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A desordem e a ordem do século XX: Picasso, Gris e Miró

CAPÍTULO 4: O museu espanhol de Murilo

5. A desordem e a ordem do século XX: Picasso, Gris e Miró

Depois de Goya, sucedem-se alguns poemas até atingirmos o cerne da arte moderna na Espanha, profundamente vinculada à Paris das vanguardas: Picasso, Juan Gris e Joan Miró.

Como vimos, Murilo, no começo da década de 20, talvez já conhecesse a “fase azul” de Pablo Ruiz Picasso (1881-1973). De todos os modos, a partir do contato com a Europa e a Espanha, o pintor passou a ocupar lugar de relevo em seu museu em forma de palavra. No poema de Tempo espanhol, valoriza-lhe “o estilo de contrastes”, aliás também cultivado pelo poeta em grande parte de sua obra: “Construindo e destruindo ao mesmo tempo” e fundindo “a força e a contenção”. Também as “metamorfoses” de técnicas e estilos enfrentados pelo pintor seduziram o múltiplo Murilo. Mais adiante, no segundo segmento de “Guernica”, focalizou um setor da vasta e impactante tela de 1937:

Sem a beleza do rito castigado, Aumentando a comarca da fome, O touro de armas blindadas Investiu contra a razão: Eis que já Picasso o fixou, Destruindo a desordem bárbara, Com duro rigor espanhol,

Na arquitetura do quadro. (PCP, 618)

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No retrato-relâmpago dedicado a Picasso, retomou o quadro: “O enigma da tauromaquia, transposto em chave plástico-política de exegese da guerra civil, explodirá numa dimensão cósmica em ‘Guernica’” (PCP, 1247). Justamente nesse texto, aproveitou como metáfora crítica a predileção do pintor pela tauromaquia, explorada ao longo de sua trajetória, assim como fizera com Goya: “Permanecerá toureiro durante a vida inteira; avesso ao bizanistismo das teorias, polêmico e ambíguo, toureará os monstros Velázquez, Goya, Delacroix; toureará a pintura européia do século XX, fechando o ciclo histórico iniciado com a Renascença.” (PCP, 1246). Ainda segundo Murilo, exacerba “as forças passionais do próprio instinto”, resultando em um “romântico” Picasso, artista de “gênio”, freada apenas durante a militância cubista: “O tempo de hoje, tempo coletivo, continua a ser o tempo particular do superindividualista Pablo Picasso, provocador da própria apoteose, distante quase sempre, salvo no período cubista, da rigidez estrutural; fértil em improvisações e scherzi, infatigável operador do figurativismo, mormente através dos esquemas da ‘deformação’; de Picasso, mestre de metamorfoses, que se dá romanticamente em espetáculo, (...)” (PCP, 1247).

Assim, o contraste com o poema seguinte de Tempo espanhol, “Juan Gris”, torna-se mais evidente, pois se detém em um dos maiores representantes do cubismo. Da multiplicidade de Picasso passamos à concisão de Gris. Vizinho de estudio de Picasso em Paris, José Victoriano González (1887-1927), nome verdadeiro do pintor, impulsionou a passagem do chamado “cubismo analítico” para o “cubismo sintético”. No “cubismo analítico”, fracionava-se a figura em formas essenciais, decompondo geometricamente os planos para destruir o seu aspecto aparente, exterior. Já o “cubismo sintético” procurou o equilíbrio entre a geometria e o mundo da experiência, ao trazer para a obra objetos da vida cotidiana, a exemplo das recorrentes garrafas, vasos, xícaras e guitarras. Empregou-se, então, a técnica do papier collé, que consistia em colar no quadro materiais diversos como recorte de jornal, de papel de parede ou cartões. Entre 1912 e 1914, Gris levou ao máximo essa tendência, com rigor de formas e cores.

Embora tenha acompanhado os quadros cubistas de Ismael Nery, entre 1922 e 1927, Murilo elegeu como pintores preferidos os relacionados ao surrealismo, De Chirico e Ernst. Contudo, data pelo menos de sua primeira temporada na Europa uma retomada do cubismo, como verificamos na anotação na folha de rosto da segunda edição de 1946 da obra de Daniel-Henry Kahnweiller, Juan Gris sa vie, son

oeuvre, ses ecrits: “Murilo Mendes. París 1955”, ano do início da composição de Tempo espanhol, que reserva um poema ao pintor:

Espanha, mestra do espaço, Deu a pureza, medida Na área total da pintura Com o gênio da concisão, Pelo pincel de Juan Gris. Nessa pintura pensada Com clareza dialética, Espanha, dita “irracional”, Pelos planos de Juan Gris

Mostra o acordo e a simetria. (PCP, 617)

No museu que percorremos, trata-se do poema mais conciso e medido, com duas estrofes de cinco versos heptassílabos. Cada estrofe contém um período: na primeira, a ordem sintática é direta, com sujeito, predicado e complementos que informam lugar, modo e instrumento; já na segunda estrofe, esses elementos sintáticos sofrem um reordenação. Se fizermos uma correspondência sintática com os versos da primeira, teríamos a seqüência 3-4-1-5-2. Assim, Murilo simula no nível sintático a nova ordenação a que Gris submete as formas nos seus quadros.

