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A Comunidade de Celebração

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 139-151)

Talvez o leitor até aqui tenha achado esta apresentação da cruz de Cristo por demais individualista. Se isso aconteceu, esta seção deve recuperar o equilíbrio. Pois o mesmo Novo Testamento, que contém o rasgo de individualismo de Paulo que diz: "Estou crucificado com Cristo. . . vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim", também insiste em que Jesus Cristo "a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda a iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente

seu, zeloso de boas obras".1 Assim, o mesmo propósito da sua autodoação na cruz não foi

só salvar indivíduos isoladamente, perpetuando a sua solidão, mas também criar uma nova comunidade cujos membros pertencessem a ele, amassem uns aos outros e

zelosamente servissem ao mundo. Essa comunidade de Cristo não seria nada mais do que uma unidade renovada e reunida, da qual ele, como segundo Adão, seria o cabeça. Ela incluiria judeus e gentios em termos iguais. De fato, englobaria representantes de todas as nações. Cristo morreu em solidão abjeta, rejeitado por sua própria nação e desertado por seus discípulos; mas, levantado na cruz ele atrairia a todos os homens a si mesmo. E do dia de Pentecoste em diante tem sido claro que a conversão a Cristo significa também conversão à comunidade de Cristo, à medida que as pessoas se voltam de si mesmas para ele, e desta "geração corrupta" à sociedade alternativa que ele está unindo em torno de si. Essas duas transferências — de fidelidade pessoal e participação

social — não podem ser separadas.2

O Novo Testamento devota bastante espaço à retratação dessa nova sociedade redimida — suas crenças e valores, seus padrões, deveres e destino. O tema desta seção

é a comunidade de Cristo como a comunidade da cruz. Tendo sido trazida à existência

mediante a cruz, ela continua a viver pela cruz e debaixo dela. Nossa perspectiva e nosso comportamento agora são governados pela cruz. Todos os nossos relacionamentos foram radicalmente transformados por ela. A cruz não é apenas um distintivo que nos identifica, e um pendão sob o qual marchamos; é também a bússola que nos dá direção num mundo desorientado. Em particular, a cruz revoluciona nossa atitude para com Deus, para conosco mesmo, para com as pessoas tanto dentro quanto fora da comunidade cristã, e para com os graves problemas da violência e do sofrimento. Dedicaremos um capítulo a cada um desses quatro relacionamentos.

Um relacionamento novo com Deus

As quatro imagens da salvação, que investigamos no capítulo 7 dão testemunho de nosso novo relacionamento com Deus. Agora que ele agiu em seu amor desviando a sua ira, fomos justificados por ele, redimidos por ele e reconciliados nele. E a nossa reconciliação inclui os conceitos de "acesso" e "proximidade", os quais são aspectos do nosso conhecimento dinâmico de Deus ou "vida eterna" (João 17:3). Esse relacionamento íntimo com Deus, que substituiu a alienação antiga e dolorosa, possui várias características.

Primeiro, é marcado pela ousadia. A palavra que os apóstolos gostavam de usar com referência à ousadia é parresia, que significa "abertura, franqueza, simplicidade de discurso", tanto em nosso testemunho ao mundo quanto em nossas orações a Deus. Através de Cristo agora somos capazes de "nos aproximarmos de Deus com liberdade

(parresia) e confiança". Por causa do sumo sacerdócio de Cristo temos parresia de chegar

ao trono da graça de Deus, e temos parresia pelo sangue de Cristo para entrar no Santo

dos Santos da própria presença de Deus.3 Essa liberdade de acesso e essa franqueza de

aproximação a Deus em oração não entram em choque com a humildade, pois são devidas inteiramente ao mérito de Cristo, e não ao nosso. O seu sangue purificou nossa consciência (de um modo impossível nos dias do Antigo Testamento), e Deus prometeu jamais se lembrar dos nossos pecados. De modo que agora olhamos para o futuro com segurança, não com temor. Sentimos o poder da lógica de Paulo. Visto que quando éramos inimigos de Deus fomos tanto justificados quanto reconciliados através da morte de Cristo, tanto mais tendo sido justificados e reconciliados, seremos salvos da ira de Deus no último dia, Agora que estamos "em Cristo", temos confiança "em todas as coisas" de que Deus está operando o nosso bem, e que nada nos pode separar do seu

amor.4

A segunda característica de nosso novo relacionamento com Deus é o amor. Deveras,

amamos porque ele nos amou primeiro. Antes tínhamos medo dele. Mas agora o amor expulsou o temor. Amor gera amor. O amor de Deus em Cristo, o qual, em certo sentido nos libertou, em outro nos aprisiona, porque não nos deixa alternativa a não ser vivermos

