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ARQUITETURA E URBANISMO

A ESCOLA FRATURADA (1964-1969)

Antes mesmo do golpe militar, as forças de oposição às reformas do governo de João Goulart obtiveram uma vitória importante nas eleições de 1962. Ambicionando a presidência da república, os governadores eleitos Adhemar de Barros, de São Paulo, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, do estado da Guanabara, tornaram-se articuladores decisivos do golpe. Assumindo o Estado de São Paulo em 1963, o rival de Jânio Quadros e Carvalho Pinto nomeou para reitor da USP, o jurista ultraconservador Luís Antônio da Gama e Silva.127 O autor do AI-5 foi assim nomeado reitor da Universidade de São Paulo ainda no

período democrático.

Lourival Gomes Machado cumpriu seu mandato até o fim, em outubro de 1964. Para substituí-lo, porém, o reitor Gama e Silva escolheu o candidato menos votado da lista tríplice, o engenheiro elétrico e catedrático de ‘Geometria Descritiva’, Pedro Moacyr do Amaral Cruz, conhecido como Cabrão. Ele próprio parece ter se surpreendido com sua indicação e disse ter sido convencido pelo reitor a assumir o cargo, ao que aceitou estabelecendo três prioridades para sua gestão: a construção do prédio na cidade universitária, um novo regulamento para escola e a instauração da congregação.128

Cabrão assumiu a diretoria em janeiro de 1965 e logo fechou o laboratório fotográfico, o Museu, o Centro de Estudos Brasileiros do GFAU e mudou o regime de frequência, o que implicou na reprovação de 25 a 30% dos alunos.129 Apesar de tentar intervir no projeto de

Artigas, e até cogitar substituí-lo, o diretor defendeu o início urgente das obras na Cidade Universitária com o objetivo declarado de aumentar as admissões e disciplinar os corpos discente, docente e administrativo.130 Seu encaminhamento de um novo regulamento –

ainda que justificável pela adequação à nova lei federal e ao Estatuto da universidade –, foi interpretado como um questionamento da legitimidade da Reforma de 62 e do Fórum de 63. De fato, para os alunos, sua gestão se caracterizou por “uma constante luta de alunos e arquitetos defendendo as teses de 62 contra a tentativa de voltar aos padrões de ensino da velha Poli”.131 Por fim, a formação da Congregação exigia que pelo menos um terço das 26

cadeiras (ou seja, 9 cadeiras) estivessem preenchidas. Para isso, Cruz retomou os concursos de cátedras interrompidos desde 1957.

Para Vilanova Artigas o golpe militar teve consequências quase imediatas. Segundo Paulo Mendes da Rocha:

“A FAU estava em plena aula, no ateliê, na Rua Maranhão, quando as tropas saíram para a rua. Os rádios anunciaram o golpe militar, e, por coincidência, nós estávamos em aula com o Artigas recebendo três arquitetos cubanos. Quando os rádios começaram a anunciar, o Artigas pegou os arquitetos cubanos e sumiu”.132

Artigas foi perseguido em dois momentos. O primeiro foi no caso do Inquérito da Polícia Militar na USP, endossado por relatório de uma Comissão nomeada pelo Reitor, que destacava a “infiltração marxista na universidade, seus doutrinadores e agentes da subversão”133. Foram indiciados os professores Mário Schenberg, Caio Prado, Florestan

Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, João da Cruz Costa e Vilanova Artigas, entre outros. O arquiteto foi levado sob custódia de uma sala de aula da Vila Penteado, o que causou comoção e terror na escola. Segundo sua filha, Rosa Artigas, “ele ficou um mês preso, mas 21 dias incomunicável”.134 Isso ocorreu entre agosto e setembro. Quando voltou

à liberdade, os alunos da FAU o homenagearam com uma exposição de seus trabalhos. Cerca de um mês depois, Artigas foi indiciado em um novo processo por causa das cadernetas apreendidas de Carlos Prestes onde seu nome aparecia.135 Temendo nova

prisão, Artigas fugiu para o Uruguai, como fizeram muitos que tiveram os direitos políticos cassados pelo Ato Institucional n. 1, de abril 1964 e o Ato Institucional n. 2, de outubro de 1965.136 Artigas partiu em outubro de 1964, deixando a família em São Paulo. No fim do ano

letivo, sua família foi visita-lo.

