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A Doutrina Social da Igreja

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 91-95)

2. BASES ANTROPOLÓGICAS DA SOLIDARIEDADE

2.2 A Doutrina Social da Igreja

De acordo com Westphal (2008), no século XIX o Humanismo Cristão germinou na mesma lavoura do socialismo utópico, sendo considerado uma forma de socialismo cristão. A maioria dos católicos aceitava a economia liberal, mas desde o início, porém, encontrou-se uma pequena elite católica que entendeu que, com o fim do sistema corporativista e o nascimento da grande indústria, o operário fora jogado na miséria, tornando a prática religiosa difícil. Os obstáculos criados pelo sistema social tornaram quase impossível a salvação pessoal dos miseráveis e determinaram católicos isolados e depois minorias cada vez mais numerosas a tomar e firmar novas posições no campo social, político e filosófico.

De acordo com Vigneron (2001), grandes nomes como La Mennais, Lacordaire, Montalembert, Albert de Mun e muitos outros mostraram um novo rosto do cristianismo. No fim do século XIX, as elites cristãs criticaram as posições dos católicos sociais e os acusavam de envolver a Igreja Católica e o Vaticano nas questões econômicas com as quais eles não tinham nada a ver. A voz do Papa Leão XIII respondeu a essas acusações com a encíclica

Rerum novarum 57 em 15 de maio de 1891, afirmando que o papel da Igreja é o de ajudar o

homem a se libertar de uma ilusória liberdade econômica na qual o forte oprime o fraco. Leão XIII assume a defesa dos direitos dos trabalhadores e, pela primeira vez depois de vários séculos, o papa se dirige para uma classe particular, os novos pobres, que são os proletariados na indústria.

Alain Caillé (1994, p. 10-12 apud GRABER; LANNA, 2005) nos lembra que os aristocratas e os mercadores ricos eram considerados “os tesoureiros de seus concidadãos” e mantinham um ethos de generosidade magnificente distribuindo sua riqueza em projetos civis através de doação de prédios, de jardins públicos e patrocinando, como padrinhos, a arte, os jogos e competições. Por outro lado, também curtiam o hábito de espargir moedas de ouro e joias para uma multidão, só para ver a correria que se seguia. Teorias cristãs se desenvolveram em reação a práticas como essas e, pela primeira vez na história, pregam que a verdadeira caridade não poderia se basear em estabelecimento de superioridade, nem na obtenção do favor de outrem. A partir daí a doutrina cristã proíbe o desejo de ser superior e, em última análise, qualquer motivação egoísta.

Graeber e Lanna (2005) dizem que tanto os cristãos como os brâmanes, caracterizados no ensaio de Mauss, distribuem palavras e, acima de tudo, desenvolvem uma retórica da caridade e da pureza relacionada às trocas desiguais. Os cristãos são doadores de serviços religiosos e recebedores de prestações materiais, pensadas aqui não apenas as oferendas às várias igrejas cristãs, mas também os variados tipos de benfeitores cristãos. Por outro lado, as sociedades cristãs divergem das dos brâmanes e de todas as outras exatamente por sua ideia de caridade absoluta, que não requereria qualquer retribuição. Segue-se daí que o ideal moderno-cristão da dádiva pura e desinteressada é uma noção que não se encontra em qualquer outra sociedade, se tornando um fantasma que persegue os antropólogos ocidentais.

É possível dizer que os cristãos são difíceis de entender, pois deixaram de lado a exigência de reciprocidade e de práticas redistributivas, mas não abriram mão da ideologia da generosidade. Seja lá como for, ao pressupor a possibilidade da caridade desinteressada, a retórica cristã parece negar uma lição fundamental de Mauss que é a universalidade da

57 A Rerum novarum foi preparada na Igreja com referência a muitos inquéritos, relatórios, documentos episcopais, congressos particulares sobre a miséria dos operários. Desde as origens da indústria, vozes de leigos e sacerdotes levantaram-se para denunciar as condições desumanas do trabalho na indústria. A encíclica provocou um forte movimento de padres e de leigos católicos em favor de um socialismo cristão. Porém, assinala José Comblin, o papa Pio X infelizmente envolveu este pensamento social na onda do modernismo, condenou e destruiu o movimento que ficou clandestino, ressuscitando somente nos anos 20. (COMBLIN, 1996, p. 31).

reciprocidade.58 Se pensarmos bem, quando alguém faz uma boa ação fica em melhor posição aos olhos de Deus e melhora suas chances de obter a salvação eterna. Graeber e Lanna (2005) observam que a emergência de religiões universalistas se liga ao ideal de dádivas impossíveis de serem retribuídas e destacam esse tipo de funcionamento na Índia e no Islã.

