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3 AS TRAMAS E OS DRAMAS DE UM PERCURSO TEÓRICO-

3.1 A PESQUISA COM CRIANÇAS E A ETNOGRAFIA

3.1.2 A especificidade ética de uma pesquisa com crianças

A discussão sobre a ética, em pesquisas que envolviam crianças, foi por muito tempo omitida em documentos legais e produções acadêmicas. Essa invisibilidade foi nutrida, sobretudo, pela crença de uma incompletude das crianças e pelo discurso da vulnerabilidade infantil. Pela visão adultocêntrica da criança, como um ser incompleto, foram dispensadas suas opiniões, com a falsa ideia de que não seriam interlocutores competentes. Por serem consideradas vulneráveis, defendeu-se o afastamento do ponto de vista das crianças, com o argumento de que poderiam ser exploradas pelos pesquisadores (FERNANDES, 2016).

Associados, estes dois discursos, da incompletude e da vulnerabilidade, sustentavam o afastamento das crianças nas pesquisas e, por consequência, tornavam ausente a necessidade da construção epistemológica referente à ética. Os novos paradigmas da infância e da criança, propulsores das construções teórico-metodológicas apresentadas, trouxeram também implicações, questionamentos e novas reflexões sobre a ética na pesquisa com crianças. A partir da década de 1990, os trabalhos da pesquisadora Alderson (1995), sobre a temática, se destacam. A autora propõe um roteiro ético para a pesquisa com crianças, dando início às discussões e configurando um movimento de enfrentamento à omissão do debate ético, no que tange a esse tipo de pesquisa.

Nesse sentido, Walsh (2003) apresenta contribuições ao debate, propondo que, um trabalho de campo ético, com as meninas e os meninos, deve assumir como premissa que “as

crianças são inteligentes, sabem fazer sentido e querem ter uma vida confortável” (WALSH, 2003, p. 77). Inspirada nessas bases, esta investigação comprometeu-se com um comportamento ético, com uma atitude humilde e respeitosa com as crianças e com os adultos participantes do estudo durante todas as etapas da pesquisa. Partilho da compreensão de Walsh (2003), de que entrar na vida de outra pessoa é ser um intruso nessa vida e que, para isso, precisamos de permissão, pois é a permissão que define uma relação de respeito entre as pessoas.

Sob este prisma, para pedir permissão às crianças, pretendi esclarecer o meu papel de pesquisadora na entrada em campo, explicitando os interesses da pesquisa e afirmando a possibilidade de recusa em qualquer parte do processo. Para Soares, Sarmento e Tomás (2005, p. 58) “[...] informar as crianças acerca dos objectivos e da dinâmica da investigação (se estes não foram definidos com elas) é um passo essencial, o qual deverá cautelar que tais objectivos e dinâmicas se traduzam em conhecimento válido”. Assegura-se que, apesar de tais esclarecimentos, bem como do pedido de permissão, realizados no início da produção de dados, eles foram reafirmados durante todo o processo, não apenas verbalmente, mas com o olhar sensível e atento às diferentes formas de expressão e manifestação das crianças. Julgo esse pedido de permissão verbal, na entrada em campo, como uma postura ética e explicativa pela intromissão de uma adulta, pesquisadora, nos cotidianos das crianças. A elas, foi resguardado o direito de sigilo sobre qualquer informação que demonstrassem desejo de não compartilhar com outras pessoas ou que poderia implicar qualquer constrangimento a seu bem-estar.

Em relação à exposição de seus nomes, verdadeiro ou fictício, destaco o desconforto e a indecisão como sentimentos que me acompanharam desde o início da proposta da investigação. Pensei que, a experiência empírica e as trocas com as crianças, me permitiriam tomar uma decisão mais assertiva e tranquila quanto à questão, ainda no campo. Porém, para minha surpresa, na reta final da escrita desta Dissertação, essa dúvida ainda me tocava. Minha única certeza era a de que há pesquisadores com bons argumentos para o uso dos nomes verdadeiros das crianças (VASCONCELOS, 2015; DORNELLES; FERNANDES, 2015) e há pesquisadores com bons argumentos para o anonimato ou uso de nomes fictícios nas pesquisas (FERREIRA, 1998; FONSECA, 2010).