“Ficamos até o início do ano letivo seguinte, até março. [...]. Ele ficou mais tempo. Dali muita gente foi para a Alemanha e para União Soviética. Para ele, havia duas propostas: ou ele ficava dando aula

132 Depoimento de Paulo Mendes da Rocha ao autor, realizado em 16 de julho de 2014. A menção aos arquitetos cubanos

pode estar relacionada à participação de Artigas no VII Congresso da UIA, realizado em Havana no ano anterior.

133 CARVALHO. Claudia Paiva. Intelectuais, cultura e repressão política na ditadura brasileira (1964-1967): Relações entre

direito e autoritarismo. Dissertação de mestrado em Direito. Orientador: Cristiano Paixão. Brasília: Universidade de Brasília, 2013.

134 Depoimento de Rosa Artigas ao autor, realizado em 14/03/2011.

135 “Foi uma coisa surrealista: ele era o fiador da casa que o Prestes morava na Vila Clementina, mas ele se safou porque o

proprietário da casa, que sabia que alugava para o Prestes, não era comunista, e o cara da imobiliária ficou com tanto medo que a casa ficasse fechada pela polícia durante cinco anos que sumiu com os papeis todos. Sem querer, ele salvou a pele de muita gente”. Entrevista de Rosa Artigas ao autor, realizada em 14 de março de 2011.

na Universidade de Montevidéu, ou ia para Argel porque o Niemeyer estava fazendo o projeto da Universidade de Constantine. O meu pai entra em uma profunda depressão e disse que não ia para Argel, não queria dar aula no Uruguai, queria voltar para cá. [...] Ele já estava decidido que ia voltar clandestino”.137

Paulo Mendes da Rocha complementa:

“Houve um episódio em que o Ícaro de Castro Mello, de direita, mas era amigo muito fraternal do Artigas, foi ao Uruguai (ou a Buenos Aires, não sei) para um evento da União Pan-americana dos Arquitetos e resolveu ver como ele estava. Foi ao Uruguai e se informou até achar o Artigas. [...]. O Ícaro tinha consciência do que estava fazendo. Não era do Partido Comunista, mas sabia muito bem como agir. Foi falar com a Virgínia, mulher do Artigas, e disse: ‘- Precisamos tirá-lo de lá, porque ele vai se matar’. Porque ele estava num tugúrio lá, numa pensão que tinha gente como ele, uruguaios, paraguaios, todos fugidos, sem dinheiro, alcoólatras, e no fim da linha; sem comida, comendo mal, cheirando mal, podres. [...]. Arranjaram um Fusquinha muito bem arrumado pelos mecânicos e o Alfredo Paesani, colega nosso – que foi presidente do Sindicato –, e a própria Virgínia foram nesse Fusca, com o itinerário estudado. Saíram lá para baixo, se enfiaram numas vielas, atravessaram numa balsa o rio Paraná, onde atravessa boi, gado e por esses meandros foram até o Uruguai. Ficaram hospedados em Montevidéu, onde o Artigas estava. Se hospedaram num hotel e o Paesani foi fazer contato para preparar o Artigas e não assustá-lo; [...]. Encontraram- no, enfiaram-no no fusca e trouxeram-no para cá, para ele ficar escondido na casa de uma senhora do Partido; que não era outra pessoa senão a irmã do Ministro da Agricultura. Essas contradições de família, ela comunista e o irmão, Ministro da Agricultura do regime militar. Ela era Sofia Tassinari (se não me engano), irmã do Pedro Tassinari”.138

