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2. A DESIGUALDADE NO BRASIL

2.2 A GLOBALIZAÇÃO E A DESIGUALDADE

Dois aspectos diretamente relacionados à globalização: soberania estatal e intervencionismo econômico. Sobre o primeiro toda a análise o trará à tona, quanto ao segundo serão expostas suas relações com a desigualdade.

Destacando a importância no contexto mundial da tríplice relação entre Estado, soberania e intervenção econômica, referenciamos obra de José Eduardo Faria144:

Por todos esses motivos, a “unidade” do Estado, mais precisamente o comportamento unitário da esfera pública diante da extrema diversidade de interesses privados e do crescente número de decisões econômicas tomadas fora do alcance de sua jurisdição funcional e de suas fronteiras territoriais, passa a ser um problema – e não um fato natural. Com o fenômeno da globalização, as estruturas institucionais, organizacionais, políticas e jurídicas forjadas desde o século XVII e XVIII tendem a perder tanto sua centralidade quanto sua exclusividade. No âmbito de uma economia transnacionalizada, as relações entre os problemas internacionais e os problemas internos de cada país vão sendo progressivamente invertidas, de tal forma que os primeiros já não são mais apenas parte dos segundos; pelo contrário, os problemas internacionais não só passam a estar acima dos problemas nacionais, como também a condicioná-los. Com isso, as intervenções regulatórias, os mecanismos de controle e direção sócio-econômicos e as concepções de “segurança nacional” que instrumentalizaram as estratégias de planejamento entre o pós-guerra e os anos 70 perdem vigor e efetividade. As políticas de desenvolvimento de médio e longo prazo, tão comuns nesse período histórico, colidem fundamentalmente com o cálculo conjuntural e com o sentido de urgência decorrentes da força internacionalizante do capitalismo. Como, nesse novo contexto, a decisão de participar ou não do fenômeno da economia globalizada muitas vezes acaba ficando fora do alcance dos legisladores e dos formuladores de política econômica nacional, por mais estranho ou paradoxal que isso possa parecer, que papel, por exemplo, pode ser exercido por uma “Constituição-dirigente”?

Sobre a relação posta em relevo pode-se concluir que o exercício da soberania passa necessariamente não somente pela atuação do Estado, mas também pela forma como este Estado atua, incluindo sua presença na economia, como elemento balizador do mercado e, principalmente, como agente da distribuição de renda.

144 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1. ed. 4. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 33-35.

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Mais uma vez recorre-se à Celso Furtado145, especificamente ao prefácio de sua obra O longo amanhecer, a fim de mostrar, resumidamente, a conjuntura em que se insere a questão da soberania sob o fenômeno da globalização:

A ninguém escapa que o espaço em que atuamos para prosseguir na construção do Brasil reduz-se a olhos vistos, ao mesmo tempo que cresce a importância da variável política.

Os sistemas de poder se fazem cada vez mais heterogêneos em um mundo em que os Estados nacionais perdem importância para instituições transnacionais, multinacionais e mesmo regionais. As atividades financeiras, beneficiadas por avanços surpreendentes na eletrônica, assumem posições de vanguarda na modelagem das estruturas do poder. Os padrões monetários tendem a unificar-se, o que amplia significativamente o âmbito de ação da moeda dominante, ao mesmo tempo que se impõe a constituição de vultosas reservas monetárias em benefício das economias centrais. A conseqüente redução da margem de autonomia das autoridades nacionais torna mais difícil alcançar a superação do subdesenvolvimento. As atividades produtivas de alcance estratégico tendem a ser controladas por grupos privados transnacionais, o que está reforçando a concentração do poder econômico e a exclusão social. O processo político, por seu lado, evolui no sentido de conglomeração de interesses.

Não resta dúvida de que o ciclo histórico que se abre será marcado pela emergência de uma nova concepção política. O formato que assumirá o Estado nacional em países de grandes dimensões territoriais e demográficas como o Brasil ainda está por definir-se.

