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3 A PROPOSTA DE PUNTEL COM A FSE: RECUPERANDO A

3.1 O quadro referencial teórico de EeS

3.1.3 A estruturalidade semântico-ontológico contextuais

Foi para desenvolver uma linguagem isenta dos termos singulares e predicados, fiadores da ontologia da substância nas linguagens naturais, que a linguagem filosófica foi elaborada por Puntel centrada não mais no princípio de composicionalidade, mas no princípio do contexto em sua forte versão 91. Eis a orientação básica deste princípio no dizer de Frege: “Somente no contexto de uma sentença as palavras têm um significado” 92

. Todavia, Puntel reformula este princípio a seu modo, atribuindo-lhe o adjetivo forte: “Somente no contexto de uma sentença as expressões linguísticas possuem valor semântico”. A expressão forte vem no debate com os que admitem a compatibilidade dos dois princípios. Na formulação, Puntel substitui significado por valor semântico em virtude da multiplicidade de significados do termo ‘significado’ na filosofia contemporânea (EeS, p. 266).

À emergência destas palavras, vemos como a sentença é para Puntel mais decisiva que a palavra, assim como o é a semântica frente à sintaxe, o que nos permite dizer que, tendo a sentença a primazia na linguagem, a linguagem é o conjunto das sentenças, ou ainda que toda e qualquer sentença pertence a uma linguagem, que seria o conjunto de todas as sentenças. Por conseguinte, nenhuma sentença pode ocorrer de modo isolado uma das outras já que

91 Segundo Puntel “Muitos filósofos analíticos contemporâneos mantém o PCTS [princípio do contexto], usando

algumas vezes outros nomes como “(Princípio do) Primado Semântico da Sentença”. E, em geral, eles defendem que os dois princípios são perfeitamente compatíveis. Dessa forma, eles pressupõem o que poderia ser chamada

a versão fraca do PCTS (a partir de aqui W-PCTS [“W” do inglês “weak”]). De acordo com a versão fraca, todo

constituinte sub-sentencial tem o seu próprio “significado” ou “valor semântico” somente na medida em que ele contribui para o significado ou valor semântico da sentença como um todo. Mas isto deixa toda a questão semântica e ontológica intocada: mudanças fundamentais na semântica e ontologia não são requeridas ou induzidas.” In. Cf. PUNTEL, Lorenz B. O conceito de categoria ontológica: Um novo enfoque. p. 13. Os motivos alegados levam-nos a compreender que o princípio do contexto em sua forte versão é completamente incompatível com o princípio de composicionalidade, não obstante, somente aceitando o princípio do contexto, em sua fraca versão, poderíamos postular seu vínculo com o princípio de composicionalidade. Cf. EeS p. 266.

92 FREGE, Gottlob. Os Fundamentos da Aritmética. p. 256. O princípio aparece quatro vezes nos Grundlagen,

e sua principal ocorrência se encontra no §62 encontrado na página supracitada na edição brasileira; aqui, o princípio do contexto desempenha o papel de combater uma visão atomística ideacional de significado semântico.

possuem uma relação/vínculo mútuo com outras sentenças que formam a linguagem 93. Uma vez que toda sentença de uma linguagem teórica expressa uma proposição prima, essas sentenças devem expressar proposições primas 94. De modo mais exato, uma proposição prima é o expressum do que ocorre numa sentença prima. De acordo com Puntel “o valor semântico total da sentença ‘Sócrates é um filósofo’ [...] é a configuração de todas as proposições primas expressas por meio das sentenças primas” (EeS, p. 162). Tomemos como exemplo a sentença na forma S-P: ‘Sócrates é um filósofo’. Essa sentença pode ser reformulada para os fins filosóficos da FSE a partir de uma configuração de sentenças primas. O sujeito “Sócrates” pode ser reinterpretado, ou seja, pode ser “desmembrado” e compor as seguintes sentenças primas: “é o caso que Sócrates”, “é o caso que grego”, “é o caso que nascido em 469 a. C.”, “é o caso que mestre de Platão”, “é o caso que filósofo” etc. 95

.

A estrutura desses tipos de sentenças pode ser formalizada atribuindo um operador teórico, assinalado, por exemplo, “X é o caso que ”. Onde ‘X’ não é o sujeito, mas um indicativo geral de um campo que é articulado de modo indireto e irrevogável em toda e qualquer sentença teórica. Destarte, o uso do operador teórico em qualquer sentença declarativa revela e explicita uma dimensão pressuposta por todo e qualquer empreendimento teórico, pois segundo M. Oliveira “esse operador não inclui nenhuma referência ou relação a algo de não linguístico. Assim, ele é nesse sentido um operador estritamente semântico, que abstrai completamente de qualquer relação a sujeitos, falantes etc. 96.

