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A gramática no Renascimento: matrizes da gramática

1.3 Matrizes para a construção de Gramáticas Nacionais

1.3.1 A gramática no Renascimento: matrizes da gramática

Os estudiosos do Renascimento se voltam para “questões da língua” e se dedicam à revisão do conceito e do esquema gramatical, de modo a adequá-los à função diferenciada das línguas modernas, em relação à latina.

É nesse período que dicionários poliglotas são construídos, a fim de colocar o leitor a salvo de arriscadas especulações decorrentes do eventual parentesco entre as línguas “nacionais” que eram retransmitidas pelos comerciantes viajantes. Nesse contexto de valorização das línguas nacionais, observa-se o procedimento

metodológico em que a língua nacional é analisada em relação a outras, conforme já enunciado. O latim continua a ser o molde segundo o qual todos os outros idiomas são pensados, mas não mais o único. Os estudiosos também voltam o olhar às línguas até hoje chamadas de exóticas de origens africana, asiática, americana, em comparação aos “vulgares” românicos. Todavia, esse método comparativo não teve grande êxito, no século XVI, mas será retomado e sistematizado no século XIX, implicando a construção de gramáticas históricas. Desta feita, o Renascimento é marcado especificamente pelo fato de as línguas começarem a ser trabalhadas de modo generalizado como objeto de ensino. Assim, no período renascentista, as reflexões sobre a natureza da linguagem, são configuradas como o prolongamento das preocupações já existentes entre os latinos e serão mais bem desenvolvidas nos séculos XVII e XVIII, sob a influência aristotélica. A ilustração mais notável desses estudos é a Grammaire générale et raisonnée de Port Royal de 1660. (LEROY, 1967).

1.3.2 Os pronomes pela gramática da Língua Portuguesa

O uso da gramática e de dicionários como prescrição foi elaborado na Grécia Helênica (cf. itens deste capítulo 1.2.1 e 1.2.2) e também os romanos se valeram desse princípio prescritivo, quando aquele império começou a se desmembrar em várias nações. O desaparecimento do latim nas regiões conquistadas se dá gradativamente, em razão de novas línguas nacionais assumirem posição de prestígio e serem focadas como suporte dos novos Estados modernos. Elege-se uma língua nacional para cada uma dessas nações emergentes: o dialeto de maior prestígio, ou seja, aquele usado pelos “homens doutos” e/ou que fundamentava literaturas nacionais. Contudo, o fato de haver resquícios do latim e dos dialetos falados pelo povo, cria a necessidade de as escolas ensinarem a norma de prestígio da língua padrão.

Nebrija, em 1942, já postulara ser a língua companheira dos impérios, de sorte que, no contexto da descoberta do Caminho Marítimo para as Índias e do

processo de colonização, Portugal se vê diante da necessidade de sistematizar uma das variantes lingüísticas faladas em seu território, para se formar como nação independente. É no século XVI, que se tem a produção das primeiras gramáticas de língua portuguesa: a de Fernão D’Oliveira e a de João de Barros, ambas de caráter latinista.

a) Fernão de Oliveira

Afirma Fávero (1996), fundamentada em Buesco (1978), que a Gramática da Lingoagem Portuguesa, reflete as ansiedades do período renascentista, cujo marco é a edificação do Estado Moderno Português. Desta feita, Fernão D’Oliveira busca registrar nessa sua obra o fato de a língua portuguesa ser um sistema organizado e autônomo, independente do sistema lingüístico espanhol: país do qual Portugal queria se separar, para se fazer reino próprio: “(...) porque o nosso rey e Senhor pois tem Terra e mando; tenha também nome próprio e distinto per sê, e sua gente falla ou lingoagem não mais mesturada mas bem apartada” (p.85)

Esses argumentos de caráter político, visando a diferenciar a língua portuguesa da espanhola se estendem nos registros dessa gramática para exaltar a nova nação, cujo suporte era a língua, sempre visualizada como mais perfeita do que a espanhola: “(...) nos falamos com grande repouso como hom~es assentados (...) e no pronunciar qu~e não sentira a diferença qu~e temos po~q elles escondĩse e nos abrimos a boca (...) e nos falamos boquiabertos com mays magestade e firmeza “(p.41);

Esta valorização da pronúncia levará o gramático a dedicar grande parte de sua obra à descrição fonética e, no que se refere à morfologia, o ponto de partida para a descrição do português era o sistema latino referente às partes do discurso ou classes de palavras. Assim, as palavras são focalizadas quanto à flexão e a derivação.

A gramática de Fernão D’Oliveira é qualificada como “Gramática da Palavra” em razão de os estudos sobre a sintaxe frasal não ter sido ainda desenvolvida conforme se registrou no corpo desse capítulo (cf. item 1.3). Assim, ele designa por

analogia todas as questões referentes à flexão de número e de gênero e, embora opere com a concepção de declinação dos casos latinos, observa-se que a obra de Fernão D’Oliveira é composta de uma nomenclatura original e bastante expressiva. Todavia, sua explanação se perde no teor histórico e na exaltação dos primeiros reinados, bem como na perdurabilidade da glória romana, devido à imposição da língua aos vencidos e, só depois, propõe-se a definir gramática. Ela não é compreendida como teoria de um sistema formal, mas como um produto social. Suas notações estão circunscritas no estudo da fonética (bastante aprofundada em sua gramática), ortografia, analogia, etimologia e construção ou sintaxe (bastante elementar).