A alegria é a terceira marca dos que foram redimidos pela cruz. Quando os exilados de Babilônia retornaram a Jerusalém, a sua "boca se encheu de riso" e a sua "língua de júbilo". A antiga alienação e humilhação se haviam acabado; Deus os havia resgatado e restaurado. Compararam o seu júbilo aos folguedos da ceifa: "Os que com lágrimas semeiam, com júbilo ceifarão. Quem sai andando e chorando enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes". Quanto mais devíamos nós nos regozijarmos no Senhor, que nos redimiu de uma escravidão muito mais opressiva! Os cristãos primitivos mal se podiam conter: tomavam as refeições juntos "com alegria e singeleza de coração".6

Todavia, não devemos pensar que a ousadia, o amor e a alegria sejam experiências inteiramente privadas; devem distinguir o nosso culto público. O breve tempo que passamos juntos no dia do Senhor, longe de ser divorciado do restante de nossa vida, deve dar-lhe perspectiva. Humildemente (como pecadores), contudo audazmente (como pecadores perdoados), entramos na presença de Deus, respondendo à sua iniciativa amorosa com um amor nosso, e não somente adorando-o com instrumentos musicais mas também articulando nossa alegria mediante cânticos de louvor. W. M. Clow tinha razão em chamar a atenção para o cântico como um aspecto singular do culto cristão, e ao motivo dele:

Não há perdão neste mundo, ou no vindouro, a não ser através da cruz de Cristo. "Através deste homem vos é pregado o perdão dos pecados". As religiões do paganismo raramente conheciam a palavra. . . As grandes crenças dos budistas e dos maometanos não dão lugar nem à necessidade nem à graça da reconciliação. Provar esse fato é a coisa mais simples. O júbilo jaz nos hinos do culto cristão. O templo budista jamais ressoa com o clamor do louvor. Os adoradores maometanos jamais cantam. Suas orações são, no que tiverem de mais elevado, orações de submissão e pedido. Raramente atingem a nota mais alegre da ação de graças.

Jamais se jubilam com os cânticos dos perdoados.7

Em contraste, sempre que o povo cristão se reúne é impossível fazer que parem de cantar. A comunidade cristã é uma comunidade de celebração.

Paulo exprime nosso senso comum de jubilosa alegria mencionando a mais bem conhecida festa judaica: "Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso celebremos a festa. . ." (1 Corínttios 5:7-8). Estritamente falando, a "páscoa" era a refeição comunal feita na noite do décimo quinto dia de nisã, imediatamente depois de matar os cordeiros pascais naquela tarde (14 de nisã), embora tivesse vindo a ser aplicada também a toda a semana de festa dos pães asmos que a seguia. O fundamento do regozijo do povo era sua redenção custosa do Egito. Mais custoso ainda foi o sacrifício redentor de Jesus Cristo na cruz. Foi porque ele, nosso Cordeiro Pascal, foi morto, e porque pelo derramamento do precioso sangue da sua vida fomos libertos, que se nos exorta a celebrar a festa. De fato, toda a vida da comunidade cristã devia ser concebida como um festival em que com amor, alegria e ousadia celebremos o que Deus fez por nós através de Cristo. Nessa celebração descobrimos que estamos participando da adoração do céu, de modo que nos unimos "aos anjos e arcanjos, e a toda a companhia do céu" ao dar glória a Deus. E, sendo a adoração a Deus, em essência, o reconhecimento de sua dignidade, unimo-nos ao coro celestial entoando a dignidade divina tanto como Criador como Redentor:

Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas (Apocalipse 4:11).

Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor (Apocalipse 5:12).