Retomei leituras, busquei outras, mas o dilema parecia cada vez mais difícil, posto que as lentes teóricas que me subsidiavam, conceitualmente, esbarravam-se em si mesmas quando se tratava da identidade das pessoas. Admito que cheguei a pensar em abster-me da discussão e escrever apenas uma nota de rodapé, daquelas ‘super explicativas’, apontando: os nomes das

crianças foram resguardados por questões éticas. Mas é claro que esse pensamento foi efêmero e que a questão deveria ser resolvida de uma outra forma.

Na busca por alternativas ou inspirações, visitei outras pesquisas realizadas com crianças, que se aproximavam das concepções teóricas deste estudo. Nessa procura, encontrei as mais variadas possibilidades utilizadas pelos pesquisadores, desde a opção de trocar o nome das crianças (MARCHI, 2007) a solicitar às meninas e aos meninos que escolhessem apelidos para si (KRAMER, 2002).

Dentre essas alternativas, nenhuma me deixava confortável. Mas também não concordava que o uso de nomes fictícios, para usar a argumentação de Kramer (2002), seria tão problemático a ponto de negar às crianças sua condição de sujeitos, apagá-los da pesquisa ou desconsiderar suas identidades. Contudo, penso que, no uso de apelidos escolhidos pelas crianças, que tem sido uma tática muito utilizada pelos pesquisadores, evidencia-se uma repetição de super-heróis e personagens de desenhos animados em voga, que pode acabar reforçando uma indústria cultural que não consideramos adequada às infâncias.

Sob um ponto de vista diferente, Fonseca (2010), em um texto argumentativo a favor do anonimato, coloca-o como um dos instrumentos utilizados nas etnografias para garantir a ética na pesquisa. Entretanto, a autora, ao mesmo tempo, reconhece que o uso de pseudônimos não garante o anonimato, uma vez que as descrições densas trazem muitos detalhes contextuais dos locais e das pessoas. Fonseca (2010) menciona a recomendação do Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia, especificadamente o item 3, da segunda seção, que constitui, como um dos direitos das populações que são objeto de pesquisa, o direito de preservação de sua intimidade. Em seu ponto de vista, o enunciado do Código de Ética “mereceria, mas parece que não suscita, muita discussão” (FONSECA, 2010, p. 208).

No entanto, o que a autora não menciona é que, o mesmo Código de Ética, três itens abaixo, indica também, como direito das populações investigadas, o “Direito de autoria e coautoria das populações sobre sua própria produção cultural” (ABA, 2012, online). Desse modo, as leituras pareciam cada vez mais conflitantes. O que realmente foi fundamental para uma tomada de decisão consciente e responsabilizada, sobre o uso dos nomes ou anonimato, foi uma provocação de Fonseca, no mesmo texto mencionado, em que questiona: “[...] se tomássemos como objetivo da etnografia entender algo dos ‘saberes locais’ que tantas vezes fogem das previsões da racionalidade moderna, será que os nomes literais realmente ajudam?” (FONSECA, 2010, p. 225, grifos da autora).

Essa pergunta, cuja resposta parece obviamente negativa, me colocou em uma posição de retorno aos dados e me permitiu perceber que esses embates teóricos, embora me

orientassem e auxiliassem na construção de argumentos, não seriam capazes de resolver meu dilema, e voltei a investir em meu diário de campo. Na leitura e releitura do instrumento, encontrei diversos episódios relacionados aos nomes das crianças, de modo que se tornou impossível ignorar o fato de que seus nomes tiveram uma grande importância para a pesquisa e para elas. A escrita de seus nomes próprios foi, inclusive, uma das aprendizagens mais constantes e intensas que pude observar durante a pesquisa. Entendi que não seria honesta com as crianças ao desconsiderar uma aprendizagem tão central em seus cotidianos ou mascará-las com nomes inventados.

