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A função transcendental do corpo somático

2. A constituição do objecto físico e do corpo somático

2.3. A função transcendental do corpo somático

O que diremos de seguida pode não parecer totalmente fiel aos ensi- namentos de Husserl, pelo menos se nos ativermos à letra dos seus textos, porém, pensamos que Husserl, por vezes, nos convida a lê-lo ou a interpretá- -lo do modo como o iremos fazer. Sendo verdade o que dissemos da alínea anterior, ter-se-á de concluir que o corpo somático desempenha um papel transcendental. Se a apreensão dos dados hiléticos se faz de acordo com a estrutura receptiva de atracção ou de afastamento de que anteriormente

313 Husserl, Ideen II, Hua IV, p. 68. 314 Idem, Ibidem, p. 149.

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falámos, estaremos já, por conseguinte, na presença de uma primeira forma de síntese, desde que consintamos em dar a este termo um sentido mais amplo do que o que Kant para ele reservou.

Chamaremos síntese, de acordo, segundo cremos, com Husserl, a todo o processo que tende a constituir a unidade de uma multiplicidade316. O cor-

po somático não opera sínteses do diverso em sentido kantiano, mas sim fusões contínuas de elementos que liga por associação. A função que opera as associações é chamada, por Husserl, «função de recobrimento». Para que dois sons, ou duas cores, por exemplo, possam ser associados – dito de outro modo, para que se recubram – é necessário que se destaquem por contraste de um conjunto homogéneo de outros sons e de outras cores e que adquiram a força afectiva suficiente para despertar a atenção. O § 28 do volume da Husserliana sobre as Sínteses Passivas, bem como o Apêndice XVIII, têm páginas de grande profundidade sobre esta questão317.

Sem a associação – sem a semelhança ou a homogeneidade sensíveis –, sem esta espécie de reverberação318 que emana dos objectos e que permite

que eles, mesmo à distância, se recubram, não teríamos um mundo, mas apenas um agregado caótico de sensações. Poder-se-ia defender que o me- canismo associativo se explica, pura e simplesmente, por dispositivos de or- dem biológica ou neurofisiológica, de que, enquanto espécie, necessitamos para sobreviver, tanto quanto os animais. Pensamos que, mesmo que esta hipótese seja verdadeira, ela não será pertinente no contexto da nossa dis- cussão presente. O sentido que esta estrutura associativa possui para a expe- riência vivida é independente da história da nossa espécie e dos fenómenos que marcaram a sua adaptação progressiva ao meio. Para a fenomenologia,

316 Cf. Elmar Holenstein, Phänomenologie der Assoziation, Den Haag, Martinus Nijhoff,

1972, p. 84. Sobre a relação entre associação e síntese, cf. Husserl, APS, Hua XI, Apêndice XVIII, pp. 405-411.

317 Husserl, APS, Hua XI, § 28, pp. 128-133, Apêndice XVIII, pp. 405-411. Francisco

Conde Soto, in «Temporalidad y intencionalidade passiva en los manuscritos C», Phainome-

non, 13 (2006), 37-78, p. 61, nega que se possa falar já de síntese, como fizemos mais acima,

neste nível elementar. Todavia, a diferença em relação a nós é, talvez, de ordem meramente terminológica. Além disso, o referido autor fala também de relações de recobrimento. Notemos que a mesma estrutura temporal, composta por fenómenos de retenção e de protensão, que está presente nas sínteses de recobrimento, encontra-se igualmente nos fenómenos que analisámos mais acima.

318 Traduzimos por «reverberação» a palavra alemã Resonanz; cf. APS, Hua XI, p. 406:

«É uma lei universal da consciência o facto de, a partir de cada consciência particular, ou de cada objecto particular, sair uma reverberação, e a semelhança é a unidade dos objectos que reverberam.»

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a associação é um fenómeno de unidade no interior da corrente de cons- ciência; sempre que tal fenómeno tem lugar no seio de uma consciência actual, é graças à sedimentação de actos de consciência passados.

Há algumas aproximações muito interessantes a fazer com Freud a pro- pósito da análise husserliana destes níveis, ainda muito elementares, da ac- tividade intencional. Em 1916-17, nas suas Lições de Introdução à Psicanálise, Freud compara os investimentos libidinais nos objectos (as Objektbesetzun-

gen) aos pseudópodes de certos organismos unicelulares, que são capazes

de se estender na direcção dos objectos pelos quais são atraídos, ou de se afastar deles, regressando ao corpo da célula319. Na mesma ordem de ideias,

no pequeno ensaio intitulado «A negação», Freud defende que os processos psíquicos de ordem superior se desenrolam segundo uma técnica que fora já ensaiada na extremidade sensorial do aparelho psíquico, no fenómeno do tacto:

«Com efeito, de acordo com a nossa hipótese, a percepção não é, de forma alguma, um processo passivo, pois o Eu envia periodicamen- te para o sistema perceptivo pequenas quantidades de investimento libidinal, por meio dos quais capta os estímulos externos, para, de seguida, se retirar após todos os avanços tácteis deste tipo.»320

Além disso, encontramos em todo este ensaio afirmações muito inte- ressantes cuja concordância com diversas teses de Husserl não seria difícil, segundo pensamos, comprovar. Por exemplo, Freud diz que o juízo é o mo- mento da decisão, que ele põe fim a um estado de prolongamento indefi- nido do pensamento (Freud chama-lhe um Denkaufschub) e está na origem de acções de carácter motor. Husserl diz quase o mesmo nas Análises para

a Síntese Passiva, em passagens que foram retomadas por Landgrebe para a

redacção de Experiência e Juízo. Tal como Freud, Husserl diz que o juízo é o momento da decisão que põe termo a um estado de tensão não resolvido, durante o qual o pensamento flutua perante alternativas entre as quais não se conseguira ainda decidir. Certamente que, enquanto fenomenólogos, de- veríamos chamar «naturalista» à maneira de Freud se exprimir sobre estes

319 Cf. Freud, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Hamburg, Nikol Verlag,

2010, pp. 7-442, «26. Vorlesung», p. 397. Esta comparação tem lugar no contexto de uma análise da libido narcísica, o que não tem grande importância para os nossos propósitos.

320 Freud, «Die Verneinung», in Gesamelte Werke, Studien Ausgabe, Band. III, pp. 373-

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assuntos. Pensamos, todavia, que Freud vai, por vezes, mais longe do que aquilo que a sua linguagem deixa supor. O que está em causa, nas análises que acima referimos, é a existência de mecanismos de orientação e de or- ganização da experiência, cujo modo de operar é já de tipo transcendental. Para lhes negar tal carácter seria necessário demonstrar que Freud defende que entre o estímulo e a resposta – ou entre a excitação e a descarga que lhe põe fim – existe uma relação de tal ordem que a um incremento ou dimi- nuição dos primeiros corresponde sempre um incremento ou diminuição proporcionais dos segundos, coisa que, ao que pensamos, ele nunca fez.