É surpreendente que as referências de Paulo ao Cordeiro Pascal e à festa da páscoa venham no meio de um capítulo extremamente solene, no qual foi preciso que ele repreendesse os coríntios por causa da sua lassidão moral. Um dos membros da igreja de Corinto está envolvido num relacionamento incestuoso. Contudo, eles não dão mostra de

pesar humilde ou arrependimento. Ele os instrui a excomungar o ofensor, e adverte-os do perigo de que o pecado se espalhe na comunidade se não tomarem medidas decisivas com o fim de erradicá-lo. "Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" pergunta ele (1 Coríntios 5:6). É essa alusão ao fermento que lhe traz à memória a páscoa e a festa dos pães asmos. Como cristãos eles deviam "celebrar a festa", mas deviam fazê-lo "não com o velho fermento, nem com o fermento da maldade e da

malícia; e sim com os asmos da sinceridade e da verdade" (v. 8). Pois a festa cristã é

radicalmente diferente dos festivais pagãos, os quais geralmente eram acompanhados de frenesi e muitas vezes se degeneravam em orgias de bebedices e imoralidades. O distintivo da celebração cristã deve ser a santidade, pois o propósito último de Cristo mediante a cruz é "apresentar-nos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis" (Colossenses 1:22).

O sacrifício de Cristo e o nosso

Embora a vida cristã seja uma festa contínua, a Ceia do Senhor é, em particular, o equivalente cristão da páscoa. Portanto, ela se encontra no centro da vida de celebração da igreja. Foi instituída por Jesus na época da páscoa, deveras, durante a própria refeição pascal, e ele deliberadamente substituiu a recitação cerimonial que dizia: "Este é o pão da aflição que nossos pais comeram" por: "Este é o meu corpo dado por vós. . . Este é o meu sangue derramado por vós. . ." O pão e o vinho da festa cristã nos obrigam a olhar de volta para a cruz de Cristo, e lembramo-nos com gratidão do que ali ele sofreu e realizou. As igrejas protestantes tradicionalmente têm-se referido ao batismo e à ceia do Senhor como "sacramentos do evangelho" (pois dramatizam as verdades centrais das boas novas) ou "sacramentos da graça" (pois apresentam de modo visível a graciosa iniciativa salvadora). Ambas as expressões são corretas. O movimento primário que os sacramentos do evangelho envolvem é de Deus para o homem, não do homem para Deus. A aplicação da água no batismo representa a purificação do pecado e o derramamento do Espirito se ministrado por aspersão) ou a partilhação da morte e ressurreição de Cristo (se feito por imersão) ou ambos. Não nos batizamos a nós mesmos. Submetemo-nos ao batismo, e a ação que nos é feita simboliza a obra salvadora de Cristo. Na ceia do Senhor, de igual modo, a essência do drama consiste em tomar, abençoar, quebrar e distribuir o pão, e o tomar, abençoar, servir e distribuir o vinho. Não administramos (ou não devíamos administrar) os elementos a nós mesmos. Eles nos são dados; nós os recebemos. E, assim como comemos o pão e bebemos o vinho fisicamente, da mesma forma espiritualmente pela fé nos alimentamos do Cristo crucificado em nossos corações. Assim, em ambos os sacramentos somos mais ou menos passivos, recipientes e não doadores, beneficiários e não benfeitores.

Ao mesmo tempo, o batismo é tido como uma ocasião apropriada para a confissão da fé, e a ceia do Senhor para o oferecimento de ações de graça. Daí, o uso cada vez mais popular do termo "eucaristia" (eucharistia, "ação de graças") para a ceia do Senhor. E, uma vez que "sacrifício" é sinônimo de "oferta", não é de surpreender que se tenha inventado a expressão "sacrifício eucarístico". Mas será ela legítima? Quais são as suas implicações?

Para começar, todos nós devíamos poder concordar com cinco modos pelos quais o que fazemos na ceia do Senhor está relacionado com o auto-sacrifício de Cristo na cruz.

Primeiro, lembramo-nos do seu sacrifício "fazei isto em memória de mim", disse ele (1 Coríntios 11:24-25). Deveras, as ações prescritas com o pão e com o vinho tornam a memória vivida e dramática.

