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A importância da dialética pode ser referenciada em Gramsci, que lhe atribui um novo modo de pensar, uma nova filosofia, na qual os conceitos de história, de política e de economia se articulam numa unidade orgânica e crítica. Segundo Bobbio (2002), o uso mais freqüente do termo "dialética" na linguagem gramsciana é o que corresponde ao significado "processo tese/antítese/síntese" e é também o significado mais genuinamente hegeliano-marxista, pois conflui no conceito de "devir". No "devir" existe o movimento dialético, no qual o devir histórico procede por negação e negação da negação. Cita Gramsci (apud BOBBIO, 2002, p. 40): "Toda antítese deve necessariamente se colocar como antagonista radical da tese, até o ponto de propor-se a destruí-la completamente e substituí-la completamente". Considera-se que as noções de cidadania e de tutela no âmbito da assistência social convivem historicamente no movimento dialético que envolve os princípios do liberalismo econômico e os princípios da proteção social como direito, configurando uma relação antagônica, mesmo em tempos de sobreposição de uma noção sobre a outra. Levando em conta as especificidades históricas da realidade brasileira, a exemplo da forte influência do positivismo de Augusto Comte e das dificuldades de

se implementar o liberalismo no Brasil, a dialética gramsciana pode orientar a análise por meio da articulação orgânica e crítica entre história, política economia.

Na perspectiva estrutural, leva-se em conta a função de mediação da política de assistência social no contexto da contradição entre os interesses do capital e do trabalho para a análise dos dilemas de natureza comum às sociedades estruturadas no modelo de produção capitalista. Na perspectiva histórica, consideram-se as particularidades da conjuntura brasileira, buscando compreender o cenário atual em que se insere a política de assistência social sem romper com o seu processo no "devir" histórico, considerando o movimento dialético da relação Estado/sociedade civil e, na perspectiva deste, as relações cidadania/tutela, democratização/ antidemocratização.

Para Gramsci (1980, p. 45), a análise das situações históricas remete ao problema das relações entre estrutura e superestrutura (o econômico e o político) e aponta que, para se chegar a uma justa análise das forças que atuam na história em determinado período, é necessário tomar como referência dois princípios:

1) o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer ou se desenvolver; 2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas nas suas relações.22

Segundo o autor, baseando-se nesses dois princípios pode-se chegar a outros princípios de metodologia histórica. Alerta, entretanto, que se deve considerar que em uma estrutura há movimentos orgânicos relativamente permanentes e também elementos que podem ser considerados de conjuntura, apresentando-se de modo ocasional, quase acidental. Ressalta Gramsci que é fundamental fazer a distinção entre o que é orgânico e o que é ocasional e que a diferença entre um e outro surge quando se estuda um período histórico. No caso de abordar uma crise, deve-se observar que ela se prolonga quando há contradições insanáveis na estrutura e se

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tenta resolver com elementos da conjuntura por meio de esforços incessantes, pois nenhuma forma social confessará que foi superada. Por outro lado, as forças antagonistas tendem a demonstrar que já existem as condições necessárias e suficientes para que determinados encargos sejam resolvidos historicamente. (GRAMSCI, 1980)

A análise da política de assistência social com base na sua nova institucionalidade demarcada legalmente na Constituição Federativa Brasileira de 1988 e na Lei Orgânica de Assistência Social de 1993 deve levar em conta, na perspectiva gramsciana, a presença de movimentos orgânicos vinculados à estrutura econômica capitalista, numa relação articulada e complementar aos movimentos da conjuntura histórica brasileira. Enquanto se reconhece a ampliação do paradigma democrático que se instalou a partir da década de 1980 com a transição dos governos militares para os governos civis e com a implantação do novo sistema jurídico e político, o modelo descentralizado e participativo desenhado na Constituição de 1988, mais especificamente, o modelo de seguridade social de caráter universal, do qual a assistência social é parte integrante, devem ser considerados, simultaneamente, o processo de recessão no campo econômico e as tentativas de minimizar os processos inflacionários e buscar a retomada do crescimento, enfatizando um projeto conhecido por neoliberal, fundado na centralidade da matriz econômica em detrimento do social.

A análise da política de assistência social, contextualizada no período histórico que compreende a relação entre as duas agendas contraditórias que se instalaram no País a partir da década de 1980 – a democrática e a neoliberal –, na perspectiva dos estudos de Gramsci, remete-nos a uma reflexão sobre as condições necessárias e suficientes, ou, em via de se desenvolver na sociedade brasileira, naquele momento, para a solução dos encargos de uma agenda democratizante com vista à garantia da assistência social como política pública de caráter universal e garantida pela primazia da responsabilidade do Estado. De outro lado, e na mesma perspectiva gramsciana, importa refletir sobre a tendência, no marco das relações entre os interesses do capital e os interesses da proteção social como direito, de dissolver as

forças conservadoras, eixos centrais das práticas populistas e tutelares da assistência social.