Assim, com o peso dos dados em mãos, optei por utilizar os nomes verdadeiros das crianças, salvo algumas exceções, quando se reconhecem ou se chamam por seus apelidos. Saliento que essa decisão não apenas produz um acréscimo imprescindível aos dados, mas contextualiza muitos deles nas análises. Além disso, não houve denúncias, acusações ou situações que possam trazer qualquer tipo de constrangimento às crianças. O percurso que trilhei para defender a utilização de seus nomes verdadeiros foi:

1 - ler criticamente as argumentações teóricas de autores contra e a favor do anonimato; 2 - conhecer as alternativas que estão sendo empregadas por pesquisadores em investigações com crianças;

3 - fazer-me perguntas como: a utilização dos nomes reais pode ferir de alguma maneira qualquer direito da criança? Pode trazer algum tipo de constrangimento ou prejuízo à criança? O uso dos nomes tem relação com a participação ou autoria das crianças na pesquisa? As crianças foram informadas e consultadas sobre a possível exposição de seus nomes?

4 - pôr os dados à mesa e, por meio deles, buscar entender se o uso dos nomes realmente era importante para as análises.

Como podemos perceber, especialmente nas pesquisas em que as crianças são reconhecidas como sujeitos de plenos direitos, capazes, ativos e criativos, a questão do anonimato suscita reflexão. O modo encontrado e sistematizado, nesta pesquisa, conforme descrito acima, para a decisão da utilização dos nomes reais das crianças, talvez não seja o ideal. Reconheço que os questionamentos e os critérios utilizados poderiam ser ampliados e que, com toda a certeza, não se aplicam a todas as pesquisas com crianças. Minha intenção foi apenas a de demonstrar o caminho percorrido por mim, que pode ou não se ser útil a outros pesquisadores.

Para garantir um mínimo de anonimato na pesquisa, a alternativa encontrada foi a de manter em sigilo o nome dos adultos, da escola e do bairro, embora consciente de que isso não seja garantia de preservação integral das informações. Todavia, essa opção foi também permeada de incertezas, mas justificou-se pelo fato de que o nome verdadeiro dos adultos não

teve qualquer impacto nas análises, diferentemente do nome verdadeiro das crianças. Por questões ético-burocráticas, foram eles os primeiros a serem informados sobre a investigação. Para as gestoras, as professoras e as famílias das crianças, a pesquisa foi apresentada verbalmente e, o pedido de permissão, se deu por meio do Termo de Consentimento Informado, encontrado no Apêndice B desta Dissertação de Mestrado.

Quanto à devolutiva, para os adultos da escola, foi sugerido pela gestão que viesse em formato de formação continuada. As formações são uma prática da escola para o aprofundamento e discussão de temas inerentes ao trabalho na EI. Desse modo, os dados da pesquisa serão apresentados e discutidos com o grupo docente da escola no mês de outubro de 2019. Para os pais ou responsáveis foi elaborada uma carta de agradecimento, encontrada no Apêndice C, contendo genericamente o desenvolvimento da investigação. Para a devolutiva das crianças, inicialmente pensei na possibilidade de fazer uma representação da pesquisa em desenhos individuais, mas, como a maioria dos adultos, minha capacidade artística limita-se ao traçado estereotipado de casas, árvores, nuvens e sóis. A estratégia que utilizei foi a organização fotográfica das imagens capturadas ao longo da investigação, buscando dar visibilidade às inúmeras aprendizagens que as crianças construíram na pré-escola. Esse material será impresso e entregue individualmente para cada menina e menino que participou da pesquisa. Em face do exposto, após discorrer sobre os preceitos metodológicos e éticos que acompanharam esta escrita, apresento o contexto em que a investigação foi realizada.

3.2 PÔR NA TRAMA O CONTEXTO: UM ENFOQUE AOS BASTIDORES DE ENTRAR,