• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – A crítica ao conceito saussuriano de língua

2.2 A crítica de Benveniste

Émile Benveniste foi aluno de Meillet e, principalmente por meio de seu mestre, conheceu os ensinamentos de Saussure, sobretudo aqueles concernentes à Gramática Comparada. Em uma entrevista a Pierre Daix, publicada no livro Problèmes de Linguistique Générale, Benveniste afirma:

Ele [Meillet] ensinava estritamente a gramática comparada. Devemos, aqui, remontar um pouco além, porque era através dele que o ensinamento de Ferdinand de Saussure, em Paris, era, em partes, transmitido aos discípulos de Meillet. Isso tem uma importância muito grande para quem é, de certo modo, parte da bibliografia intelectual francesa, embora o Saussure que lecionara por dez anos na École des Hautes Etudes não fosse o Saussure cujo nome agora ressoa em todos os lugares. (BENVENISTE, 1974 [1968], p. 11- 12).34

Benveniste, nesse sentido, é um grande conhecedor e crítico da teorização saussuriana, tanto no que diz respeito à Gramática Comparada, como no que tange à Linguística Geral. Percebemos, ao nos dedicar à leitura de alguns de seus trabalhos35, que há, por sua parte, um

inegável reconhecimento à trajetória teórica percorrida por Saussure; entretanto, o linguista

34 Tradução nossa : « Il [Meillet] enseignait strictement la grammaire comparée. Il faut ici remonter un peu plus

haut, parce que, à travers lui, c’est l’enseignement de Ferdinand de Saussure à Paris qui a été en partie transmis aux disciples de Meillet. Ceci a une très grande importance pour quiconque fait en quelque sorte la biographie intellectuelle de la linguistique française, quoique le Saussure qui a enseigné pendant dix ans à l’École des Hautes Études n’ait pas été le Saussure dont le nom retentit aujourd’hui partout. ».

35 Os trabalhos analisados foram aqueles publicados nas coleções “Problemas de Linguística Geral” (1966) e

francês36 apresenta críticas às reflexões saussurianas, propondo uma continuação do legado

deixado pelo genebrino, porém, de forma a conceber sua própria teoria. Logo, há uma peculiaridade na apreciação feita por Benveniste a respeito do CLG, a qual é evidenciada pelo modo de escrita do autor e pela forma como ele se utiliza dos impasses deixados por Saussure para indicar novos caminhos a serem tomados.

Isso pode ser notado, por exemplo, no trecho a seguir do trabalho intitulado Coup d’œil sur le développement de la linguistique, em que Benveniste, indiretamente, reconhece as críticas dirigidas ao método de trabalho delimitado por Saussure para a Linguística, no entanto, procura desmitificar essa compreensão demasiadamente estreita do conceito de língua, que muitas vezes é estabelecida a partir das reflexões saussurianas.

Temos a impressão de que, para os linguistas de hoje, os fatos de linguagem são transformados em abstrações, tornando-se materiais inumanos de construções algébricas ou servindo de argumentos às áridas discussões de método; que a Linguística se alinha às realidades da linguagem e se isola das outras ciências humanas. Ora, é tudo o oposto. Constatamos, ao mesmo tempo, que esses métodos novos da Linguística são exemplos e mesmo modelos para outras disciplinas, que os problemas da linguagem, agora, são de interesse para diversas e sempre numerosas especialidades, e que uma corrente de pesquisas leva as ciências humanas a trabalhar na mesma linha dos linguistas. (BENVENISTE, 1966 [1953], p. 18, grifos nossos).37

O próprio Benveniste se vale desse mesmo tipo de abstração em sua teorização, utilizando-se do sistema linguístico delimitado por Saussure. Contudo, ele não deixa de destacar que existem críticas a respeito disso, as quais destaca na primeira frase do trecho mencionado; ao que parece, trata-se de uma crítica à teorização de Saussure, mesmo que não haja menção de seu nome ou de sua obra. Afirmamos isso, pois, como mostramos anteriormente, com Meillet, uma das maiores reprovações38 vinculadas ao corte epistemológico saussuriano é concernente à suposta exclusão dos fatos empíricos-sociais da delimitação do objeto da Linguística e à consequente formalização e abstração da língua, enquanto um sistema de signos.

36 Embora Benveniste tenha nascido em Alep, na Síria, sua nacionalidade é francesa.

37 Tradução nossa : « On a l’impression que, pour les linguistes d’aujourd’hui, les faits du langage sont

transmués en abstractions, deviennent les matériaux inhumains de constructions algébriques ou servent d’arguments à d’arides discussions de méthode ; que la linguistique s’éloigne des réalités du langage et s’isole d’autres sciences humaines. Or c’est tout l’opposé. On constate en même temps que ces méthodes nouvelles de la linguistique prennent valeur d’exemple et même de modèle pour d’autres disciplines, que les problèmes du langage intéressent maintenant des spécialités très diverses et toujours plus nombreuses, et qu’un courant de recherches entraîne les sciences de l’homme à travailler dans le même esprit qui anime les linguistes. ».

