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7. POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO DISCURSO

7.2. O logos: o raciocínio como representação da realidade

7.2.1. A descrição narrativa

Esse procedimento discursivo se assemelha à comparação e aparece de maneira sistemática nos editoriais do JMN com a intenção de, ao descrever um fato ou contar uma história,

reforçar uma verdade ou produzi-la. Revela-se, portanto, como uma espécie de raciocínio e, por isso, trata-se de um recurso representativo do logos enquanto demonstração retórica. Em relação à semelhança com a comparação, a descrição narrativa tem suas particularidades, servindo para desenvolver todo um raciocínio dito por analogia e produzir um efeito de

exemplificação. Considerando a questão do espaço e sem querer tornar o texto enfadonho,

nem muito menos ter a pretensão de esmiuçar todas as ocorrências do corpus, escolhemos, para efeito de análise textual, três fragmentos significativos que demonstram o fenômeno da descrição narrativa. Eis o primeiro:

Em 1964, quando eclodiu o Golpe Militar, o então governador Petrônio Portella era um dos principais aliados do presidente João Goulart (Jango), apesar de militarem em partidos antagônicos no plano nacional. Alegando o superior interesse do Estado, Petrônio logo se aliaria ao Planalto e conseguiria algumas obras importantes e dinheiro

para garantir “a saúde financeira do erário”. (ANEXO 01, p. 248).

Nesse excerto, observamos o desenrolar de ações dos sujeitos de forma sucessiva e contínua o que, a princípio, poderia caracterizar o modo de organização discursivo narrativo, quais sejam: os acontecimentos estão inscritos numa dimensão espaço-temporal, pois se referem a uma situação vivida pelo Brasil e, simultaneamente, pelo estado do Piauí (noção de espaço), no ano de 1964, quando explodiu o golpe militar (noção de tempo), na qual o então governador Petrônio Portella – a princípio aliado do presidente João Goulart – muda de lado e passa a apoiar os militares, supostamente em troca de obras e recursos para o Piauí (sucessão de acontecimentos correlacionados e tematicamente encadeados com começo e fim).

Tal esboço de narrativa, no entanto, carrega consigo uma intencionalidade, ou seja, ao narrar esse acontecimento histórico relativo à vida política do Piauí, o Euc procura demonstrar uma predisposição, até então atribuída ao estado, de estar constantemente mendigando obras e recursos junto ao governo federal. Muitas dessas obras, prometidas em troca de apoio político, apenas eram iniciadas e ficaram inacabadas ao longo dos tempos.

O próprio título do editorial – Uma nova história – já indica um rompimento com essa prática através de novos acontecimentos, novos eventos, ou seja, novas narrativas. O alinhamento político existente entre o governador Wellington Dias e o presidente Lula, ambos pertencentes ao PT – Partido dos Trabalhadores – é apresentado como o início de uma nova era na qual a proximidade e a afinidade política seriam elementos assecuratórios de ações políticas eficazes

e transformadoras. Percebe-se, portanto, no discurso do editorial, uma organização de interesses encaminhados para um objetivo: a instauração de uma expectativa positiva em relação ao segundo mandato do então governador do estado. O mesmo fenômeno também é verificado no trecho a seguir:

Quando foi empossado presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy determinou que fosse servido vinho produzido em seu país durante as festividades. O gesto demonstrou boa vontade para com os produtores locais e alavancou a indústria vinícola naquele país. (ANEXO 13, p. 260).

A narrativa ora apresentada mostra uma cena tendo como personagem principal o presidente dos Estados Unidos que, durante as solenidades alusivas à sua posse (noções de tempo e espaço) ordena que seja servido vinho produzido no próprio país, gesto que, segundo o narrador, teria alavancado a indústria vinícola americana. Percebe-se novamente, aqui, uma coerência narrativa explicitada a partir do encadeamento das ideias e acontecimentos.

Como não poderia deixar de ser, tal narrativa, até certo ponto parabólica, possui uma intencionalidade decisiva no contexto em que é produzida e publicada. Mantém ainda uma relação interdiscursiva explícita com outros dois editoriais. O primeiro, publicado em dezembro de 2008, tem como título “A delinquência do MST” (ANEXO 08, p. 255). O segundo, publicado em dezembro de 2009 foi intitulado como “Lições de uma festa” (ANEXO 18, p. 265). Em ambos, a topicalidade (Beltrão, 1989) é constituída pela reforma agrária e pela realização do “Festival da uva”, evento realizado no município de São João do Piauí, cuja publicidade estava a cargo do Grupo Meio Norte.