Segundo, participamos dos seus benefícios. O propósito do culto ultrapassa a "comemoração" e chega à "comunhão" (koinonia): "Porventura o cálice da bênção que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo?" (1 Coríntios 10:16). Por esse motivo a eucaristia é corre-

tamente chamada de "Santa Comunhão" (visto que através dela podemos participar de Cristo) e "ceia do Senhor" (visto que através dela podemos alimentar-nos de Cristo).

Terceiro, proclamamos seu sacrifício: "Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Coríntios 11:26). Embora a morte de Jesus tenha-se realizado muitos séculos atrás, a proclamação dela continua hoje. Contudo, a Ceia é uma provisão temporária. Olha para a vinda do Senhor como também para a sua morte. Não é apenas uma festa do Cristo crucificado, mas também um antegozo de seu banquete celestial. Assim, ela cobre todo o período entre suas duas vindas.

Quarto, atribuímos nossa unidade ao seu sacrifício. Pois jamais participamos da ceia do Senhor sozinhos, na privatividade de nosso próprio lar. Não, nós nos "reunimos" (1 Coríntios 11:20) a fim de celebrá-la. E reconhecemos que é a nossa porção comum nos benefícios do sacrifício de Cristo que nos uniu: "Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão" {1 Coríntios 10:17).

Quinto, damos graças por seu sacrifício, e, como prova de nossa ação de graças oferecemo-nos a nós mesmos, nossa alma e corpo como "sacrifício vivo" ao seu serviço (Romanos 12:1).

De modo que sempre que celebramos a ceia do Senhor, lembramos e participamos do seu sacrifício como o fundamento de nossa unidade, proclamamos e reconhecemos esse sacrifício, e respondemos a ele em grata adoração. A pergunta que permanece, entretanto, é se há um relacionamento ainda mais íntimo entre o sacrifício que Cristo ofereceu na cruz e o sacrifício de ação de graças que oferecemos na eucaristia, entre o seu sacrifício de "morte" e os nossos sacrifícios de "vida". É esse ponto que tem dividido a cristandade desde o século dezesseis, e é um tópico de ansioso debate ecumênico hoje. Não podemos falar da igreja como uma "comunidade de celebração" sem nos aprofundar mais na natureza da celebração eucarística.

Já no imediato período pós-apostólico os Pais da igreja primitiva começaram a usar a linguagem sacrificial com relação à ceia do Senhor. Viam nela o cumprimento de Malaquias 1:11: "Em todo lugar lhe é queimado incenso e trazidas ofertas puras; porque

o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor dos Exércitos".8 Mas o pão e o vinho

não consagrados como "ofertas puras" eram símbolos da criação, pelos quais o povo agradecia. Os autores antigos também viam as orações e os louvores do povo, esmolas aos pobres, como uma oferta a Deus. Foi só depois de Cipriano, bispo de Cartago, nos meados do século terceiro, que a própria ceia do Senhor foi chamada de um verdadeiro sacrifício, no qual sacerdotes, cujo papel sacrificial dizia-se equiparar-se aos dos sacerdotes do Antigo Testamento, ofereciam a Deus a paixão do Senhor. Desde esse começo a doutrina da eucaristia do catolicismo medieval desenvolveu-se, a saber, que o sacerdote cristão oferecia Cristo, realmente presente sob as formas de pão e vinho, como sacrifício propiciatório a Deus pelos pecados dos vivos e dos mortos. E foi contra essa idéia que os Reformadores vigorosamente protestaram.

Embora o ensino eucarístico de Lutero e de Calvino se divergisse, todos os Reformadores estavam unidos em rejeitar o sacrifício da missa, e se preocupavam em fazer uma distinção clara entre a cruz e o sacramento, entre o sacrifício de Cristo oferecido por nós e nossos sacrifícios oferecidos através dele. Cranmer expressou as diferenças com grande clareza:

Um tipo de sacrifício há, que é chamado de sacrifício propiciatório ou misericordioso, isto é, um sacrifício tal que pacifica a ira e a indignação de Deus, e obtém misericórdia e perdão para os nossos pecados. . . E embora no Antigo Testamento houvesse certos sacrifícios com esse nome, contudo há apenas um desses sacrifícios pelos quais nossos pecados são perdoados, e a misericórdia e o favor de Deus obtidos, o qual é a morte do Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo; nem jamais houve outro sacrifício propiciatório em qualquer tempo, nem jamais haverá. É esta a

honra e a glória desse nosso Sumo Sacerdote, no qual ele não admite nem parceiro nem sucessor. . .

