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APÊNDICE I O crucifixo que jorrou sangue

CAPÍTULO 2 O SURGIMENTO DA RCC EM SAPUCAIA

2.1 A experiência carismática

O estudo teórico da religião sempre foi algo presente nas ciências sociais, no entanto, a diferença está em que teóricos clássicos como Durkheim, Weber, Mauss, dentre outros, analisaram o fenômeno a partir da Instituição ou de um sagrado

instituído – termo de Roger Bastide (2006) – e não da religiosidade ou das

experiências religiosas pessoais.

Buscando esclarecer a diferença entre religião e religiosidade, Crespi (1999) discorre que ao se considerar a propensão de se reduzir a complexidade da realidade, tende-se a criar representações que se pensem capazes de dar respostas às indagações sobre o sentido da vida e de oferecer regras certas de comportamento. A partir daí surge a religião institucional como uma forma de mediação extremamente eficaz. Utilizando Simmel, Crespi aponta que o fenômeno religioso não se reduz ou se esgota a funções e/ou institucionalizações, pois, que há “[...] na religiosidade um modo primário, específico, irredutível e fundamental do ser humano que pode se manifestar na crença de uma fé, como também revelar-se em outras atitudes não identificáveis com as formas codificadas de uma religião” (CRESPI, 1999, p. 15). A consideração para Crespi (1999) seria de que a religião fornece uma base da coesão social, mas a experiência religiosa não exerce, a não ser indiretamente, uma influência social, “mas responde unicamente a exigências existenciais, sustentando o indivíduo na sua referência a dimensões que transcendem a socialidade”. (CRESPI, 1999, p. 16).

Se a religião institucional é profundamente condicionada pelas estruturas sociais que ela, por sua vez, condiciona, a religiosidade, enquanto experiência pessoal, abre para horizontes de sentido relativamente autônomos com relação à realidade social, podendo aliás se tornar uma das principais forças de desmistificação das formas alienantes de absolutização presente na realidade social e na própria religião. A partir desta base, Simmel pôde interpretar a crise da religião na sociedade moderna em termos de uma pogressiva

privatização da experiência religiosa. (CRESPI, 1999, p. 16, grifo do

autor).

Portanto, o que vem a ser a religiosidade enquanto uma experiência pessoal nesse contexto? Dentro da antropologia, como ciência que busca a compreensão do ser humano em seus múltiplos aspectos culturais (LAPLANTINE, 2003), alguns autores a entendem como a experiência do transcendente e da transcendência, aquela “capacidade, típica do ser humano, de sair para fora de si, do seu corpo, da sua situação humana, através da reflexão, do pensamento, do sonho, da imaginação”. (SCHIAVO, 2007, p. 65).

Dialogando com as Ciências da Religião, Croatto (2004) diz tratar de uma vivência relacional do humano com o transcendente, que, por ser humana, é limitada à realidade e, por isso, sempre objeto de desejo e de uma busca sem fim. Nas experiências religiosas as necessidades são saciadas, conforme descreve o autor, nesses termos:

As ‘necessidades’ são saciadas, na instância religiosa, por realidades de ordem transcendente: as físicas por milagres (cura, comida ou bebida milagrosa, ressurreição...); as psíquicas com a paz, o gozo da ‘glória’ ou a visão de Deus, estados místicos, amor plenificante...; as

socioculturais por uma nova ordem social, a libertação como ação

divina na história, a irrupção de um mundo novo (2004, p. 45, grifo do autor).

Costa (2006. p. 123) assim discorre:

Para o carismático, a experiência religiosa primordial é, precisamente, a exaltação desta intimidade com Deus. Se usarmos categorias weberianas, o carismático exclui, ou torna secundárias, vias de salvação muito comuns a outras opções: o cerimonial ritualista, as obras sociais, a subordinação confiante ao instituto da graça (Igreja) aliado à fides implícita, a ascética intramundana racional e ultrametódica (como convicção de salvação). A experiência da relação pessoal com Deus é como que uma revelação e daí a confiança ilimitada quer no divino quer naqueles a quem ele se revela [...]

Atraídos pela experiência da transcendência e do transcendente, os participantes dos grupos de oração e das variadas práticas religiosas carismáticas, vão à procura de respostas para as diversas perguntas sobre o sentido da vida e da existência. Nesse sentido, acreditam receber amparo e segurança para os momentos difíceis, preenchendo-se dos vazios gerados pela finitude da vida e sentindo-se garantidos quanto a um destino positivo no final de suas caminhadas como seres humanos na terra (SCHIAVO, 2007).

Foi no aspecto das experiências pessoais carismáticas que se sentiu a necessidade de um olhar mais aguçado. Por mais que fossem justificáveis as diferenças entre os grupos de oração por conta de contingências naturais e inerentes ao mundo social, o que se deparava eram modos diferentes de uma mesmo movimento, o que necessariamente se faria concluir que existia mais de uma maneira de ser carismático e, supostamente, mais de uma gênese.

