• Nenhum resultado encontrado

m³/hab.ano (vazão média)

6.11 A crise hídrica sob a ótica da dinâmica do poder

Buscou-se demonstrar neste capítulo como a crise hídrica foi entendida e enfrentada pelo governo do estado, órgãos gestores e Sabesp. Analisando as obras efetuadas pelo aparelho estatal e Sabesp e pela escolha das prioridades frente às necessidades da bacia efetuando as interligações emergenciais para ao remanejamento do grid de abastecimento da RMSP e novas transferências de outras bacias se mostrou como a opção mais problemática. Curiosamente, a obra mais cara prevista não iria trazer alívio para a situação de pressão no Sistema Cantareira no curto prazo. Uma hipótese é que a Sabesp utilizou de seu poder pragmático, justificando a inevitabilidade da obra, para numa situação de emergência ter acesso a mecanismos financeiros e o relaxamento do processo ambiental legal com justificativa de alívio da situação. Sendo assim a crise hídrica foi antes de tudo uma janela de oportunidade para a Sabesp, ao reunir condições ideais para que fizesse obras complexas e altamente controversas, extremamente custosas sem encontrar muita resistência. Além disso, pelo seu caráter

Correio Popular

emergencial, contou com financiamento do governo federal, ou seja, da sociedade brasileira como um todo. A literatura aponta pelo menos alguns motivos que demonstram como atores poderosos afetam a governança policêntrica ao manipular as diversas formas de poder. Destacamos aqui os motivos selecionados por Morrison et al (2017): redistribuição dos riscos aos mais vulneráveis, distorção de problemas para evitar ações, criação e exploração de expectativas irreais e desvio de problemas complexos.

A crise hídrica não ocorreu de forma imprevisível e vinda do nada, mesmo que os gestores tenham insistido na baixíssima probabilidade de ocorrência de eventos de tal magnitude. Obviamente que o processo de estiagem contribuiu para o agravamento da situação, mas o sistema de governança local já estava com problemas estruturais sérios até a ocorrência do evento extremo. Os sistemas de distribuição já se encontravam no limite, e a inação do estado e dos demais atores não é um processo novo. Sendo assim, o processo que culminou com a crise hídrica é resultante de um padrão histórico de adiamento de problemas difíceis. Devido ao seu papel como instância centralizadora de poder, os atores políticos foram ao longo do tempo buscando evitar o enfrentamento de problemas. O processo de urbanização da RMSP, aliado ao descaso histórico com suas águas em um período de pouca democracia, consolidou o paradigma hidráulico como modelo principal de abastecimento público. Ao invés de solucionar os problemas em suas áreas, buscando utilizar suas fontes de água em seu próprio território, as soluções mais fáceis estavam ligadas a construção de enormes represas e infraestruturas hídricas para captação em outras bacias. Isso ia de encontro ao modelo desenvolvimentista, como demonstrado anteriormente.

Este modelo de uso e ocupação do solo e de oferta de água em São Paulo fez com que a metrópole virasse as costas para seus rios e mananciais, priorizando a transferência de recursos de outros locais. É notório e público que a cidade de São Paulo possui milhares de quilômetros de rios canalizados que, devido a impermeabilização e drenagem da cidade, sofrem enchentes recorrentes, mas que poderiam ser utilizados de forma mais sustentável. Da mesma forma, a ocupação dos mananciais públicos de abastecimento, como às margens da Represa Billings e Guarapiranga contou com a conivência do poder público por décadas. Sendo assim, podemos caracterizar estes processos como sendo resultado da redistribuição dos riscos aos mais vulneráveis. No

caso da crise hídrica, vimos que a população mais carente foi o setor da sociedade que mais sofreu (seja com a redução da pressão, impactos ambientais de obras, etc) e é este mesmo estrato da população que potencialmente terá que absorver grande parte dos impactos e riscos das mudanças climáticas. A redução da vulnerabilidade é parte integrante da capacidade adaptativa e da resiliência das cidades frente às mudanças climáticas e deveria estar no centro das políticas de recursos hídricos e uso do solo, como forma de se evitar custos futuros (humanos e financeiros).

Pode-se expressar a capacidade adaptativa de um sistema de governança de diversas formas, como visto ao longo desta tese. Há uma relação inequívoca entre participação na tomada de decisão e conhecimento. Desta maneira, maiores níveis de capacidade adaptativa significam processos mais democráticos, transparentes e participativos em conjunto com a utilização das mais avançadas fontes de conhecimento e acesso a estas informações. Diametralmente oposto a esta situação temos sistemas com baixo nível de capacidade adaptativa onde existem baixos níveis de participação e democracia com baixos níveis de acesso ao conhecimento e informações técnicas. Este cenário geraria uma adaptação problemática frente a complexidade dos problemas, por centralizar a tomada de decisão e não ser calcado na melhor técnica e conhecimento. Um terceiro cenário seria a ocorrência de altos níveis de conhecimento, mas com baixa participação, levando ao que é comumente chamado de isolamento tecnocrático.

