão alienante e definitiva.162

161 Recorde-se o famoso verso cesariano em que um caleche se transfigura num monstro de olhos vermelhos (“E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos”, Verde, 1999, p. 103). A imagem semelhante, com outro cromatismo, encontra-se na novela de Leppin (“The electric tram drove past with yellow eyes.”, Leppin, 2001, p. 12), bem como no conto de “Passageiro da 2ª classe” de Branquinho da Fonseca (sobre o comboio: “à frente, um cossaco a cavalo, com a lança no ar, e trás dele aquela fila de caveiras com os olhos alumiados de febre”, Fonseca, 2010a, p. 327).

162 Os dois personagens têm ainda mais traços em comum, fundamental seria sobretudo a sua essência sadomasoquista (repare-se que o protagonista de Leppin tem o nome tirado da famosa obra Venus im Pelz, 1858, de Sacher-Masoch), bem como a imaturidade e fraqueza interior (nos dois casos existe uma figura da mulher que funciona como o símile materno e em cujos braços os dois não procuram amor ou sensualidade, mas somente o consolo maternal).

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