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Nas argumentações favoráveis à plenitude do poder papal, o rito de coroação, unção e sagração dos reis e imperadores utilizado algumas vezes para marcar o caráter sagrado da função desempenhada por eles dentro da cristandade, foi considerado como uma prova da subdelegação do poder temporal de Deus para conduzir o povo cristão, ou seja, passando pelo papa, ou seja, o poder temporal dos reis era um poder subdelegado. Embora fosse um único rito que conferia o caráter sagrado ao poder temporal, este era divido em três partes: coroação, unção e sagração. Algumas vezes este rito apareceu descrito pelos medievais apenas como rito de unção dos reis. O óleo sagrado utilizado para ungir foi a parte que mais se destacou dentro do rito, pois, especificamente, esta parte do rito levava o nome de unção real.

Nos textos de São Paulo aparece claramente a afirmação que todo poder provém de Deus. Este tipo de compreensão da Idade Média contrasta com afirmações de outros séculos que procuraram explicar a origem de poder sem fazer qualquer menção a seu aspecto sobrenatural. O texto de São Paulo que fizemos menção se expressa assim:

Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. (Romanos 13, 1-2).

A coroação, unção e sagração de reis pelo papa não eram gestos meramente religiosos. Se os primeiros papas agiram pensando apenas em conferir um caráter sagrado à função real, papas posteriores utilizavam este ritual como um argumento para afirmarem que era o poder espiritual que conferia legitimidade ao poder temporal.

Segundo Schmitt e Le Goff (2002, p. 398), nem todos os reis eram ungidos. Esta unção era reservada aos imperadores, mas nem todos os imperadores na Idade Média foram ungidos.

A unção encontrou sua fundamentação no Antigo Testamento. A monarquia da Idade Média usou como fonte inspiradora o modelo da monarquia judaica presente nos livros do Antigo Testamento. Foi na unção dos reis e dos juízes da monarquia judaica que veio a idéia deste gesto. Segue a narração da primeira unção, no Antigo Testamento, que foi repetida sobre os reis judeus:

Então Samuel pegou o frasco de azeite e o derramou sobre a cabeça de Saul, beijou-o e disse-lhe: “Não foi Iahweh que te ungiu como chefe do seu povo, Israel? Tu és quem julgará o povo de Iahweh e o livrarás das mãos dos seus inimigos ao redor. E este é o sinal de que Iahweh te ungiu como chefe da sua herança”. (1Samuel, 10, 1).

A unção dava ao imperador uma característica que o destacava frente aos outros homens. A unção colocava o imperador entre os sacerdotes, sem ser um deles. Apenas os sacerdotes eram habitualmente ungidos. Nesta unção era conferida ao sacerdote uma missão especial na Igreja: a de zelar pela fé e expandi- la.

Foram os próprios sacerdotes (especialmente o papa) que, ao prosseguirem no costume da unção, criaram nos imperadores mais uma prerrogativa para poderem interferir na Igreja. Os imperadores se sentiam revestidos de uma natureza sagrada peculiar, por isso não aceitavam a convocação de um concílio da Igreja para julgar um imperador, considerando este ato uma intromissão.

Importante obra para entender esta tendência de sacralizar a função do rei e dos imperadores é “Os Dois Corpos do Rei” de Kantorowicz (1998). Segundo Kantorowicz, na definição sobre a função do rei utilizou-se dos esquemas da

teologia, como, por exemplo, as duas naturezas de Cristo e a teoria do corpo místico da Igreja, para descrever o rei e o reino. A linguagem teológica foi preferida nos tratados de direito, com isso ocorreu uma divinização do direito e do rei:

Quem quer que esteja familiarizado com as discussões cristológicas dos primeiros séculos da era cristã ficará surpreso com a similaridade de discurso e pensamento nas escolas de direito, por um lado, e nos primeiros Concílios da igreja, por outro; da mesma forma, com a fidelidade com a qual os juristas ingleses aplicavam, mais inconsciente que consciente, as definições teológicas correntes ao definirem o caráter da realeza. (KANTOROWICZ, 1998, p. 29).

De outra forma, Kantorowicz (1998, p. 120) demonstrou que o papado assumiu cada vez mais a fisionomia de uma monarquia. O resultado foi um processo de inversão contínuo, no qual ocorreu a imperialização do papado e a sacralização do estado secular.

Ockham (2002, p. 73) citou as unções do Antigo Testamento. Ele começou citando e demonstrando que a fonte inspiradora das unções que os papas realizaram que estavam nas unções do povo judeu. A unção tornou-se um argumento para afirmar que só o papa podia confirmar a eleição do imperador. Ockham não aceitou essa posição, o poder de governar era conferido pela escolha legítima e não pelo ritual de unção, coroação e sagração do escolhido. O Inceptor

Venerabilis defendeu que como o império tinha origem na vontade do povo romano,

representado pelos seus príncipes, a escolha do imperador valia por si só. O franciscano estava sempre apontando em seus argumentos a finalidade do império, por isso afirmou que para evitar problemas sucessórios que prejudiquem a todos, a eleição devia conferir direito de administração plena (OCKHAM, 2002, p. 220).

Apesar da vontade, manifestada pelos papas, de exercer a supremacia, o próximo século conheceu o fortalecimento dos reis e seus reinos, quebrando uma estrutura de governo da cristandade elaborada e querida pelos partidários do papa.