O Estado de São Paulo foi o berço das experiências mais inovadoras em termos de gestão hídrica e que abriram caminho para a transformação da forma como gerimos os recursos hídricos em todos os níveis a partir da década de 90. Como demonstrado por Abers (2010), a tecnocracia paulista foi capaz de construir uma “autoridade prática” em um ambiente institucional caracterizado mais por uma sobreposição e competição entre os diversos níveis do que cooperação. A bacia do PCJ, principalmente pela atuação do Consórcio PCJ e de seu corpo técnico espalhado nos órgãos municipais, ainda possui um papel de referência técnica e política muito forte junto a burocracia regional. Da mesma forma, a bacia do Alto Tietê possui também um papel central principalmente pelo seu corpo técnico vinculado ao Sistema Ambiental Paulista em órgãos como DAEE e CETESB. A centralização demonstrada pelo governo do Estado em um momento de crise demonstrou ser maléfica ao sistema de governança, se traduzindo em ações pouco

legítimas e questionamentos por parte dos outros membros da rede. Isso pode levar a um recrudescimento do fenômeno de isolamento tecnocrático. O estado fez tudo o que queria para cumprir sua agenda que julgava a melhor para lidar com a crise, enfrentando resistência pontual nas arenas deliberativas. A demonstração de poder, ao atropelar alguns ritos e processos ambientais, ficou clara nos casos das transposições dentro do estado. O conflito federativo com o Rio de Janeiro, somente resolvido dentro do gabinete de um ministro do STF, demonstrou que só encontrou resistência em arenas onde não possuía um poder designado. Isso se mostrou claro também no processo de renovação da outorga do Sistema Cantareira. Se não fosse pela dupla dominialidade de alguns corpos hídricos que compõe o Sistema Cantareira, ou em períodos de menor acirramento político, talvez as regras operativas seguissem o padrão anterior, com pouca ou nenhuma mudança.

Neste momento cabe destacar alguns pontos do estudo de Lemos (1998) ao analisar o caso da luta contra a poluição em Cubatão e a aliança entre tecnocracia e movimentos sociais na década de 1980 e 1990. Para a autora, a aliança entre a tecnocracia progressista dos órgãos de controle ambiental do estado e movimentos sociais populares demonstra como o estado e grupos de pressão podem se relacionar, sem cooptação e confronto, em prol de um objetivo em comum. No entanto, o sucesso daquele movimento foi facilitado por duas condições. A primeira era uma tecnocracia que acreditava que fomentar a participação popular não significava controlar as demandas destes movimentos e que soube identificar uma agenda em comum que possuía maiores chances de sucesso quando os dois grupos unissem forças. No caso da crise hídrica paulista, apesar do mesmo objetivo em comum, há uma oposição momentânea entre atores estatais, movimentos sociais e outros atores na governança hídrica. Tal cisão temporal foi fomentada principalmente pelo caráter centralizador das ações do governo do estado que, ao invés de buscar a construção de soluções junto aos atores da governança, atuou como uma hierarquia centralizadora. Sendo assim, deve-se concordar com as avaliações que caracterizam o sistema hídrico brasileiro como fragmentado ao invés de policêntrico (Pahl-wostl e Knieper, 2014). Para que exista uma evolução rumo a um regime mais policêntrico, deve-se trabalhar para que a autoridade, poder e funcionalidade dos atores estejam igualmente distribuídas em todos os níveis,

gerando múltiplos centros de decisão que cooperem entre si. Isso é um grande desafio em países federalistas, como demonstrado amplamente na literatura (Adelman e Engel, 2007; Black, 2008; Koontz et al., 2015).

7 Considerações Finais

Para entender a governança hídrica e sua capacidade adaptativa frente a eventos extremos esta tese analisou o enfrentamento de uma crise hídrica que teve como gatilho um período de estiagem que afetou os principais reservatórios de São Paulo. A crise hídrica foi um anúncio do tipo de desafio que está posto no futuro com a intensificação na ocorrência de eventos climáticos extremos. O enfrentamento da crise pelos diversos níveis institucionais demonstrou sérios problemas da governança hídrica em termos de adaptabilidade, transparência e efetividade, mas principalmente de coordenação entre os diversos atores e níveis institucionais em um cenário institucional complexo. A segurança hídrica em São Paulo, principalmente na RMSP, está longe de ser alcançada e talvez tenhamos perdido uma janela de oportunidade única para avançarmos na institucionalidade exigida para lidarmos com a incerteza oriunda das mudanças climáticas.