As igrejas cristãs, sobretudo a católica, desenvolveram uma concepção de solidariedade que influenciou práticas sociais e políticas no mundo ocidental. De acordo com Westphal (2008, p. 45), a Doutrina Social Cristã (DSC) baseia-se na visão de que a pessoa é imagem de Deus e a união universal entre todas as pessoas decorre da paternidade de Deus e da irmandade em Cristo. Essa doutrina desenvolveu uma visão humanista com conteúdo ético, influenciando a adoção do princípio da solidariedade ao nível da ação pastoral. No entanto, o conceito de solidariedade daí decorrente é marcado por uma concepção classista e de grupo, pois se trata de ser solidário apenas entre os iguais, ainda que os iguais sejam os explorados e excluídos.

A partir da década de 1980 do século XX, a palavra certamente foi popularizada pelo Sindicato Solidariedade (Solidarnosc) da Polônia.59 Não podemos esquecer que, no mesmo período, em 1978, um polonês, Karol Wojtyla, foi eleito Papa na Igreja Católica, assumindo o nome de João Paulo II, sendo que uma de suas primeiras encíclicas foi justamente Sollicitudo

Rei Socialis, em 1989, que elevava o valor moral da solidariedade.60 Ali, a doutrina social da Igreja Católica foi nitidamente construída a partir do conceito de solidariedade, que é definido como a “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por

58 Isso talvez merecesse ser relacionado à importante sugestão de Dumont (1977, p. 153) que, seguindo Marx diz que “há uma afinidade profunda entre o Estado democrático moderno e a religião cristã [...]. Esse Estado não reconhece a religião, mas a pressupõe [...] ao nível da sociedade civil [...]. Isso é assim porque o Estado democrático, de um lado, e a religião cristã, de outro, são expressões diferentes da mesma coisa, a saber, uma certa etapa do desenvolvimento do espírito humano”, na qual, segundo Marx, Cristo seria o mediador entre os homens e a divindade, enquanto o Estado, o mediador entre os homens e sua não-divindade.

59 O Sindicato Solidariedade foi fundado na Polônia em 1980 e teve em Lech Walesa um de seus maiores líderes. Em 1983, Walesa foi contemplado com o Prêmio Nobel da Paz e, em 1990, assumiu o governo da Polônia, vindo a ser reeleito em 1995.

60 O Papa Bento XVI faz em sua primeira encíclica intitulada Deus é amor, de 2005, uma retrospectiva de todas as encíclicas desde Leão XIII que, em 1891, oficializou o compromisso da igreja com os pobres. Ele não se referiu ao fato de o Papa Pio X ter condenado e destruído o pensamento socialista dentro da Igreja que, de acordo com José Comblin (1996, p. 31), ficou clandestino e foi somente ressuscitado nos anos 20, com a encíclica de Pio XI, Quadragesimo anno, em 1931. Paulo VI publicou duas: Populorum progressio, de 1967, e a Octogesima

adveniens, de 1971, na qual analisou com afinco a problemática social, que se tinha agravado, sobretudo na América Latina. Na opinião de Bento XVI, foi seu predecessor João Paulo II que, em um longo pontificado, deixou uma trilogia de encíclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e, por último,

Centesimus annus (1991). Além disso, em 2004, este compromisso foi apresentado de modo orgânico no

todos.” Seguindo essa linha, poderíamos definir a solidariedade como determinação pessoal de responsabilidade mútua.

