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A construção dos sistemas de protecção social

No documento (Tese são final 1 frente e so ) (páginas 85-91)

II. A evolução do Sector da Saúde

2.2.8. A construção dos sistemas de protecção social

O final do Século XIX, o Século XX e os anos iniciais do Século XXI ficarão marcados pela construção de sistemas de saúde alternativos, pelas sucessivas reformas introduzidas e pela discussão em torno da sua viabilidade, eficiência e equidade. Razões de natureza política, ideológica, social e económica levaram os governos a intervir novamente, e mais fortemente, na Saúde. Convém notar, que as instituições caritativas já não davam uma resposta completa aos problemas sociais.

A protecção aos pobres passou, claramente, de uma atitude individualista para uma obrigação colectiva. O aumento do proletariado, a insegurança, as desigualdades e a pobreza induziram uma maior maturidade dos sistemas de protecção social, mas também da necessidade do seu controlo (Sacardo, 2009).

Coube a Otto von Bismarck18 o mérito de criar o primeiro Estado Providência (Welfare State19), ao introduzir na Alemanha os seguros sociais obrigatórios, cobrindo a doença (1883), os acidentes de trabalho (1884) e a invalidez e velhice (1889). Com esta legislação procurava-se não só assegurar o normal funcionamento da economia alemã e promover medidas sociais importantes, mas também garantir a continuidade política do

18 Otto von Bismarck nasceu a 1 de Abril de 1815, em Schönhausen, e morreu a 30 de Julho de 1889, em

Aumühle. De origem nobre, foi, sucessivamente, conde, príncipe e duque. Diplomata e político prussiano, foi uma figura marcante do Século XIX. Sendo, inicialmente, conservador, aristocrata e monárquico, não deixou, enquanto chanceler alemão, de tomar medidas socialmente importantes, em parte, como forma de combater o crescente apoio popular aos partidos sociais-democratas.

19 De acordo com Ferrera (cit. in Sacardo, 2009), a história do Welfare State pode ser dividida em três

fases: a dos seguros ocupacionais e nacionais; a da criação dos modelos puros e mistos do pós-guerra; a da crise dos modelos básicos (o universal e o ocupacional) e da construção de uma nova protecção social.

Governo. O operariado urbano não tinha, até aí, qualquer sistema de prestação de cuidados de saúde. Por outro lado, à medida que a prosperidade aumentava, novos patamares de protecção social eram necessários e fundamentais à manutenção daquela. De acordo com Sakellarides (2006, p. 46):

Os termos deste “contrato social” … são claros no essencial: pagar quando se pode, para se receber segundo o que se precisa; pagar quando se pode, ao longo da vida, para se receber quando se necessita por se estar doente.

Este contrato social engloba as questões do emprego, do combate à pobreza, da protecção contra riscos e da igualdade de oportunidades.

Na opinião de Simões (2004), os sistemas de saúde organizados surgiram em finais do Século XIX e foram motivados pelos seguintes factores: acidentes de trabalho e doenças transmissíveis que afectavam os trabalhadores e reduziam os níveis de produtividade; número de mortes resultantes de doenças em tempo de guerra, muitas vezes mais mortíferas que os disparos do inimigo; o combate ao crescente movimento socialista na Europa, que através de caixas de seguro organizadas pelos sindicatos, ameaçava retirar importância e popularidade aos governos.

Estas reformas tiveram eco, nos anos seguintes, na Inglaterra (1897, 1906 e 1912 – 1914), na Nova Zelândia (1898), no império Austro-húngaro (final do século XIX), na Noruega (1909), na Suécia (1910), e na Dinamarca. E ainda, mais tarde, em 1936, na França, na época do Governo da Frente Popular, e nos Estados Unidos, no tempo do New Deal, de Roosevelt (Graça, 2000e).