Ora, já que toda sentença é semanticamente estruturada, podemos observar que, tal como é o caso da semântica articulada pela FSE que pela “desvelação” do operador teórico, as sentenças também deverão tem um expresso, um conteúdo informativo, que não é senão a proposição (Cf. EeS, p. 268). E se sentenças são sentenças vinculadas ao mundo 97, necessariamente, somos levados a especificar e delinear o outro lado da moeda, isto é, a dimensão ontológica que decorre como exigência reflexiva da concepção semântica.

93 A linguagem a que nos referimos nesse parágrafo corresponde à linguagem maximal cuja caracterização será

discutida no último capítulo desse trabalho; vale ainda ressaltar que o conjunto das relações inter-sentenciais é

rigorosamente determinado pelas estruturas lógicas, que estão e serão apenas pressupostas até determinado momento de nossa exposição.

94 A palavra ‘prima(o)’ é empregada para diferir essas proposições de proposições baseadas na semântica e na

ontologia composicionais. De acordo com o que Puntel sugere “[...] a sentença prima se define – negativamente – por não possuir a forma ‘sujeito-predicado’, uma formulação como ‘[X] chove’ não pode ser entendida ou interpretada como se ‘[X]’ fosse o sujeito e ‘chove’ o predicado.” In. SeD, p. 178.

95 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A Ontologia em debate no pensamento contemporâneo. p. 234. 96 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A Ontologia em debate no pensamento contemporâneo. p 220. 97

Observemos que as sentenças da semântica composicional também são vinculadas ao mundo, só que aqui o mundo é entendido como o conjunto de substâncias. Na FSE a semântica e a ontologia sustentados se diferem da semântica e ontologia composicional.

A incontestável referência semântica ao mundo já é em si mesma uma alegação ontológica, todavia, cabe-nos especificar o que devemos compreender no componente central nesta alegação, a saber, mundo, pois a sua delimitação conceitual nos dará as bases para compreender a orientação fundamental dessa ontologia 98.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a estrutura categorial do mundo é captada pela única categoria ontológica denominada fato primo (Cf. EeS, p. 276). Wittgenstein alegava, em seu Tractatus, que fato é a existência de estados de coisas, ou seja, o que ocorre 99. Em grande medida, uma interpretação plausível do que Wittgenstein infere é possibilitado pelo quadro semântico ontológico com o qual se opera (Cf. EeS, p. 217).

Enquanto a ontologia derivada da semântica composicional somente pode reconhecer como realidade uma entidade composta pela substância e suas propriedades/relações, a ontologia derivada da semântica contextual reconhece como entidade tudo que pode ser expressável pela linguagem, isto é, conceitos, relações, eventos, estruturas formais (lógico- matemáticas), enfim, toda a dimensão teórica deve ser ontologizada: conhecimentos, teorias, ciências, e filosofia somente são compreendidos adequadamente e desenvolvidos se aceitarmos que toda a dimensão teórica tem uma face ontológica; o alcance disso em larga escala significa que não só os sujeitos cognoscentes, os teóricos, mas, também, toda a dimensão teórica conceitual deve ser vista como parte da natureza, do mundo, do universo, do Ser como tal em seu todo (Cf. EeS, p. 535, 536) 100. Acabamos de tratar duas questões entranhadas: i- a questão da categoria ontológica fundamental, aquela com que entendemos toda e qualquer coisa: no caso da ontologia composicional é a substância e no da ontologia contextual, sustentada pela FSE, é fato; ii- a questão da abrangência da ontologia que pode

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Vale evidenciar que Puntel distingue entre mundo e Mundo. O primeiro diz respeito à dimensão entendida como a totalidade que abarca todos os entes objetivos e que, todavia, não inclui em si toda a dimensão estrutural da realidade, do Mundo ou do Ser. O segundo é evidenciado pelo que Puntel chama de “ser primordial”, pois uma vez que as dimensões estruturais e objetivas se relacionam é preciso pressupor uma unidade fundamental que a possibilite, daí o termo Mundo é a dimensão que abrange a dimensão estrutural e o mundo. Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A Ontologia em debate no pensamento contemporâneo. p. 259. Observemos que quando se fala de sistemática do mundo, estamos nos referindo a mundo. Foi a confusão dessas assunções que levou Imaguire a más compreensões do que Puntel entende por totalidade do real. Cf. IMAGUIRE, Guido. Resenha: PUNTEL, L.B. 2006. Struktur und Sein, Tübingen: Mohr Siebeck. Tübingen, Mohr Siebeck, 687 p. In.: Filosofia Unisinos, 9 (3):284-292, set/dez 2008. Aqui, p. 287-291. A má compreensão foi denunciada por Puntel. Cf. PUNTEL, Lorenz B. Observações críticas sobre uma resenha de Guido

Imaguire da obra: Estrutura e ser. Um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. Síntese -

Rev. de Filosofia V. 40 N. 126 (2013): 43-72. p. 59.