Há muito para se falar sobre a globalização. O texto destacado apresenta os seus elementos principais. É interessante observar que, sob o ponto de vista de expansão capitalista, não se trata de um fenômeno recente, ou a última das teorias sociais, e sim do recrudescimento de um antigo processo, que sob determinada ótica, nada tem de evolutivo e muito menos de natural: o alargamento da exploração, da dominação, que no mundo globalizado desconhece fronteiras territoriais, éticas, e morais.

Antiga, porém nunca tão difundida e abrangente como nos dias de hoje, a globalização é apresentada por José Eduardo Faria146 como um tema recorrente,

fenômeno complexo e de várias faces, que atinge as mais variadas áreas da vida social. A obra de Faria tem como objetivo avaliar o impacto da globalização no

145 FURTADO, Celso. O longo amanhecer – reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. p. 9.

âmbito do direito e, para tanto, ele parte da relativização dos principais conceitos envolvidos no tema, como soberania, legalidade, hierarquia das leis, direitos subjetivos, igualdade formal, cidadania, equilíbrio de poderes e segurança, fortemente atingidos pelas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais efetuadas fora das conhecidas estruturas jurídicas, bem como fora da capacidade de regulação, controle, gestão e planejamento dos Estados nacionais. Este último aspecto é o que mais se relaciona à corrente análise, envolvendo soberania e planejamento do Estado.

Ao responder à pergunta sobre as possibilidades de interpretação da Constituição Federal, Faria apresenta duas possíveis hipóteses147: a primeira é a conversão da

Constituição em documento meramente simbólico; outra hipótese, que não é conflitante com a primeira, é a transformação da Constituição num centro de convergência de princípios e valores, com apenas duas exigências: uma sob o ponto de vista substantivo, “os direitos fundamentais da cidadania e a manutenção do pluralismo axiológico, mediante a adoção de mecanismos neutralizadores de soluções uniformizantes e medidas capazes de bloquear a liberdade e instaurar uma unidade social e indiferenciada”; e outra do ponto de vista procedimental, “as garantias para que o jogo político ocorra dentro da lei, isto é, de regras jurídicas estáveis, claras e acatadas por todos os atores”. Em seguida, Faria acaba por apresentar outra indagação:

Em que medida um texto constitucional – e, acima de tudo, a própria noção de soberania – têm condições efetivas de serem salvaguardados no âmbito dos Estados que, pela já mencionada força transnacionalizadora dos capitais e mercados, pela conhecida impossibilidade material de projetos econômicos autárquicos e pela comprovada inviabilidade de sociedades nacionais auto-suficientes e trancadas em si mesmas, hoje vêem postas em questão tanto a centralidade quanto a exclusividade de suas estruturas institucionais, de suas formas organizacionais, de seus mecanismos políticos e de suas engrenagens jurídicas? 148

Podemos observar o levantamento de questões muito próximas àquelas que vimos apresentando. Na verdade, a obra apresenta uma questão anterior àquela que ora estudamos: saber qual o papel do Direito, da lei, da Constituição na atual ordem econômica. Sem a pretensão de ultrapassá-lo, mas usando-o como referência, nos

147 FARIA, J. E. O Direito na Economia Globalizada, p. 35. 148 Ibid., p. 35.

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debruçamos sobre o papel de uma política pública específica e seu impacto na desigualdade social, de acordo com a orientação constitucional. Entende-se que a bifurcação atribuída ao papel constitucional não cobre todas as alternativas concretas que vêm se manifestando, pois vislumbra-se resultados distintos dos propostos por Faria, como serão apontados no capítulo sobre políticas públicas. Por ora, é oportuno considerar outra visão desse contexto internacional, que apresenta a possibilidade de outra direção. De qualquer modo é pertinente a questão: será mesmo a globalização o “ovo da serpente” propugnado por Faria, ou esse processo é reversível, ou, ao menos, pode ser visto sob outra perspectiva?