Mas ainda antes da difusão dos sistemas de protecção social, coube à igreja católica adoptar uma posição sobre esta e outras matérias sociais, através da encíclica Rerum

Novarum, do papa Leão XIII, escrita em 1891, onde se pode ler que “…primeiro que

tudo é um dever da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade de ávidos especuladores”, ou ainda que “… o que um homem válido e na força da idade pode fazer, não será equitativo exigi-lo duma mulher ou duma criança” (cit. in Graça 2000e, p. 6).

Os hospitais franceses, apesar do alheamento inicial do poder central, vão crescer, como resultado da industrialização e dos movimentos sociais e demográficos que se lhe seguiram. Os possuidores de um seguro de doença e as vítimas de acidentes laborais passaram a afluir a esses estabelecimentos de saúde.

Em 1939, um terço da população francesa estava coberta por um seguro de doença. Depois da libertação, em 4 de Outubro de 1945, foi criada a Sécurité Social. Abrangia todos os cidadãos incapacitados para o trabalho e era financiada por contribuições obrigatórias de empregados e patrões. Estendeu-se, mais tarde, aos funcionários públicos, aos estudantes, aos militares, aos inválidos de guerra e aos assalariados agrícolas (Graça, 2000e). Em 11 de Outubro de 1946, a França foi o primeiro país da Europa a tornar obrigatória a medicina no trabalho. Constava de L’ordennance du 4 de

Octobre de 1945 o seguinte (cit. in Graça 2000e, p. 4):

La sécurité sociale est la garantie donnée à chacun qu’en toutes circonstances il disposera des moyens nécessaires pour assurer sa subsistance et celle de sa famille dans des conditions décentes. Trouvant sa justification dans un souci élémentaire de justice, elle répond à la préoccupation de débraser les travailleurs de l’incertitude du lendemain…

Le but final est la réalisation d’un plan qui couvre l’ensemble de la population du pays contre l’ensemble des facteurs d’insécurité…

Entretanto o hospital assume-se como o serviço de saúde por excelência, que presta cuidados diferenciados e não apenas acolhimento e controlo social. Só mais tarde, os problemas criados pela reestruturação urbana e pelo desenvolvimento industrial deram origem à adopção de medidas no sentido de organizar o Sector da Saúde, através de uma maior participação da sociedade civil, económica e política na organização e controlo de centros de saúde pública, medida em que o pioneirismo coube aos Estados Unidos. Só depois da II Guerra Mundial é que outros países abandonaram a filosofia de centrar a saúde pública nos hospitais.

Em 1948, nasceria, em Inglaterra, o National Health Service (Graça, 2000e), fundamentado no denominado Plano Beveridge20, apresentado ao parlamento em 1942, e concretizado quando era Ministro da Saúde Aneurin Bevan21. Com este passo criou-se o Estado Providência inglês, ou seja, um segundo eixo, por oposição ao modelo de Bismarck, de resolução dos problemas sociais, muito em particular a saúde, das classes mais desfavorecidas. É a génese do Welfare State no seu estado puro. A protecção social deixa de ser uma emergência para passar a constituir uma regra básica de regulação

20 William Henry Beveridge nasceu em 5 de Março de 1879, em Rangpur (actual Bangladesh) e morreu

em 16 de Março de 1963, em Oxford. Foi economista e reformador, dedicando a sua vida ao estudo das questões sociais.

21 Aneurin Bevan, galês, nasceu em 15 de Novembro de 1897 e morreu em 6 de Julho de 1960. Foi

membro do parlamento pelo Partido Trabalhista e Ministro da Saúde no governo de Clement Attlee. Filho de um mineiro, dedicou a sua vida às causas sociais, sendo identificado com a ala esquerda do seu partido político.

social, que conduz à intervenção estatal e à acumulação de riqueza, propiciando a eliminação das oscilações de mercado (Silva e Mattos, 2009).

A criação do NHS leva Graça (2000d, p. 9) a centrar a origem dos sistemas de saúde depois da II Guerra Mundial e não em finais do Século XIX:

…é só no Séc. XX, e mais acentuadamente depois da II Guerra Mundial, que se pode falar de

políticas e sistemas de saúde, com a universalização dos cuidados. A saúde (e, de um modo mais

geral, a protecção social da população activa e não activa) torna-se uma questão cada vez mais central na Europa Ocidental do pós-guerra.