38 Parece haver um paradoxo: enquanto, para alguns autores, o estabelecimento da língua enquanto um objeto de

estudos matematizado e separado dos fenômenos sociais consiste na grande inovação de Saussure, para outros, esse mesmo aspecto é o principal ponto criticável da teorização do linguista.

Em vista disso, destacamos, a seguir, uma análise de Benveniste, que busca discutir um fator que colabora para a compreensão de que Saussure excluiu os fatores externos à língua de sua delimitação. Trata-se da questão da história, cujo lugar é, muitas vezes, mal- entendido no seio da teorização de Saussure. A respeito disso, Benveniste explica:

A novidade do ponto de vista saussuriano, um dos que agiram mais profundamente, foi a tomada de consciência de que a própria linguagem não comporta nenhuma dimensão histórica, que ela é sincronia e estrutura, e que ela funciona apenas em virtude de sua natureza simbólica. Não é tanto a consideração histórica que é condenada, desta forma, mas uma maneira de “atomizar” a língua e de mecanizar a história. (BENVENISTE, 1966 [1954], p. 5).39

Essa retomada, feita por Benveniste, do lugar da história nas reflexões saussurianas não ocorre sem motivo. Por meio dela, o linguista busca explanar que não é a história em si que é condenável no arcabouço teórico de Saussure, mas uma concepção de língua que a determine isoladamente, isto é, de forma atomizada.

Ademais, como mostramos no tópico anterior, Meillet tece críticas ao pensamento de Saussure, por considerar que este separa as modificações ocorridas em uma língua das condições exteriores ao sistema linguístico. Benveniste, que foi aluno de Meillet e discípulo de Saussure, retoma esse ponto de discussão de modo a dar o devido lugar do tempo (um elemento exterior, na concepção saussuriana de mudança linguística), sem, contudo, desmerecer o valor do sistema e da natureza dos elementos da língua:

O tempo não é o fator da evolução, ele é apenas o quadro. A razão da mudança que atinge tal elemento da língua está, de uma parte, na natureza dos elementos que a compõem em um momento dado, e, de outra, nas relações de estrutura entre esses elementos. A constatação bruta da mudança e a fórmula de correspondência que a resume dão lugar a uma análise comparada de dois estados sucessivos e das disposições diferentes que os caracterizam. A diacronia é, então, reestabelecida em sua legitimidade, enquanto sucessão de sincronias. Isso ressalta a importância primordial da noção de sistema e da solidariedade restaurada entre todos os elementos de uma língua. (BENVENISTE, 1966 [1954], p. 5, grifo nosso).40

39 Tradução nossa : « La nouveauté du point de vue saussurien, un de ceux qui ont le plus profondément agi, a

été de prendre conscience que le langage en lui-même ne comporte aucune dimension historique, qu’il est synchronie et structure, et qu’il ne fonctionne qu’en vertu de sa nature symbolique. Ce n’est pas tant la considération historique qui est condamnée par là qu’une manière d’« atomiser » la langue et de mécaniser l’histoire. ».

40 Tradução nossa : « Le temps n’est pas le facteur de l’évolution, il n’est que le cadre. La raison du changement

qui atteint tel élément de la langue est d’une part dans la nature des éléments qui la composent à un moment donné, de l’autre dans les relations de structure entre ces éléments. La constatation brute du changement et la formule de correspondance qui la résume font place à une analyse comparée de deux états successifs et des agencements différents qui les caractérisent. La diachronie est alors rétablie dans sa légitimité, en tant que succession de synchronies. Cela fait déjà ressortir l’importance primordiale de la notion de système et de la solidarité restaurée entre tous les éléments d’une langue. ».

Ao tratar da relação entre tempo e evolução, Benveniste faz referências às reflexões de Saussure a respeito da mutabilidade do signo, ou seja, das mudanças linguísticas. Se retomarmos o conteúdo do CLG, veremos que, de acordo com Saussure, para que uma mudança ocorra, são necessários dois fatores: o tempo e a massa falante:

Se se tomasse a língua no tempo, sem a massa falante – suponha-se o indivíduo isolado que vivesse durante vários séculos – não se registraria talvez nenhuma alteração; o tempo não agiria sobre ela. Inversamente, se se considerasse a massa falante sem o tempo, não se veria o efeito das forças sociais agindo sobre a língua. (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 93, grifo nosso).

A crítica de Benveniste consiste em, de fato, reestabelecer a relevância do tempo no esquema dos fatores necessários à mudança do signo linguístico em Saussure. Desse modo, retira desse elemento o estatuto de “fator de evolução” e o coloca como o “quadro” que permite que as mudanças ocorram. Nesse sentido, para o autor, os fatores responsáveis pelas modificações consistem i) na natureza dos elementos que compõem um estado de língua, e ii) no modo de funcionamento do sistema linguístico, isto é, as relações de valor e oposição. Entretanto, não podemos esquecer, ainda, os fatores que são elencados pelo próprio Saussure como responsáveis pela evolução da língua: a massa falante e as forças sociais.