Mesmo contrariando a linha ideológica da empresa midiática, cuja postura em relação às ocupações do MST e aos assentamentos de reforma agrária sempre foi contrária, o jornal, agora contratado para divulgar uma experiência positiva – a grande produtividade de uva dos assentamentos localizados em plena região semiárida – vê-se obrigado a redirecionar seus discursos. A narrativa de uma cena tipicamente americana desloca o foco de atenção para outro aspecto: “estamos imitando um país que deu certo”. A estratégia argumentativa utilizada, portanto, omite o potencial produtivo dos assentamentos, oculta ostensivamente a sigla do MST e faz alusão a outra realidade tipicamente capitalista. Retornaremos com essa mesma questão no item 7.1.6, ao analisarmos as estratégias argumentativas, mostrando que nos discursos dos editoriais do JMN há certa contradição e incompatibilidade.

Nosso terceiro exemplo de descrição narrativa foi extraído do editorial intitulado “O novo Piauí” (ANEXO 16, p. 263). Como induz o próprio título, há uma intencionalidade explícita em mostrar os aspectos positivos do estado do Piauí, característica comum à maioria dos editoriais publicados no período que constituiu o nosso corpus. Tal indução constitui-se num elemento importante na demonstração do logos. A temática abordada nesse texto é o surpreendente crescimento financeiro, cultural e populacional do município de Bom Jesus, localizado no sul do Piauí. Fenômeno este que é creditado à instalação de um campus da Universidade Federal do Piauí. Vejamos um fragmento do mesmo, a seguir:

A jornalista Cinthia Lages exibiu para todo o Piauí, ontem, uma reportagem sobre o campus da Universidade Federal do Piauí em Bom Jesus, onde seis em cada dez professores são doutores. [...] Bom Jesus e seu campus universitário cheio de doutores são parte de uma paisagem de um Piauí que muda rapidamente pela força da iniciativa das pessoas e o apoio do Estado. [...] Bom Jesus tinha cerca de 16 mil habitantes no Censo 2000 do IBGE. Na última Contagem Populacional – 2007 – havia mais quatro mil moradores no município. Parte dos novos residentes pode ser formada por estudantes – há 1.600 deles no Campus Cinobilina Elvas – e por empreendedores privados, como plantadores de arroz e soja na Serra do Quilombo ou os revendedores de tratores e máquinas agrícolas. (ANEXO 16, p. 263. Grifo nosso.)

Nesse fragmento, assim como naqueles expostos anteriormente, verificamos quatro condições básicas que caracterizam a narração. A primeira é a figuratividade, característica comum aos textos narrativos. Tal fenômeno pode ser comprovado através da grande quantidade de termos concretos: “jornalista”, “Cinthia Lages”, “Piauí”, “reportagem”, “campus”, “Universidade Federal do Piauí”, “Bom Jesus”, “professores”, “doutores”, “Cinobilina Elvas”, “Serra do Quilombo”, “tratores”, “máquinas agrícolas”, dentre outros. Trata-se, portanto, de uma discursividade que prima pelo uso da função referencial da linguagem, utilizando-se de informações precisas, dados numéricos, elementos e expressões claras, concisas e concretas.

A segunda característica do editorial é a mudança de situações referentes a determinadas características sociais do município de Bom Jesus. Tudo isso, num espaço preciso e num tempo demarcado. As informações dão conta de que Bom Jesus antes tinha 16 mil habitantes e depois passou a ter 20 mil; antes possuía um ensino superior deficitário, depois, passou a ter seis doutores em cada dez professores da UFPI; antes possuía pouca atividade agrícola e comercial, depois, passou a contar com muitos empreendedores privados na produção de

grãos e revendedores de tratores e máquinas agrícolas. A mudança de situação ou progressão temporal é a viga-mestra da narração.