O que distingue este modelo do de Bismarck é, principalmente, a oferta de cuidados ao universo da população e não apenas aos que trabalhavam e descontavam para o efeito. A partir de meados da década de 40 do Século XX a pressão sobre os governantes para uma maior intervenção do Estado nas questões sociais passa a ser bastante forte. O crescimento económico que se verificou até finais da década de 60, princípios da de 70, facilitou a adopção de medidas de protecção social.

Em 1948 deu-se também a criação da Organização Mundial de Saúde (OMS), por fusão da Organização Sanitária da Liga das Nações e da Organização das Nações Unidas para a Reabilitação. Posteriormente, juntou-se a Organização Pan-americana de Saúde. Nas décadas de 50 e 60 começa, nos países desenvolvidos, aquilo que Ferreira (1989) designa por segunda era da saúde pública, caracterizada pelo desenvolvimento de novas doenças, como as crónicas e degenerativas, as cardiovasculares, os tumores, os acidentes rodoviários e as perturbações mentais, entre outras. A primeira era havia sido caracterizada pelo predomínio das doenças infecciosas, parasitárias e profissionais, resultantes das más condições de vida e de trabalho. A mudança da primeira para a segunda era não ocorreu em todos os países ao mesmo tempo, havendo ainda alguns que estão em fase de transição.

Na década de sessenta do Século XX, os Estados Unidos, onde a medicina liberal prevalecia, criaram dois programas de seguro de doença: um para pessoas idosas, o

Medicare, e outro para pobres, o Medicaid. Foram ambos criados numa altura em que

era presidente Lyndon Johnson (Sakellarides, 2006).

Em 1978, realizou-se a Conferência Internacional sobre Cuidados de Saúde Primários de Alma Ata, marco importante na democratização da saúde e no desenvolvimento e enquadramento da actividade dos centros de saúde. Das conclusões da conferência ressalta o seguinte (OMS/UNICEF 1978, cit. in Ramos, 2010):

Os cuidados de saúde primários consistem na prestação de cuidados de saúde essenciais, … que desempenham a função principal e são a base do sistema de saúde, … Proporcionam o primeiro nível de contacto do indivíduo, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde

A contracção do crescimento económico na década de 70 pôs em causa a viabilidade económica dos regimes de protecção social e, de uma forma mais geral, do denominado Estado Providência. Em países como os Estados Unidos e Reino Unido, comandados, respectivamente, por Ronald Reagan e Margaret Tatcher, prevaleceu a ideia que era necessário fazer funcionar o mercado mais amplamente, garantindo uma maior participação dos privados, quer ao nível da produção dos cuidados de saúde, quer ao nível do seu financiamento. Os restantes países da Europa adoptaram também medidas que visavam aumentar a eficiência dos serviços de saúde, garantir a competição no mercado e separar a função de financiador da de prestador.

Do ponto de vista teórico, argumentava-se que a forte intervenção do Estado tinha reduzido drasticamente o papel dos privados e, consequentemente, prejudicado a inovação. Pinto (1991, p. 145), acerca desta alteração de filosofia tece a seguinte consideração:

Em última análise, argumentava-se (e argumenta-se ainda hoje) que ao “fracasso do mercado” (com que se justificava a crescente responsabilidade dos poderes públicos na regulamentação da actividade económica) se tinha substituído o “fracasso do governo”, que conduziria ao imobilismo e à “decadência” dos sistemas económicos ocidentais.

Costa (2002) afirma que a tentativa de reversão dos princípios universalistas de protecção social, nos países de economia central, se deveu às ameaças da globalização, que ficou associada à crise do Estado Providência. Mas a relativa solidez deste, possibilitou a aliança entre partidos das esferas socialista e social-democrata, o que permitiu resistir às mudanças anunciadas.