Para esse gramático, a grandiosidade do povo português está asseverada pelo parentesco entre a língua latina, falada por um povo grandioso, e a portuguesa, cujos usuários também à semelhança dos romanos são homens de bravura e grandeza. Nessa acepção, a língua falada pelos portugueses “Cō tudo nos tambe temos casos em tres pronomes os quaes são eu.me.mi.tu.te.ti.se.si no primeiro destes o d’erradeiro caso ~q e mi alghũs o acabão co estā letra .til. assi mĩ: por¯ q estes nomes teuerão casos: mais ¯ q em outro tempo e obra o diremos” (D’OLIVEIRA, s/d. p. 91).

Observa-se, na citação acima, que essa relação entre o latim e o português – apesar de o sistema latino ser paradigmático e o do português sintagmático, daí a questão da ordem das palavras na frase ser fundamental em português – acabará por impor uma classificação dos pronomes pessoais em dois casos: o caso sujeito, ou reto, e o caso oblíquo. Por conseguinte, tal classificação não se faz ainda transparente na gramática de Fernão D’Oliveira, conforme aponta o enunciado acima. Esse gramático também não se ocupa em definir a classe dos pronomes e precisar a diferença entre os pronomes ditos pessoais e os demais, como os relativos, os indefinidos, os interrogativos, por exemplo.

Pode-se considerar, numa síntese, que a obra de Fernão D’Oliveira é efetivamente, um conjunto de curiosas e judiciosas reflexões, de tipo ensaístico; em

suma: uma miscelânea lingüística e cultural. Todavia, atribui-se a Fernão D’Oliveira, o mérito de haver sido o primeiro a compor um tratado (primeira anotação) acerca da língua portuguesa, no que se refere à sua sistematização propriamente dita.

b) João de Barros

Publicada em 1540 – quatro anos após a publicação da Gramática da

Lingoagem Portuguesa (1536) – a Gramática da Língua Portuguesa, de João de

Barros dispensará ao idioma português tratamento semelhante àquele de Fernão D’Oliveira: elemento de exaltação nacional. Seu objetivo também difere daquele do seu antecessor: descrever as particularidades de uso da língua portuguesa, atribuindo relevo à semelhança entre ela e o latim, para diferenciar o povo português do espanhol. Para tanto, Fernão D’Oliveira desenvolve a fonética; João de Barros a morfologia, dedicando pouco espaço à sintaxe. Contudo, ambos postulam que a função da língua é organizar o pensamento humano.

O fato de buscar formalizar os traços variáveis das línguas que descreviam, latim e português, em relação ao latim, tendo como parâmetro o latim,fez com que João de Barros não se ocupasse da sintaxe do português propriamente dito, mesmo porque a sintaxe latina (casos) não têm equivalência unívoca com aquela da língua portuguesa (ordem). Nessa acepção, a sua gramática também é qualificada como “gramática da palavra”.

A diferença entre essas duas Gramáticas, além das já apontadas, no que se refere aos estudos morfológicos, decorre do fato segundo o qual o nome é organizado, a partir do verbo para Fernão D’Oliveira: “(...) e por tanto os nomes se conhecem dos verbos”. (p.78). Já para João de Barros, é o contrario, ou seja: “Verbo (...) é ũa voz ou palavra que demonstra obra algũa cousa, o qual não se declina como o nome e o pronome por casos (...)”. (p.78). Nessa acepção, João de Barros mantém a relação da similaridade entre o nome e o pronome pela flexão de casos, à semelhança de Fernão D’Oliveira.

Todavia, para esse gramático, o português é uma língua perfeita, de um povo poderoso e bem formado tal qual o povo e a língua latina. Para comprovar esse seu argumento, assume uma posição diacrônica, e declina as palavras do português nos moldes dos casos latinos; razão pela qual, o pronome é definido e classificado, consoante proposta das gramáticas latinas.

Nesse sentido, afirma que o pronome “é uma parte que se põe no lugar de um nome e por isso dissemos que era conjunta a ele por matrimonio, o qual tomou o nome” (BARROS, p.19).

Acasalados ao nome, os pronomes são classificados como:

Primitivos Eu, tu, si, este, esse, ele

Derivados Meu, teu, seu, nosso, vosso

Derivados porque, no caso genitivo, derivam dos primeiros, ou seja, daqueles do caso nominativo; logo, onde se diz de mi, se deriva meu; e de ti, teu; e de si, seu. No plural, tem-se nosso, vosso. Eu, nós; tu, vós; Este, e estes são demonstrativos, porque quase demonstram a coisa por semelhante; Ele, Esse, com seus respectivos plurais chamam-se relativos por fazerem relação e lembrança da coisa dita, posto que o seu principal ofício seja demonstrativo. No exemplo do próprio gramático esta relação de posse é elucidada de modo bastante claro: “Este livro é do príncipe nosso senhor” (BARROS, p.19). Observa-se, assim, uma não distinção entre os pronomes pessoais e os possessivos à semelhança das Gramáticas Greco-latinas. Sua explanação se justifica pela tentativa de explicar os pronomes por meio do uso, como elucidou, por exemplo, no que diz respeito ao uso do pronome “Ele”, recentemente visto como a não - pessoa do discurso nos postulados de Benveniste, este, já era visto por Barros como aquele que tinha como função primeira demonstrar, embora também fosse visto como aquele de quem se fala e/ou o assunto, logo, não presente no discurso. Desta feita, Barros já prenuncia o pronome “ele” como a não pessoa do discurso, aspecto mais bem elucidado nos dias de hoje.

Convém salientar que sua gramática se configura como sendo a gramática da palavra e que tais aspectos só seriam mais aprofundados se os considerassem na dimensão da frase, conforme será tratado no segundo capítulo desta Dissertação.