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m³/hab.ano (vazão média)

6.10 A disputa da narrativa na mídia

Como visto anteriormente, crises são eventos inesperados que podem ameaçar o funcionamento normal de um sistema, organização ou estrutura burocrática. Alguns autores defendem que a mídia não possui capacidade para a criação de uma crise, mas possui a capacidade de dar ênfase, reforçando o caráter da crise, ou dar menos atenção, minimizando o alcance do público (Nijkrake, 2013). Mesmo não possuindo um poder fundamental para criação de situação de crise, utiliza-se de sua credibilidade e habilidade para definir a agenda da discussão pública. A definição de agenda é entendia como o processo no qual os meios de comunicação criam e direcionam a atenção e preocupação pública para determinados assuntos. (Scheufele e Tewksbury, 2007). Mídia tradicional desempenha papel fundamental na disputa pela narrativa de uma crise. É a arena principal onde os atores, sejam aqueles que defendem o status-quo ou aqueles que advogam em prol de mudanças, buscam influenciar e ganhar apoio e capital político para sua agenda. “Crisis actors need to convince news-makers to pay attention to their particular crisis frame, and, if possible, support it” (Boin, ’t Hart e McConnell, 2009)

Elites políticas e econômicas podem ser altamente eficientes ao vender sua narrativa para mídia, mas podem falhar monumentalmente também. Isso porque há uma movimentação e pressão por parte de grupos antagônicos organizados e coalizões nessa disputa de narrativas. A literatura ligada a comunicação diz que uma ação proativa e profissional no tratamento de crises aumenta a credibilidade de um ator e, por consequência, a possibilidade de aumentar suas chances de que sua narrativa tenha mais aceitação. Da mesma maneira, uma comunicação de crise desorganizada e reativa pode causar o efeito oposto. Utilizar de mentiras ou negar problemas óbvios, ou promessas de resolução sem entregar o resultado prometido também são fatores que podem contribuir para minar a credibilidade dos agentes envolvidos (Boin, ’t Hart e McConnell, 2009):

“in this perspective the degree to which the media’s crisis reporting and commentary align with the frame put forward by a particular

political actor depends upon the credibility of that actor’s crisis communication” (Boin, ’t Hart e McConnell, 2009).

Uma outra perspectiva afirma que a imprensa possui sua própria agenda durante a crise e irá persegui-la de forma autônoma, buscando elementos que colaborem para que tal narrativa faça sentido perante seus espectadores. Sendo assim, os esforços dos atores para influenciar a narrativa dominante na mídia importariam menos do que o grau de viés existente nos grupos de mídias.

Para Nijkrake (2013), o enquadramento específico de uma crise significa moldar como as pessoas pensam e falam sobre determinados assuntos. O modo como uma mensagem é enquadrada molda como as pessoas definem os problemas, as atribuições de responsabilidade e as soluções para os problemas. Sendo assim, as definições explanatórias são cruciais para a minimização dos efeitos adversos e dos estigmas associados às situações de crise.

Alguns estudos desempenharam análise semelhante com o mesmo objeto. O estudo do IDS (2017) analisou 282 notícias (de 503 inicialmente selecionadas) demonstrando uma mudança na narrativa ao longo do tempo. Inicialmente a maior causa apontada é a falta de chuva, mas ao longo do tempo, e com o reconhecimento da crise hídrica, as referências à má gestão e perdas de água vão sendo mais corriqueiras. A maior parte dos entrevistados é do setor público, com pouco destaque para os comitês de bacia e atores não-governamentais. As soluções citadas são em sua maioria ligadas às obras emergenciais, como a integração dos sistemas, sendo posteriormente citadas soluções na gestão da demanda, como redução do consumo. Rodrigues e Villela (2015) analisaram 341 matérias publicadas na Folha de São Paulo e afirmam que em sua maioria trata exclusivamente da caracterização da crise e apenas 18% abordavam as causas e soluções. A má gestão estadual foi apontada como uma das principais causas em conjunto com fatores climáticos

Seguindo as recomendações de Ingram et al.,(1984) empregou-se uma análise de conteúdo de alguns órgãos de imprensa para entender qual foi a narrativa dominante durante a crise. A partir da escolha da região de análise (Grande São Paulo, Região Metropolitana de Campinas e Piracicaba) empreendeu-se uma análise documental das

notícias produzidas pelos jornais diários mais consagrados nas duas regiões mais afetadas pela crise.