Em países como a França, a Alemanha, o Reino Unido, os Estados Unidos e a Itália, a despesa pública nas áreas sociais tinha verificado um aumento significativo, entre 1870 e 1994, tomando como referência o Produto Interno Bruto (PIB): em França passou dos 12,6% para os 54,9%; na Alemanha, dos 10% para os 49%; na Itália, dos 11,9% para os 53,9%, no Reino Unido, dos 9,4% para os 42,9% e nos Estados Unidos, dos 3,9% para os 42,9% (Silva e Mattos, 2009). Com a já mencionada contracção económica, alguns projectos sociais foram reajustados e alguns benefícios, em programas residuais, reduzidos, mas o Estado de bem-estar social resistiu (Costa, 2002). Foi, aliás, nas décadas de 70 e 80 do Século XX, que se assistiu à criação de diversos Serviços

Nacionais de Saúde na Europa: Itália – 1978; Portugal – 1979; Grécia – 1983; Espanha – 1986 (Barros e Gomes, 2002).

Gradualmente, o impulso liberal foi perdendo força. Segundo Sakellarides (2006), a política de “menos Estado” foi substituída pela de “melhor Estado”. Ou, como mencionam Barros e Gomes (2002, p. 66), houve que “reinventar a governação”. Apesar de tudo, a discussão em torno da necessidade de introdução de mudanças no Sector da Saúde não terminou. Esping-Andersen (cit. in Costa 2002) refere as falhas do mercado de trabalho que geram o aumento da procura dos sistemas de protecção social e localiza essas falhas no funcionamento do Estado Providência. Clayton & Pontusson (cit. in Costa 2002) mencionam a diminuição da capacidade dos sistemas de protecção social, resultante das transformações estruturais do capitalismo, perceberem os novos riscos e necessidades da população pobre. No entanto, apesar destas conclusões, parece um facto que a essência das medidas de natureza social caracterizadoras dos Estados de bem-estar social não desaparecera. Foi possível, aparentemente, encontrar pontos comuns que permitiram “pactos de regime” entre os grandes partidos socialistas e sociais-democratas, que por sua vez, asseguraram a manutenção de políticas sociais importantes.

Contudo, os últimos anos da primeira década do Século XXI ficaram definitivamente marcados pela crise financeira internacional e pela quase estagnação do crescimento económico nos países desenvolvidos, o que obrigou muitos deles a adoptarem medidas de contenção de gastos, com o objectivo de controlar o défice do Orçamento Geral do Estado, o que afectou também o Sector da Saúde. A lenta recuperação das economias e as restrições inerentes poderão conduzir à limitação de políticas sociais abrangentes. Do ponto de vista médico, o período em análise caracteriza-se pela forte evolução verificada no estudo da genética humana, do cancro, da imunologia, da virologia, da anatomia patológica, da psiquiatria, do transplante de órgãos, da cirurgia cardíaca, da cirurgia vascular, da gastrenterologia, da endocrinologia, da oftalmologia, da otorrinolaringologia, da ortopedia, da neurologia e da reabilitação.

É assim, neste período, que aparece o primeiro Estado Providência estruturado e consistente, obra de conservador – Bismarck – com preocupações sociais, essencialmente dirigidas para os que trabalham. A medida teve tal impacto, que foi repercutida em muitos países. Anos mais tarde, em 1948, nasce um segundo modelo de

sistema de saúde – modelo Beveridge –, desta vez dirigido a toda a população, que é também replicado em muitos países. A crise económica dos anos 70 do Século XX travou a euforia dos Estados Providência e alguns dos modelos adoptaram medidas liberalizantes no mercado da saúde. Estas iniciativas, muito contestadas, não tiveram grande sucesso. Mas a crise financeira internacional verificada já no Século XXI, obrigou à adopção de medidas tendentes à melhoria da eficiência dos sistemas e dos serviços de saúde. Foi este o longo caminho percorrido desde o homem primitivo, com a sua concepção sobrenatural da saúde e da doença, até aos modernos sistemas de saúde dos nossos dias.

No documento (Tese são final 1 frente e so ) (páginas 85-91)

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