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WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001 [Trabalho original

publicado em 1921]. p. 27. 100

A afirmação sinonímia de natureza, mundo, universo e Ser, presente nesse trecho, será abandonada posteriormente quando abordarmos a dimensão do mundo. Por hora, podemos sem problemas tomar esses conceitos como sinônimos.

ser uma característica de ambas as ontologias. A seguir concentraremos nossa exposição apenas na questão ‘i’ restringindo a exposição à categoria ontológica fundamental defendida em EeS.

O mundo, que aqui é a dimensão ontológica, deve ser apresentado de duas maneiras gradativas: primeiro é entendido como exprime a segunda sentença do Tractatus de Wittgenstein: “O mundo e o conjunto dos fatos, não das coisas” 101; depois, com uma alteração que, segundo Puntel, torna mais preciso o alcance teórico da formulação anterior: “O mundo é a totalidade dos fatos primos como estruturas primas ontológicas expressáveis (não das coisas)” (EeS, p. 314). Mas, como são definidos conceitualmente os fatos primos? Puntel elucida a questão do seguinte modo:

[...] um fato primo simples não deve ser pensado como uma entidade isolada ou atômica num sentido absolutamente literal e negativo, “sem janelas”, e totalmente encapsulada; ele próprio é, antes, estruturado, e isto no sentido de que ele é determinado por uma rede de relações ou funções; dito de outro modo: ele é essa rede de relações ou funções.[...] por causa dessa determinidade ou justamente “estruturalidade” do fato primo simples pode e deve ser dito que o próprio fato primo simples é uma estrutura (ontológica) prima. “Estrutura” deve ser entendido agora não como estrutura abstrata, mas como estrutura concreta: como um fato simples determinado por uma rede de relações ou funções (EeS, p. 277).

Os fatos primos podem ser simples ou complexos, todavia o que vale é que estes fatos são estruturas ontológicas, mais exatamente estruturas primas ontológicas. As simples estruturas primas ontológicas são absolutamente as menores e mínimas estruturas, como um conjunto 0. Como tais, estas estruturas, tomadas isoladamente, representam uma abstração, o que não é o caso das estruturas concretas ou complexas as quais são configurações de fatos primos, ou seja, são fatos primos complexos 102.

Reparemos que o marco inicial de Puntel são os dados, ou entidades originais que estão inseridos no universo do discurso, articulados em um primeiro momento como sentenças primas, as quais exprimem proposições primas, e estas, se verdadeiras, são idênticas a fatos do mundo. Proposições primas ou fatos primos simples não são nada mais que entidades primas individuais cujo único elemento que possuem é a relação a si mesmos e, desta maneira, estruturam apenas a si próprios como uma estrutura puramente abstrata. Por sua vez, proposições primas complexas e fatos primos complexos são configurações de fatos primos simples e de proposições primas simples. As entidades originais que povoam o mundo

101 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. p. 135. 102

Estrutura pode ser entendida conforme as elucidações de Puntel das seguintes maneias: a) puras ou abstratas, b) especificas ou concretas. Este tema será tratado com profundidade maia à frente quando abordarmos o conceito estrutura.

nada mais são que configurações de fatos primos e, no sentido acima referido, essas entidades devem ser também denominadas de acordo com a configuração das proposições primas (Cf.

EeS, p. 222; 276).

Desse modo, fatos primos devem ser entendidos como a referência dos conceitos de sentença prima e proposição prima, o que nos fornece a base para assegurar que as estruturas ontológicas são a expressão do ponto final, o estatuto definitivo das estruturas semânticas. O que resulta na afirmação defendida e interpretada por Herrero de que “assim, a ideia fundamental de verdade, num segundo momento, é a referência ontológica de verdade(iro) como identidade de proposição e fato” 103. Tal conexão permite articular como o conteúdo informacional semântico – dado numa proposição prima por meio de uma sentença prima – está entrelaçado com um fato no mundo.

3.2 A sistemática compreensiva como investigação da dimensão fundamental que