Como decorrência da situação histórica, econômica e social vivida na América Latina, ocorreu a partir dos anos 1960 o desenvolvimento da Teologia da Libertação (TL).61 Com base teórica na teoria da dependência62 e na análise estrutural-social marxista, a TL procura um caminho para a promoção dos oprimidos, dos “sem-dignidade”, para sujeitos de direito. De acordo com Westphal (2008), é importante observar que o surgimento da TL seguiu causas sócio-político-estruturais semelhantes aquelas que os trabalhadores do capitalismo industrial enfrentaram, além das próprias motivações eclesiais advindas do Concílio Vaticano II e da Assembleia Geral do Episcopado Latino-Americano, realizado em 1986 na cidade de Medellín.63 Para Westphal (2008, p. 46), é interessante observar também que a TL se trata de uma intervenção local, sempre ancorada no contexto concreto dos atingidos, objetivando uma renovação através de um processo de aprendizagem dialógica.64 O socialismo é defendido pela TL de forma explícita, já que as manifestações estruturais capitalistas como pobreza, exclusão e injustiça atingem a maioria dos membros da sociedade.

A TL não desenvolveu uma concepção autônoma da ideia de solidariedade, sendo entendida na perspectiva das encíclicas católicas e da DSC. Solidariedade é compreendida como meio para criar uma ordem social na qual cada indivíduo pode participar integralmente das possibilidades colocadas pela vida natural e pelas relações sociais. A ideia de solidariedade da TL é marcada pelas ideias do sentido comum e do bem-comum. É possível constatar uma grande importância sobre dois valores: a vida comunitária e a solidariedade.

61 De acordo com Westphal (2008) alguns de seus representantes: Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, Miguez Bonino, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Hugo Assmann. Não há uma concepção unitária na teologia da libertação, de maneira que ela influenciou outras direções teológicas, como por exemplo, a teologia negra, africana, feminista.

62 Esta esclarece que o retrocesso e a dependência da América Latina é causada pelo tipo de relação estabelecida entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Estabelece-se uma integração assimétrica dos países periféricos por meio de uma dependência estrutural. Wölhke (1988, p. 23) explica que a dependência estrutural continha uma coordenação do desenvolvimento de fora dos países periféricos por parte dos países industrializados desenvolvidos; forçando disparidades estruturais internas (heterogeneidade estrutural), e permitindo apenas um desenvolvimento deformado, assim desembocando em formas específicas de subdesenvolvimento social (marginalidade). Vale esclarecer que a Teologia da Libertação pensa o modelo da libertação, não do desenvolvimento.

63 A pobreza, a falta de liberdades políticas, a revolução cubana, a falta de padres no interior longínquo do continente e o fato da maioria dos padres serem originários das camadas abastadas da sociedade, foram algumas das causas para a busca de novos caminhos no interior da igreja. Vale esclarecer que a TL foi incorporada apenas de forma tímida pelo protestantismo. Na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), os teólogos da TL se agrupam na Pastoral Popular Luterana (PPL). (WESTPHAL, 2008, p. 46).

64 A concepção de uma educação libertadora de Paulo Freire teve um importante papel, na medida em que propôs uma concepção teórica e metodológica no trabalho com grupos de base. A aposta da TL de que os atingidos tomem consciência crítica de sua realidade e a partir daí procurem por soluções que possam preencher sua necessidade de liberdade, autodeterminação e condições de vida digna.

Pelo primeiro, efetivam-se as relações interpessoais e, pelo segundo, a ajuda e apoio mútuos. Com isso, pode-se afirmar que a compreensão de solidariedade da TL pauta-se numa dupla dimensão: 1) como irmandade/fraternidade e 2) como reciprocidade exercida entre iguais, quais sejam, os excluídos, os dominados, os pobres. (WESTPHAL, 2008, p. 47).

No item 28 da parte II da encíclica Deus é amor do Papa Bento XVI, ele diz que precisamos de um Estado que “generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.” Ele dá toda a justificativa para a existência das ONGs e do estabelecimento de um empreendedorismo social compreendido pelo que conhecemos como Terceiro Setor, quando diz que essa ajuda pode se viabilizar “na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais [...] pondo à disposição verbas consideráveis.” O Papa deixa clara sua visão flagrantemente neoliberal quando afirma que “assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivíduos.”

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 91-95)