Milton Santos149 responde afirmativamente. Não sem antes explicitar as três visões

da globalização: como fábula, o mundo como nos fazem crer; como perversidade, o mundo como é; uma outra globalização, o mundo como pode ser. De forma resumida: a globalização imposta pelos seus principais beneficiados sob a égide do liberalismo econômico é a primeira, não passa de fábula; o que é de fato a globalização, com uma série de exemplos de suas perversas conseqüências, como a fome de muitos milhões, a continuidade dos problemas de saúde sanitária, 1,4 bilhão de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por mês, a intensificação da desigualdade, para ficar em alguns exemplos, é a segunda; a terceira é aquela que não existe ainda, pode vir a ser, que apresenta alguns indícios das possibilidades de uma transformação de suas direções. É válido verificar essa terceira visão com mais vagar, pois as outras já fo ram mais estudadas.

Primeiramente torna-se necessário conferir um dos conceitos de globalização: “é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”150. Este conceito não contradiz a antiguidade do processo. Mas Santos o complementa, afirmando que para entender a globalização há dois elementos fundamentais, o

estado das técnicas e o estado da política. Isto porque somente o avanço da técnica

permitiu uma presença planetária. “Um mercado global utilizando esse sistema de

149 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 18 et seq.

técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro”.151

Santos152 relaciona alguns fatos novos que podem ser indicativos de uma nova

história para a globalização. O primeiro “é a enorme mistura de povos, raças, culturas, gostos, em todos os continentes”, a mistura de filosofias em detrimento do racionalismo europeu. Outro, é a aglomeração das pessoas nos grandes centros urbanos, caracterizando a “existência de uma verdadeira sociodiversidade”. Junta-se a esses fatos a cultura popular, utilizando as técnicas antes exclusivas da cultura de massa. Mais um fato novo gerado pela globalização refere-se à escassez que atinge a classe média, transformando-a de individualista, de sequiosa pelo consumo e de suporte ao poder político – através da expansão de sua consciência do processo social mais amplo em que se insere, formando uma visão sistêmica de situações aparentemente isoladas – em uma classe preocupada com a cidadania, participante da luta pela transformação social. Todos esses fatos levam a uma universalidade empírica, nunca antes ocorrida na história, deixando de ser uma abstração da mente dos filósofos para ser a experiência ordinária de cada homem.

Dada a importância do estado da política mencionado, remete-se à questão do que fazer com a soberania, sob o olhar de Milton Santos. De início, ele adverte que “a cessão da soberania não é algo natural, inelutável, automático, pois depende da forma como o governo de cada país decide fazer sua inserção no mundo da chamada globalização”153.

O Estado altera suas regras e feições num jogo combinado de influências externas e realidades internas. Mas não há apenas um caminho e este não é obrigatoriamente o da passividade. Por conseguinte, não é verdade que a globalização impeça a constituição de um projeto nacional. Sem isso, os governos ficam à mercê de exigências externas, por mais descabidas que sejam. Este parece ser o caso do Brasil atual. Cremos, todavia, que sempre é tempo de corrigir os rumos equivocados e, mesmo num mundo globalizado, fazer triunfar os interesses da nação.154

151 SANTOS, M. Por uma outra globalização, p. 24. 152 Ibid., p. 20-21.

153 Ibid., p. 78. 154 Ibid., p. 78.

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Relacionada à possibilidade desta postura, o referido autor nos fala em nação ativa e nação passiva. Das possibilidades que tratam do conformismo frente às determinações do processo atual de globalização, destaca-se a seguinte relação: “a produção sem contrapartida de desequilíbrios e distorções estruturais, acarretando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se mostrem os países”155.

Retomando os conceitos de igualdades estudados no primeiro capítulo, é notável a imediata relação com a igualdade simples entre sujeitos, global e em direção à

absoluta, que pode ser estabelecida com esta outra globalização, de Milton Santos.

É preciso ter em conta a possibilidade de desviar da tendência das atualmente

perversas conseqüências da globalização. Talvez não se trate de reversibilidade,

mas de uma correção de rumo, como Milton coloca. Afinal, a todo momento, pode-se redefinir a igualdade, ou igualdades, almejadas – conforme os parâmetros já discutidos no primeiro capítulo –, perceba-se a fábula vendida por globalização, constate a iniqüidade do real fenômeno e haja uma mudança de postura, de visão, priorizando as relações sociais em detrimento das mercantis.