Quadro 19– Órgãos de imprensa analisados

Jornal Abrangência Amostra Tiragem média diária Estado de São Paulo Nacional 1095 165.740

Correio Popular Regional (Campinas) 502 66.000 Fonte: Elaboração própria

O período delimitado da amostra foi de novembro de 2013 a janeiro de 2016 compreendendo as notícias publicadas pelos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e Correio Popular (Campinas). Utilizando técnicas de web-scrapping67, através de um algoritmo escrito e executado através do software R, foram identificadas todas as notícias envolvendo uma série de palavras-chave relacionadas a crise hídrica68. Posteriormente, os dados foram coletados, limpos e as notícias foram codificadas de acordo com as perguntas pré-definidas. Hajer (2005) define o conceito de discurso como “an ensemble of ideas, concepts and categories through which meaning is given to social and physical phenomena and which is produce and reproduce through an identifiable set of practices”. Através dessa análise, buscou-se entender as interconexões entre as narrativas presentes na literatura e a prática.

A comparação entre os diferentes órgãos de imprensa e localidades objetivou confirmar se há disparidade regional na narrativa e no tipo de informações veiculadas e qual o nível de adesão ao discurso oficial, objetivando responder as seguintes questões: i) qual o discurso oficial representado?; ii) quais instituições, organizações e especialistas foram ouvidos?; iii) que tipo de informações foram veiculadas?; iv) que tipo de soluções foram apresentadas?

67 A técnica consiste na criação de um algoritmo executado no software R que varre os sites dos órgãos

de imprensa para buscar a notícia baseado nos critérios selecionados. A partir disso, deve-se limpar os dados que não sejam pertinentes à análise.

Para auxiliar no entendimento dos distintos enquadramentos possíveis, utiliza-se a tipologia de enquadramento proposta por Semetko & Valkenburg (2000). Neste artigo, os autores baseados em estudos anteriores dividem as notícias de determinada área em cinco tipos: atribuição da responsabilidade, interesse humano, conflito, consequências econômicas e moralidade. Em adição a esta tipologia, introduziu-se a dimensão consequências ambientais, dado o caráter desta tese.

Quadro 20 – Enquadramentos midiáticos

Enquadramento Descrição

Interesse humano Exploração de ângulo pessoal, emocional para a apresentação do evento

Conflito Ênfase nos entre indivíduos, grupos ou

organizações

Consequências econômicas Consequências econômicas que

possivelmente ocorrerão para um grupo, indivíduo, organização ou região

Responsabilidade Atribui responsabilidade a algum ator frente ao evento

Consequências ambientais As consequências ambientais das escolhas e obras

Moralidade Narrativa a partir de histórias em um contexto de prescrições morais

Fonte: Semetko & Valkenburg (2000)

A análise das notícias do Estado de São Paulo demonstrou uma enorme cobertura do veículo à situação dos mananciais. A maior parte das notícias, como demonstrado por outras análises, é de notícias meramente situacionais demonstrando a preocupação do leitor (ou editor) com o nível dos reservatórios. Isso se constitui como um espaço inédito da gestão dos recursos hídricos na mídia tradicional, mas por motivos negativos. Poucas foram as notícias utilizando do enquadramento da moralidade. Alguns editoriais deram um tom mais político à gestão da crise, o que é natural visto que a crise coincidiu com o processo de eleição mais acirrado do período democrático. Diversas denúncias

de irregularidades partiram dos órgãos de imprensa, que demonstrou ter uma capacidade de investigação e de sustentar a pauta até que respostas efetivas fossem dadas. A maior parte dos gestores hídricos ligados à Sabesp acredita que a imprensa fomentou um conflito que não existia, ampliando a gravidade da situação.

Os entrevistados em sua maioria estavam ligados à administração pública, incluindo o executivo, legislativo e órgãos de controle como o Ministério público. A universidade foi requisitada em diversas matérias para dar explicações técnicas. As consequências ambientais foram reportadas apenas em casos específicos. Já as consequências econômicas foram exploradas principalmente no início e no período de maior gravidade da crise.

Já o Correio Popular assumiu um protagonismo um pouco maior, dando bastante importância às demandas da região. A cobertura da crise hídrica focou principalmente as cidades da região, mostrando principalmente o drama da população e as soluções que as empresas municipais tiveram que adotar, dando menor importância às notícias da capital. Não pouparam críticas à gestão estadual e à Sabesp, dando maior espaço aos políticos da região (principalmente de Campinas). O projeto e construção das duas barragens esteve bastante presente, demonstrando apoio e tratando tal obra de infraestrutura como crucial para a segurança hídrica da região. A demonstração regional ficou clara em outros assuntos, como a Interligação do Paraíba do Sul ao Cantareira, afirmando por exemplo que a obra só beneficiaria São Paulo. Deu grande espaço para pesquisadores de universidades da região (principalmente a Unicamp) e de atores ligados à gestão dos recursos hídricos, principalmente do Consórcio PCJ.

Figura 20 - Frequência de palavras nas notícias da amostra