Esse retorno, segundo Rosa Artigas, teria ocorrido em junho de 1965, um pouco antes do aniversário dele. Foram, portanto, cerca de dez meses no Uruguai. Mas mesmo em São Paulo, Artigas passou alguns meses na clandestinidade. Segundo Paulo Mendes da Rocha:

tratavam de fazer o melhor possível com a sua geladeira e, às 9h da noite, teriam que sair com o seu automóvel. A sua casa ficava vazia. Ia encontrar o Artigas, que iam dizer onde estava: ‘– Na esquina da rua tal com rua tal e você vai ver. Você encosta que é o Artigas, ele embarca no seu carro, você o leva para sua casa, põe o carro na garagem, sobe no elevador, põe ele no seu apartamento, que já não vai estar vazio. A Virgínia vai de taxi com os filhos como quem vai te visitar. Só que o apartamento estará vazio’. Dava a chave. Ela abre o apartamento, se instala (tem tudo na geladeira), liga uma música e espera o Artigas. E ficam lá das 21:30 até as 3:00. ‘– Às 4:00 da manhã, você vai buscar o Artigas. A família já não está mais lá, só o Artigas. Você põe ele no carro e solta ele na esquina da rua tal com a rua tal’. Você não sabia nem onde ele estava hospedado. Eu fiz duas vezes isso. Sei que o Pedro Paulo Saraiva fez no mínimo uma vez também no apartamento dele, e talvez ninguém mais tenha feito [...], e isso uma vez por mês”.139

Artigas retornou à FAU e à legalidade no segundo semestre de 1965, quando o IPM da Universidade acabou. A partir daí um habeas corpus preventivo lhe permitiu responder em liberdade o processo da Lei de Segurança Nacional das cadernetas de Prestes, tendo que se apresentar periodicamente, até o final de 1967. Nesse período, Artigas foi homenageado na 8ª Bienal de São Paulo (set. -nov. 1965) com uma sala hors concours, onde apresentou uma maquete da FAU.140

Apesar do terror que viveu – e talvez justamente por causa dele – Artigas evitou qualquer confronto direto com o regime, o que levaria a uma violência desproporcional e desnecessária, segundo acreditavam os membros do PCB. Foi bem no momento de seu retorno ao Brasil, em julho de 1965, que a revista Acrópole dedicou uma edição à obra de seus discípulos, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império – já não tão obedientes ao seu professor, como o episódio do apoio a Lourival havia demonstrado.141 Os jovens, ainda

ligados ao PCB, mas prevendo “tempos de guerra”, denunciavam o corte abrupto das perspectivas políticas, econômicas e sociais que haviam impulsionado a arquitetura moderna até então.142 Artigas, atento ao apelo que as ideias dos jovens professores podiam

ter entre os alunos, conseguiu inserir um texto seu na mesma edição da revista. Sob o título de “Uma falsa crise”, Artigas argumentava (sempre de modo cifrado), que apesar do regime

139 Idem.

140 Acrópole, n. 322, outubro 1965, p. 25

141 Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre também haviam escrito “Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação”,

publicado pelo GFAU em 1963. Nesse texto, os jovens professores lançaram as bases da “poética da economia”, questionando a definição de seus caminhos teóricos na arquitetura.

militar o país continuava no caminho de se tornar uma nação moderna e que a industrialização era positiva, devendo beneficiar os trabalhadores posteriormente. Nessas condições, a essência da arquitetura moderna não estaria em crise, havendo apenas “a superação de uma fase”.143

Na FAU, as metas de Pedro Cruz estavam sendo cumpridas, apesar da oposição de alunos e professores. Ele enviou o substitutivo do Regulamento, que foi apreciado pelo Conselho Departamental em 1966, iniciou as obras do prédio na Cidade Universitária – naquela altura com modificações – e abriu oito concursos de cátedra, conforme a tabela abaixo.