A nova legislação sobre recursos hídricos ainda não foi capaz de resolver alguns problemas de coordenação e incentivos em diversas escalas. Na escala local, as prefeituras responsáveis pela dinâmica do uso do solo. Em uma escala regional, a coordenação dentro de uma bacia hidrográfica através dos comitês mostra limites para influenciar os níveis locais e pouca cooperação com as bacias vizinhas ou que possuem uma ligação fundamental, como no caso das transposições. Na escala estadual, a centralização das ações das agências estaduais demonstra que a devolutiva de poder não foi de fato como imaginada durante a reforma hídrica. Em suma temos uma governança pendular que funciona com alguma estabilidade quando não há grandes conflitos, mas que se demonstrou extremamente frágil em tempos de crises, com tendência ao centralismo do poder nas mãos da burocracia estatal.

A crise hídrica foi um momento fértil para a formação de redes de contatos entre pesquisadores e movimentos sociais e políticos e ambientalistas que estavam dispersos na miríade de organizações sociais academia mesmo tendo um tema em comum. Tais grupos conseguiram produzir muitas reflexões, diversas análises e diversas recomendações, mas possuíam o mesmo sentimento em comum: a impermeabilidade

do processo político para internalizar essas contribuições de atores fora da burocracia estatal.

O que ficou claro analisando as ações relativas à crise hídrica é a continuação de um modelo baseado na busca de novas fontes de água para a região metropolitana de São Paulo. O paradigma hidráulico ainda se mostra muito presente, principalmente dentro da comunidade epistêmica dos recursos hídricos onde oposição e status quo advogam juntos pela continuação desse modelo.

O enfrentamento da crise pelo Estado seguiu o roteiro das crises comuns, como explicado por Boin et al. (2009), nas arenas políticas. Em um primeiro momento se minimiza ou se nega a existência de uma crise. Em seguida há o reconhecimento da crise, mas apenas quando a situação se torna insustentável ou devido a exigências burocráticas e jurídicas. A partir deste momento, a estratégia passa a ser a minimização do desgaste político dos atores e tentativa de sustentação de uma determinada narrativa.

A janela de oportunidade para mudança institucional fundamental exigida frente aos novos desafios e a complexidade da situação não foi suficiente para que os atores conseguissem influenciar diretamente o caminho escolhido pelo Governo do estado e seus atores. A análise demonstrou como o Estado utilizou de diversas formas de poder, se valendo de uma posição centralizadora na gestão de recursos hídricos em situações de crise. É imperioso buscar uma nova institucionalidade que permita uma devolutiva de poder para escala mais adequada. O esvaziamento dos comitês de bacia uma vez que são instâncias ainda com baixa capacidade de influência, dominado principalmente por atores ligados às empresas de saneamento e aparato estatal é apenas o reflexo do centralismo do poder. Uma vez que os atores sociais não conseguem vislumbrar a possibilidade de mudança nas arenas deliberativas, a tendência é de abandono destas em prol de outras estratégias.

A forma como os atores e organizações enquadram os problemas e situações reflete nas ações propostas para soluções de seus problemas. Conforme visto, as instituições, cultura e modelos mentais possuem influência significativa nos processos tomada de decisão. A relativa homogeneidade dos gestores hídricos em função da sua formação e atuação profissional possibilita uma menor flexibilidade em relação ao que é

considerado solução ou não. A legitimidade epistêmica possuiu uma grande influência no modo como as narrativas foram sendo construídas ao longo do tempo.

As soluções do lado da demanda ainda são ínfimas se comparadas às experiências internacionais. Obviamente há uma situação de ganha-ganha quando se propõe a expansão da oferta hídrica através de novas fontes de água. Tanto a empresa de saneamento que vai possuir mais e ganham as empresas que vão construir esses projetos, sem contar a visibilidade e política de obras de infraestrutura. Obras de saneamento e de gestão de demanda não possuem a mesma visibilidade de obras de infraestrutura como represas para novos sistemas de abastecimento. As experiências de outros países demonstram a impossibilidade de continuação desse modelo principalmente pelo aumento da complexidade da questão ao se incluir cada vez mais territórios adjacentes a bacia. Sendo assim, as soluções buscando a eficiência hídrica são muito mais eficientes e possuem custo benefício maior. No entanto como o cálculo das soluções apresentadas durante a crise hídrica é extremamente limitado, desconsiderando o real custo destas obras (em termos ecológicos e sociais), tais soluções possuem menor prioridade.

Em suma, esta tese mostrou que não houve uma mudança fundamental na gestão dos recursos hídricos em São Paulo. As mudanças experimentadas e políticas foram simplesmente mudanças incrementais e de ajuste pequenos. Mesmo com a demanda da sociedade civil por mudanças mais profundas e drásticas devido à assimetria de poder e centralismo das decisões no poder do estado ainda não foi possível.