Uma das formas encontradas para dar compreensão à questão das modalidades carismáticas e, consequentemente, às diferentes experiências de vivenciar o movimento, foi, portanto, o conhecimento de suas origens em Sapucaia. Ou seja, creditou-se que por esse caminho poder-se-ia chegar à hipótese de que as maneiras como as experiências carismáticas foram transmitidas e concebidas provocaram a existência de mais de uma modalidade57 de Renovação na cidade.

A primeira origem da RCC em Sapucaia remete-se ao ano de 1977 e a outra ao final da década de 80. A modalidade carismática iniciada na década de 70 permaneceu no decorrer dos anos até os dias atuais, mas a originária em 1988, por conta da grande efervescência dos anos 90, gerou outras duas modalidades carismáticas: a modalidade das comunidades e a modalidade dos Guerreiros de Oração. Desta, as vigílias de oração nos montes tornar-se-ia uma de suas maiores marcas.

Tanto um quanto outro relato do surgimento ocorreu a partir de retiros chamados Experiências de Oração. Eram encontros realizados geralmente nos salões paroquiais das igrejas católicas, começando no início da noite de sexta-feira e terminando no fim da tarde do domingo.

57 Modalidade: propriedade que tem a substância de ter modos. Nesta pesquisa entende-se que no caso de Sapucaia a substância seria a RCC e suas modalidades seriam a RCC iniciada em 1977, a iniciada em 1988, a modalidade das Comunidades da década de 90 e a modalidade dos Guerreiros de Oração de 1994.

Tal qual na década de 60, quando dos Cursilhos nos EUA e Brasil, as Experiências de Oração eram encontros semelhantes58 no que se refere aos temas palestrados, diferenciando-se apenas na inclusão da temática do Espírito Santo, nos louvores e nas orações que favoreciam as experiências subjetivas emocionais atribuídas ao Batismo no Espírito.

Por meio de conversas informais, relatou-se que basicamente a RCC em toda a cidade de Sapucaia operava da seguinte forma: com os Encontros chamados Experiência de Oração, realizados algumas vezes ao ano nas paróquias que já haviam aderido aos carismáticos, com os Grupos de Oração realizados uma vez por semana para divulgar o movimento e acolher os novos que haviam feito os encontros e com os Grupos de Intercessão. Estes surgiriam depois, no final da década de 80 e início de 90, como um complemento do Grupo de Oração e por conta da necessidade de amparar e organizar espiritualmente o movimento em função do aumento expressivo dos participantes na década de 90.

O grupo de intercessão tratava-se de uma reunião em menor número composta pelos carismáticos mais experientes que já tinham um envolvimento maior na RCC. Era a reunião daqueles que futuramente seriam chamados na década de 90 “servos” (de Deus) 59, que eram as pessoas que haviam sentido uma espécie de chamado divino para trabalhar na evangelização e as que mais evidenciavam os dons do Espírito Santo.

Este grupo, comumente chamado apenas de Intercessão, é uma reunião semelhante aos grupos de oração onde se louvam, batem palmas, partilham a palavra de Deus e principalmente oram. Mas, a diferença está nos seguintes pontos: somente as pessoas que fizeram um retiro carismático podem participar; é uma reunião estritamente feita para se rezar ou para “interceder” pelo grupo de oração, pela cidade, estado, país e pelo mundo. É um grupo que fornece amparo para que o grupo de oração permaneça em bom funcionamento e, por fim, entendeu-se tratar de um grupo

58 Não se percebeu que estas informações fossem do conhecimento de nenhum entrevistado ou informante durante o período do trabalho de campo.

59 Não se sabe ao certo ainda a procedência do termo “servo de Deus”. O que se sabe é que não se trata de um termo utilizado entre os fiéis católicos leigos que não participam da RCC. De forma não corriqueira, o termo “servo” pode ser utilizado como referência ao Papa, aos bispos e sacerdotes em geral. Em contrapartida, no meio pentecostal, o termo servo é comum e utilizado para aludir tanto aos pastores como aos “obreiros”, ou seja, todos aqueles que prestarem algum serviço na Igreja ou que manifestarem uma vocação ou chamado divino para tal. Por isso, supõe-se que de alguma forma o termo servo tenha procedência pentecostal.

mais favorável às manifestações espirituais pelo fato de todos já fazerem parte do movimento.

No entender deste trabalho os Grupos de Intercessão em Sapucaia representam não apenas a imagem mais próxima do que é a RCC, mas de que modalidade de RCC está-se falando, pois é na Intercessão que a experiência carismática é mais explicitada por meio das orações e de toda a sorte de manifestações corporais sentidas quando a pessoa se diz preenchida ou possuída pelo Espírito Santo.

Conta-se que principamente na década de 90, com o surgimento da modalidade carismática de 1988 e da modalidade dos Guerreiros de Oração, os Grupos de Oração, especialmente, os de Intercessão passaram a ser palco de várias tensões. Ocorreu que através deles passaram-se a presenciar exageros e desobediências às orientações feitas no Doc. 53 da CNBB, favorecendo o surgimento de novas formas de vivenciar a religiosidade dentro da própria renovação carismática, conforme aponta Costa (2006, p. 124): “[...] múltiplas correntes se formaram e entrechocaram, criando sérios embaraços pelas franjas que penetravam nas igrejas estabelecidas”.