O esquema metodológico da relação sociedade civil/Estado encontra importante fundamentação no pensamento político gramsciano. Na análise do papel do Estado brasileiro, a teoria do Estado de Antonio Gramsci23 referencia a lógica dialética na qual se desenvolve o estudo. Entretanto, o conceito-chave da teoria do autor italiano é o conceito de sociedade civil, e não de Estado, exatamente pelo fato de naquela conter a significativa diferença que se estabelece com os pressupostos teóricos marxianos. Nos escritos destinados à contribuição para a crítica da economia política, Marx apresenta o fio condutor do seu pensamento que fora posteriormente desenvolvido nos seus estudos sobre o capital, partindo da idéia de que não é a vontade dos homens que dá ao Estado a sua estrutura, mas sim a situação objetiva das relações entre eles. Diz Marx (1997, p. 28-29):

[...] A conclusão a que cheguei e que, uma vez adquirida serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social, política e intelectual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência [...].

Enquanto Marx considera a sociedade o locus das relações de produção, compondo o quadro paradigmático do primado da economia, Gramsci considera a sociedade o locus da complexidade que abarca as relações ideológicas, culturais e intelectuais, tomando-a como o centro de análise do desenvolvimento capitalista. O autor italiano acrescentou ao marxismo a idéia de ação política como prática advinda de uma esfera denominada sociedade civil, em relação constante com o Estado.

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"[...] O Estado não é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um instrumento; é o representante não de interesses universais, mas particulares; não é uma entidade superposta à sociedade subjacente, mas é condicionado por esta e, portanto, a esta subordinado; não é uma instituição permanente, mas transitória, destinada a desaparecer com a transformação da sociedade que lhe é subjacente." (BOBBIO, 2002, p. 47)

A ênfase que se atribui às novas formas de relação entre a sociedade civil e o Estado, sem abolir a dimensão estrutural das contradições entre o capital e o trabalho, bem como a dimensão dialética da análise histórica, realça o poder de organização da sociedade civil no seu interior e no papel dos atores sociais como sujeitos constituintes de novas formas de sociabilidade. Tais considerações justificam a referência do conceito gramsciano de sociedade civil, por sua capacidade de refletir as relações de complexidade que se estabelecem no âmbito das organizações civis na relação com o Estado, constituindo, desse modo, o modelo de Estado ampliado.

Gramsci (1980), fazendo referência à relação de forças, considera importante distinguir diferentes momentos ou graus que permitem reconstruir as relações entre estrutura e superestrutura, a saber: 1) uma relação de forças sociais ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens; 2) a relação das forças políticas, diversos momentos da consciência política coletiva; e 3) o da relação das forças militares, imediatamente decisiva em determinados instantes. Ressalta o autor que o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo. Esse segundo momento, de diversos graus ou níveis de consciência política coletiva, é constituído de um primeiro mais elementar grau ou nível, o econômico-corporativo (um comerciante sente que deve ser solidário com outro comerciante, mas ainda não é um grupo social mais amplo); de um segundo grau, onde se adquire a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico e reivindica o direito de participar da legislação e da administração, entretanto, nos quadros fundamentais já existentes do Estado; e, de um terceiro grau, onde "se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e futuro, superam o grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados". (GRAMSCI, 1980, p. 50)

Esses graus ou níveis aos quais se refere Gramsci são referências importantes para pensar os diferentes tipos de cultura política manifestas nos depoimentos dos sujeitos da pesquisa, os usuários e os gestores da política de assistência social. A categoria cultura política, identificada com o conjunto de valores e comportamentos, realça a dimensão subjetiva da análise, coloca em cena a noção de ideologia como o sistema de representações simbólicas historicamente construídas nas relações de dominação de classe. A dialética do movimento "revolução-restauração" citado por Gramsci deve ser compreendida no contexto da confluência dos diferentes graus ou níveis de consciência política, considerando a justa relação do que é orgânico e o que é ocasional, para evitar o exagero do economicismo ou do ideologismo.

Para lidar com a dimensão subjetiva da análise da cultura política e da ideologia, o marco específico é a metodologia da interpretação elaborada por Thompson (1990), denominada "hermenêutica de profundidade". Esse referencial, permitindo colocar em evidência o objeto de análise como construções simbólicas significativas, inseridas em contextos sociais e históricos de diferentes tipos, emprega a interpretação da ideologia numa dimensão crítica, com atenção voltada para as relações de dominação que caracterizam o contexto no qual as formas simbólicas são produzidas e recebidas. (THOMPSON, 1990)

A hermenêutica de profundidade, na mesma perspectiva gramsciana, reconhece a importância da investigação histórica, pois considera que o mundo sócio-histórico é, ao mesmo tempo, campo-objeto e campo-sujeito. As noções de pobreza e as noções de política de assistência social são elaboradas por sujeitos que constituem parte do mundo social e estão sempre inseridos em tradições históricas. São sujeitos portadores de uma "concepção latente de ideologia" (THOMPSON, 1995), capazes de conformar diferentes formas de visão do mundo e de legitimação do mundo, nesta perspectiva, sujeitos de diferentes valores e comportamentos que refletem em variados graus de consciência coletiva no movimento da sociedade que constitui o Estado ampliado.