A terceira particularidade do editorial é que os episódios se articulam numa relação de anterioridade e posterioridade. Por exemplo: O município de Bom Jesus possuía poucos habitantes, pouca infraestrutura, pouca mão-de-obra qualificada, poucos empreendimentos. Em seguida, graças à instalação de um campus da Universidade Federal do Piauí e ao “apoio do estado”, houve uma modificação significativa no cenário social do município que passou a ter mais habitantes, maior quantidade de doutores e maior quantidade de empreendedores e empreendimentos. Há, portanto, uma nítida intenção de induzir o destinatário a realizar uma comparação entre o antes e o depois, cuja conclusão poderá resultar numa adesão à ideia de que o Piauí está realmente avançando. Como não poderia deixar de ser, a contribuição do governo do estado está sutilmente mencionada no intuito de que seja estabelecida uma vinculação do mesmo ao cenário de transformação que está sendo delineado.

Por fim, os fatos são narrados com os tempos do subsistema do pretérito: pretérito perfeito (exibiu), pretérito imperfeito (tinha, havia). O tempo presente só é usado quando o narrador interfere para comentar o que está sendo contado. Não nos esqueçamos de que o tempo do ato de narrar é o presente (são, muda, pode, há). Outras informações temporais estão presentes em todo o texto: ontem, 2000, 2007. Percebemos, através desta análise, que o fragmento tem uma forte configuração narrativa caracterizada pela presença de personagens, pela figuratividade, pela transformação de situações e pela progressão temporal. Tal recurso, mais uma vez, é mobilizado no sentido de induzir o destinatário a raciocinar de determinada forma, produzindo, assim, efeitos possíveis de adesão às teses que lhe são apresentadas.

Outro fenômeno que também consideramos como pertencente à descrição narrativa é a permanente utilização de adjetivos e advérbios. Sabemos que, no tocante aos adjetivos, os mesmos apresentam-se expressivamente em gêneros de tipologia narrativa, mas como explicá-los dentro de um editorial cuja textualidade é predominantemente dissertativo- argumentativa? A justificativa mais plausível é a de que tal categoria gramatical apareça com a função de produzir, no destinatário, a fixação de um raciocínio enquanto recurso retórico. A sucessiva qualificação (ou desqualificação) de determinados sujeitos ou instituições produziria uma imagem acerca dos mesmos com maior penetração no inconsciente do sujeito, levando-o a consumir ou refutar determinadas teses.

No editorial constante no Anexo 08 (p. 255), ao caracterizar o MST, o enunciador arrola, no decorrer do texto, uma sequência de dez qualidades pejorativas atribuídas ao mesmo. Os adjetivos utilizados são: “violento”, “insano”, “destruidor”, “antidemocrático”, “ilegítimo”, “ilegal”, “carcomido”, “fracassado”, “improdutivo” e “delinquente”. Esse excesso de adjetivos, todos eles tempestuosos e irascíveis, revela uma estratégia de persuasão programada através da qual o enunciador pretende desqualificar o Movimento perante a opinião pública. É importante lembrar que o jornal imagina como leitores presumidos, pessoas que também compartilhem essa visão de mundo.

No tocante aos advérbios, apenas os terminados pelo sufixo “-mente” totalizam uma quantidade de 94 ocorrências em nosso corpus. O editorial com maior incidência dessa categoria gramatical está contido no Anexo 02 (p. 249). Nele, há nove registros dos advérbios com essas características. São eles: “praticamente”, “finalmente”, “provavelmente”, “eficazmente”, “inicialmente”, “corretamente”, “profundamente”, “evidentemente” e “notadamente”. Como podemos notar, a existência de tais recursos caracteriza uma argumentação modalizada ou moldada para produzir raciocínios ligados a finalidades, intensidades e, na maioria das vezes, ao próprio modo como as ações se realizam (advérbios de modo).

Tais estratégias objetivam uma aproximação do jornal ao governo do estado, garantindo ao primeiro, a partir disso, a obtenção de benesses e privilégios, mas, também, visam à adaptação a um suposto senso comum relativo às crenças da sociedade, como vimos em relação ao MST, para garantir a venda. Novamente, está instaurada a questão da dupla adaptação do jornal aos seus dois destinatários presumidos: estado e sociedade. Passemos, a seguir, ao fenômeno da reversibilidade de sentidos.