Benveniste não desconsidera a importância desses dois fatores para a concepção de língua de Saussure, ao relacioná-la à linguagem. Segundo ele,

[...] Saussure percebeu que estudar uma língua conduzia inevitavelmente a estudar a linguagem. Cremos que podemos alcançar diretamente o fato de língua como uma realidade objetiva. Na verdade, nós o conhecemos [o fato de língua] apenas a partir de um certo ponto de vista, que deve ser definido de início. Deixemos de acreditar que o que apreendemos na língua é um objeto simples, que existe por si mesmo, e que é suscetível de uma captura total. A primeira tarefa é mostrar ao linguista “o que ele faz”, a que operações preliminares ele se dedica inconscientemente quando ele aborda os dados linguísticos. (BENVENISTE, 1966 [1963], p. 38, grifos nossos). 41

Benveniste vê na trajetória de Saussure a percepção de uma relação necessária entre sua concepção de língua e aquilo que constitui também a linguagem – ou seja, os fatores que são exteriores ao sistema. Tal como é exposto no CLG, Benveniste considera que a língua não

41 Tradução nossa : « […] Saussure a vu qu’étudier une langue conduit inévitablement à étudier le langage. Nous

croyons pouvoir atteindre directement le fait de langue comme une réalité objective. En vérité nous ne le saisissons que selon un certain point de vue, qu’il faut d’abord définir. Cessons de croire qu’on appréhende dans la langue un objet simple, existant par soi-même, et susceptible d’une saisie totale. La première tâche est de montrer au linguiste « ce qu’il fait », à quelles opérations préalables el se livre inconsciemment quand il aborde les données linguistiques. ».

é passível de uma captura completa, uma vez que ela só pode ser definida a partir de determinado ponto de vista. Ao se posicionar dessa forma, Benveniste estabelece, consequentemente, uma crítica às compreensões, a respeito da teorização de Saussure, que a consideram como um objeto passível de ser totalmente apreendido.

Na teoria do próprio Benveniste, essa relação entre língua, linguagem e sociedade é reafirmada. Para o autor, a língua e a sociedade têm estruturas análogas, que funcionam de forma semelhante e que dependem, necessariamente, do contato com elementos de uma comunidade para se estabelecerem. O autor afirma: “A língua nasce e se desenvolve no seio da comunidade humana, ela se elabora por meio do mesmo processo que a sociedade, pelo esforço de produzir os meios de subsistência, de transformar a natureza e de multiplicar os instrumentos”42 (BENVENISTE, 1974 [1968], p. 95).43

Para o autor, então, a língua não parece se constituir como um elemento estritamente formal, separado das condições e dos elementos externos que lhe atravessam e lhe constituem. Com base nisso, é possível notar que a crítica de Benveniste ao conceito saussuriano de língua se dá de modo a admitir que as interpretações que o consideram como um objeto que não possui relação com os dados empíricos têm fundamento. Entretanto, o linguista francês procura destacar os elementos da teorização de Saussure que evidenciam a relação do sistema com os dados linguísticos e com a linguagem, de modo que, para além disso, estabelece seu próprio ponto de vista, buscando conceituar uma relação entre a língua, a sociedade e o ato individual.

Assim, destacamos o lugar da crítica de Benveniste no seio de nosso trabalho, tendo em vista que se trata de uma análise bastante peculiar a respeito da teorização de Saussure, dada a intimidade teórica existente entre os dois linguistas. As pontuações de Benveniste que buscam tirar a teorização de Saussure de um lugar exclusivamente teórico se dão em resposta às críticas que colocavam o arcabouço saussuriano nesse mesmo lugar.

Como já mostramos, entre essas críticas é possível encontrar, de certa forma, os trabalhos de Meillet44; contudo, há também outros autores renomados que se posicionam de

modo semelhante. Considerando isso, julgamos pertinente voltarmos nosso olhar ao modo

42 Tradução nossa : « La langue naît et se développe au sein de la communauté humaine, elle s’élabore par le

même procès que la société, par l’effort de produire les moyens de subsistance, de transformer la nature et de multiplier les instruments ».

43 Diferentemente de Saussure, Benveniste se encarrega do estudo da relação entre língua e sociedade. Em sua

obra Le Vocabulaire des Instituitions Indo-Européennes, ele apresenta um estudo sobre como o léxico de uma língua pode revelar as estruturas e concepções de uma sociedade.

44 Embora tanto a crítica de Meillet como a de Benveniste se baseiem na relação entre língua e sociedade, a de

Benveniste se diferencia pela incidência do marxismo em suas considerações. Para ele, a língua pode revelar as infraestruturas e as superestruturas de uma sociedade, no sentido estabelecido por Marx.

como o conceito de língua foi compreendido e divulgado no Brasil. Para tanto, pautar-nos- emos nos trabalhos de um autor que possui uma interlocução com as reflexões de Saussure e cujos trabalhos tiveram bastante influência em momentos importantes da introdução e, especialmente, da circulação da teorização de Saussure no país: Joaquim Mattoso Câmara.