Outro tipo de sacrifício há que, embora não nos reconcilie com Deus, é feito por aqueles que são reconciliados por Cristo, a fim de testificar de nossos deveres para com Deus e mostrar-nos agradecidos a ele. Esses, portanto, são chamados sacrifícios de louvor, adoração e ação de graças. O primeiro tipo de sacrifício Cristo ofereceu a

Deus por nós; o segundo tipo nós mesmos oferecemos a Deus por Cristo.9

Tendo feito essa vital distinção, Cranmer estava decidido a ser coerente em sua aplicação. O ministro ordenado ainda podia ser chamado de "sacerdote", mas toda referência ao "altar" foi eliminada do Livro da Oração Comum e substituída por "mesa", "santa mesa", "mesa do Senhor" ou "mesa da comunhão". Pois Cranmer viu claramente que o culto de comunhão é uma ceia servida por um ministro de uma mesa, não um sacrifício oferecido por um sacerdote sobre um altar. A forma final do seu culto de comunhão exibe a mesma determinação, pois a oferta de gratidão do povo foi tirada da Oração de Consagração (onde se encontrava em seu primeiro culto de comunhão, substituindo a oferta do próprio Cristo na missa medieval) e judiciosamente colocada depois do recebimento do pão e do vinho como uma "oração de oblação". Dessa forma, além de qualquer possibilidade de compreensão errônea, o sacrifício do povo era visto como sua oferta de louvor em gratidão responsiva pelo sacrifício de Cristo, cujos bene- fícios haviam recebido pela fé.

A Escritura apoia a doutrina de Cranmer, tanto em salvaguardar a singularidade do sacrifício de Cristo como em definir o nosso sacrifício como expressão de ações de graça, não como obtenção do favor de Deus. A finalidade singular do sacrifício de Cristo na cruz é indicada pelo advérbio hapax ou ephapax (que significam "de uma vez por todas"), aplicado a ela cinco vezes na carta aos Hebreus. Por exemplo, "não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro por seus próprios pecados, depois pelos do povo: porque fez isto uma vez por todas, quando a si mesmo se ofereceu". Novamente, "agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se

manifestou uma vez por todas, para aniquilar pelo sacrifício de si mesmo o pecado".10 É

por isso que, diferente dos sacerdotes do Antigo Testamento que se punham de pé para realizar os seus deveres, repetidamente oferecendo os mesmos sacrifícios, Jesus Cristo, tendo feito "para sempre, um único sacrifício pelos pecados", sentou-se à destra de Deus, descansando da sua obra terminada (Hebreus 10:11-12).

Embora a sua obra de expiação tenha sido realizada, o seu ministério no céu ainda prossegue. Este não é "oferecer" seu sacrifício a Deus, visto que a oferta foi feita de uma vez por todas na cruz; nem "apresentá-lo" ao Pai, pleiteando a sua aceitação, visto que esta foi publicamente demonstrada pela ressurreição; antes, "interceder" pelos pecadores tendo-a por base, como nosso advogado. É nisso que consiste o seu "sacerdócio permanente", pois a intercessão tanto quanto o sacrifício, foi um ministério

sacerdotal: vivendo para sempre interceder por nós.11

A singularidade do sacrifício de Cristo não significa, pois, que não temos sacrifícios a oferecer, mas somente que a natureza deles e o seu propósito são diferentes. Não são materiais, mas espirituais, e seu objetivo não é propiciatório, mas eucarístico, a expressão de uma gratidão responsiva. E esse o segundo apoio bíblico da posição de Cranmer. O Novo Testamento descreve a igreja como uma comunidade sacerdotal, um "sacerdócio santo" e um "sacerdócio real", do qual todos os filhos de Deus partilham igualmente como sacerdotes.12 E esse o famoso "sacerdócio dos crentes", ao qual os

Reformadores deram grande ênfase. Em conseqüência desse sacerdócio universal, o

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 139-151)