Não se incorporou nenhuma palavra que remetesse às figuras pintadas por Gris. O que interessa é traçar um breve e certeiro juízo a respeito dessa pintura. Para tanto, os vocábulos caracterizam tanto a produção de Gris, quanto sugerem um tipo de poética que interessava, até certo ponto, a Murilo, ao compor a eliminação do excesso (pureza, concisão) e da espontaneidade (medida, pensada, simetria).

Apesar da longa temporada parisiense, coloca-se Gris como devedor e revelador do país natal, sujeito gramatical do poema. Uma Espanha “irracional”, suposta visão do senso comum de países mais ponderados, seria negada pelas características da pintura cubista. Seguindo o paralelo entre a pintura e a poesia, poderíamos substituir o “irracional” por “surrealista”, rótulo que quiseram selar na poesia de Murilo, mas que nesse momento vinha sendo questionado por outros parâmetros. Contudo, persistia a tentativa de unir as oposições, a partir da clareza dialética e do acordo.

Essa não é uma faceta definitiva da percepção estética de Murilo, faltando ainda o último poema de seu museu espanhol. Peça “viva”, pois conheceu

pessoalmente Joan Miró, “em Paris, Barcelona, Palma de Maiorca, Roma” (PCP, 1775). O contato com o artista catalão revela-se nas três litografias na coleção de artes plásticas do brasileiro, uma exibindo a data de 1958 e outra, uma dedicatória de 1963.316 Além do poema de Tempo espanhol, Miró rendeu mais um poema

recolhido na coletânea em francês Papiers e um retrato relâmpago da 2a série,

datados respectivamente de 1969 e de 1973. Isso equivale a pelo menos 15 anos de reflexão a respeito do pintor, sem contar que provavelmente já lera o fundamental ensaio de Cabral, publicado no Brasil em 1952.

“Joan Miró” é o único poema da galeria muriliana em que não se menciona uma referência geogrática, e por extensão, histórico-cultural. Se nos anteriores os pintores representavam Espanha, Catalunha ou Castela, aqui o artista paira livre acima de países e regiões:

Soltas a sigla, o pássaro e o losango. Também sabes deixar em liberdade O roxo, qualquer azul e o vermelho. Todas as cores podem aproximar-se Quando um menino as conduz no sol E cria a fosforescência:

A ordem que se desintegra Forma outra ordem ajuntada

Ao real – este obscuro mito. (PCP, 618)

A poesia também aproximou Murilo e Miró, pois o pintor manteve fortes laços com a literatura, desde a escrita de poemas à criação de quadros poemas, passando pela participação na edição de livros. Na década de 20 em Paris, estabeleceu amizade com importantes poetas surrealistas, como Robert Desnos, Benjamim Péret e Paul Éluard, que lhe abriram novas perspectivas, chegando a explorar em textos a escrita automática. Após o surrealismo, ambos ainda coincidiam nas preferências literárias, voltando-se aos grandes escritores místicos da literatura espanhola, San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Jesús. Miró, que em 1942 atravessava uma etapa decisiva de sua obra, dividiu-se entre os místicos espanhóis e os franceses que inauguraram a poesia moderna: “(...) me enriqueci enormemente durante esse período de solidão. Lia todo o tempo san Juan de la Cruz, santa Teresa e poesia - Mallarmé, Rimbaud - . Era uma existência ascética:

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apenas trabalho.”317 Utilizava inclusive as comuns antíteses que expressavam a

experiência mística para descrever suas intenções na pintura: “Na verdade, o que busco é um movimento imóvel, algo que seria equivalente ao que se chama eloqüência do silêncio ou o que san Juan de la Cruz designava, acho, com as palavras ‘música calada’”.318 A oposição mencionada em entrevista de 1959

pertence a 15a estrofe de Cántico:

la noche sosegada

en par de los levantes del aurora, la música callada,

la soledad sonora,

la cena que recrea y enamora.319

Quanto a Murilo, anotou, por exemplo, os “Avisos y setencias espirituales” de San Juan de la Cruz, sobretudo os que se referem às privações da alma, como o de número 352:

Reine en tu alma siempre un estudio de inclinarse, no a lo fácil, sino a lo más dificultoso; no a lo más gustoso, sino a lo más desabrido; no a lo más alto y precioso, sino a lo más bajo y despreciado; no a lo más, sino a lo que es menos; no a lo que es querer algo, sino a no querer nada, no a andar buscando lo mejor de las cosas sino lo peor. Deseando entrar por el amor de Jesuscristo en la desnudez, vacío y pobreza de cuanto hay en el mundo. [sublinhado por Murilo]320

No poema “São João da Cruz” de Tempo espanhol, publicado no mesmo ano da entrevista de Miró, explora esses princípios: “Viver: do seu silêncio se aprendendo.”; “Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.”

Portanto, Murilo valoriza a intensa relação de Miró com a poesia na abertura do retrato-relâmpago – “Miró declara que não pode separar a poesia da pintura.” (PCP, 1275) e nas justaposições “peinture-poésie miròïenne” e “peintre-poète” do poema de Papiers (PCP, 1597).

317 ROWEL, Margit, org. Op. cit., p. 295-296. 318 Idem, ibidem, 336.

319 SAN JUAN DE LA CRUZ. Poesía. 11a ed. Edição de Domingo Ynduráin. Madri: Cátedra, 2000, p. 252.

320

SAN JUAN DE LA CRUZ. Obras escogidas. Edição de Ignacio B. Anzoátegui. 2a ed. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1945, p. 119

Ainda no terreno literário, Miró criou “títulos-poemas” para seus quadros: seguindo a lição surrealista, situa seres comuns, como a mulher ou o pássaro, em circunstâncias inusitadas. Os versos 4-6 do poema de Murilo – “Todas as cores podem aproximar-se/ Quando um menino as conduz ao sol/ E cria a fosforescência:” – não apenas metaforiza a invenção do pintor, como também recupera a atmosfera dos “títulos-poemas”. Um deles, datado de 1954, refere-se ao brilho sob a luz do dia: “A festa dos círculos fosforescentes no nascimento do dia.”321 No retrato-relâmpago,

os “títulos-poemas” aparecem como confronto a nossa lógica: “Sabe que o mundo através de seus sistemas gastos impede por exemplo o pássaro de telegrafar à pedra; impede as estrelas de jogarem os dados; a formiga de pedir a palavra; um cachorro de puxar aquela moça por um cordel.” (PCP, 1275).

Embora admire em Miró a dimensão onírica e libertária, Murilo não se atreve a lhe colocar, como tampouco a si mesmo, a designação de surrealista: “Nem surrealista nem abstrato ortodoxo, escapa às etiquetas.” (PCP, 1275). Da mesma forma o próprio Miró descartava as classificações:

O senhor ouviu falar de uma bobagem mais considerável do que a “abstração-abstração”? E me convidam a sua casa deserta, como se os signos que transcrevi sobre uma tela, desde o momento em que correspondem a uma representação concreta de meu espírito, não possuíssem já uma profunda realidade, não fizessem parte da realidade! Por outro lado, veja o senhor, concedo uma importância cada vez maior à matéria de minhas obras. Uma matéria rica e vigorosa me parece necessária para dar ao espectador esse golpe em pleno rosto que deve alcançá-lo antes de intervir a reflexão. Assim, a poesia, plasticamente expressada, fala sua própria linguagem.322

Como Cabral em Barcelona no final dos anos 40, Murilo pôde visitar a casa de Miró em Palma de Mallorca onde guardava os mais variados objetos que utilizava em suas obras: “(...) bulindo os olhos pequenos, maliciosos, me indica com o dedo os objetos de artesanato que eu mal consigo elogiar: ele me precede sublinhando diante de cada um : ‘Es muy bonito...es precioso’. Não há dúvida.” (PCP, 1191).

Murilo, que cada vez mais dava importância ao trabalho artístico, reconhecia em Miró o “artesão refinado”. Ao retomar no retrato-relâmpago a imagem do

“menino” de Tempo espanhol, ressalta-a a partir de seu tradicional jogo de contrários: “Organizando a infância futura, consegue, em todos os casos, conciliar sonho e disciplina racional.” (PCP, 1275). Os versos finais do poema relacionam-se com o depoimento acima de Miró, na medida em que não contrapõe sua pintura ao “real”, este colocado sob suspeita como “obscuro mito”. E novamente o retrato- relâmpago desfaz em mão dupla uma suposta contradição: “Miró extrai o maravilhoso da coisa imediata; transforma em realidade a faixa onírica.” (PCP, 1275).