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A identificação da derrogação ao sistema de referência

CAPÍTULO V As Decisões da Comissão Europeia: Análise Crítica

1.3 A identificação da derrogação ao sistema de referência

Após ter identificado o sistema de referência nos termos explanados acima (i.e., o regime normal do imposto sobre as sociedades em ambos os casos, bem como o princípio da plena concorrência), a Comissão Europeia passa a identificar as derrogações a esse sistema de referência.

No caso da Apple, a Comissão considerou que a administração fiscal irlandesa incumpriu de forma considerável o seu dever de diligência ao autorizar, através da confirmação dos APPT, que a ASI e a AOE utilizassem métodos de afetação de lucros que se afastavam de uma aproximação fiável de um resultado baseado no mercado, em conformidade com o princípio da plena concorrência. Para este efeito a Comissão apresenta uma série de argumentos.

Em primeiro lugar, e antes de fundamentar o seu principal argumento, relativo à afetação das licenças de propriedade intelectual (“PI”) detidas pela ASI e pela AOE fora da Irlanda, referida pelo menos dezasseis vezes na decisão,264 a Comissão nota que os APPT em questão foram estabelecidos na ausência de um relatório de afetação de lucros ou fixação de preços de transferência elaborado pela Apple, sendo que apenas foram disponibilizados relatórios ad hoc, ex post facto, após a decisão da Comissão de iniciar o procedimento formal.

262

TJUE, Acórdão de 17 de Dezembro de 2008, Ryanair v Comissão, T-196/04, ECLI:EU:T:2008:585, para. 85.

263 OECD (2017), supra n. 11, p. 33.

A Comissão realça também o facto de, apesar de a Irlanda ter alegado que a lei doméstica não impunha a utilização das Orientações da OCDE na emissão dos APPT, os métodos unilaterais de afetação de lucros autorizados nos APPT parecem assemelhar-se a um acordo em matéria de fixação de preços de transferência com base no já referido método da margem líquida da operação (“MLLO”), sendo que as despesas de exploração constituem o indicador do nível de lucro, tal como descrito nos princípios da OCDE.

Quanto à questão da afetação da PI, a Irlanda alega que uma vez que não existem atividades de gestão associadas a essas licenças nas referidas sucursais, essas não devem ser afetas às mesmas. A Comissão rebate este argumento alegando que uma vez que as sucursais não dispõem de personalidade jurídica separada, não se pode considerar que uma parte específica da sociedade (sede social versus sucursal) detenha separadamente as licenças de PI. Este argumento é fortalecido pelo facto de não ser possível observar diretamente, “de forma fiável”, a propriedade dos ativos na contabilidade oficial, uma vez que a delimitação interna das contas entre as sucursais da ASI e da AOE e das respetivas sedes sociais não foi disponibilizada à Comissão, talvez por não existir.

Embora a Comissão admita que o facto de não ser possível observar de forma física os ativos incorpóreos de uma sociedade, tais como licenças de PI, torne a sua afetação para efeitos fiscais mais difícil, também considera que cabia à administração fiscal irlandesa verificar se a afetação das licenças de PI fora do território irlandês poderia ter sido acordada num contexto de plena concorrência.265

Outro dos argumentos fortes da Comissão diz respeito ao facto de as sedes sociais da ASI e da AOE não apresentarem qualquer localização física nem funcionários, a par da sua natureza “apátrida” para efeitos fiscais e “existindo apenas no papel”, em contraposição às respetivas sucursais. No entanto, a Comissão salienta que a compatibilidade da norma que permitia, à data dos factos, a constituição de empresas na Irlanda, sem exigir a atribuição de uma residência fiscal, não foi examinada e que as decisões incidem apenas, e tão só, sobre os APPT e a incorreta afetação dos lucros,

seguindo muito provavelmente a lógica do conhecido provérbio, “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”.266

De todo modo, a inexistência de funcionários e atividades comerciais das duas empresas fora da Irlanda, bem como a falta de fundamentos que justifiquem a proporção da alocação dos lucros, reforçam o argumento da Comissão de que as funções e riscos eram suportados pelas sucursais irlandesas e não pelas respetivas sedes sociais.

Por seu lado, a Apple argumenta que as atividades de investigação e desenvolvimento, bem como de gestão da PI são administradas a partir da sede da Apple nos EUA. A Irlanda partilha da mesma opinião considerando que o valor acrescentado dos produtos do grupo não é gerado na Irlanda, mas sim nos EUA. É engraçado notarmos que durante décadas a Apple utilizou a legislação irlandesa de residência fiscal permissiva para formalmente separar o seu lucro tributável das atividades que os geravam, de modo a evitar a tributação nos lugares onde o valor acrescentado era efetivamente criado, para agora defender-se das acusações da Comissão alegando que os lucros em causa deveriam ser alocados nos Estado onde o valor se considera efetivamente gerado, e não na Irlanda.267

A Comissão rebate este argumento considerando que a remuneração relativa a essas funções deveria constar do acordo de divisão de custos celebrado entre a Apple

Inc., a ASI e AOE, sendo que qualquer alteração a esse acordo embora diminuísse o

lucro tributável daquelas empresas, não iria surtir qualquer efeito na distribuição interna dos lucros entre as sedes sociais e as respetivas sucursais.

Além da alocação infundada das licenças de PI fora da Irlanda, a Comissão considera que também houve uma derrogação ao sistema de referência, concretizada na aceitação do método de afetação de lucros utilizado pela Apple, uma vez que considera que se a Irlanda houvesse analisado as funções desempenhadas pelas sedes comparativamente às sucursais, teria chegado à conclusão que as sucursais

266 Sobre o tema dos rendimentos apátridas, cfr., KLEINBARD, Edward D., Stateless Income’s Challenge to Tax Policy, USC Legal Studies Research Paper, n.º 11-6, 2011.

desempenham funções mais complexas, sendo que as únicas funções atribuíveis às sedes sociais seriam reuniões do conselho de administração e gestão de tesouraria.

Por sua vez, no caso da SMBV a Comissão considera que a derrogação consiste no desvio ao princípio da plena concorrência, que dá resultado à atribuição de uma vantagem seletiva. Neste caso as principais críticas da Comissão dizem respeito às escolhas metodológicas adotadas pelo consultor fiscal da SMBV, que elaborou os relatórios de preços de transferência que fundamentaram a determinação do lucro tributável daquela empresa, que na opinião da Comissão se afastam de uma aproximação fiável de resultados baseados no mercado.

Em primeiro lugar, a Comissão considera que não deveriam ter sido pagos royalties pela PI de torrefação licenciada pela Alki LP à SMBV. Este argumento baseia- se no facto de o nível de royalties devidos depender da diferença entre a remuneração estabelecida no APPT e o lucro contabilístico antes de impostos, anterior ao pagamento dos royalties. O pagamento de tais royalties tratar-se-ia, no entender da Comissão, de um pagamento calculado como lucro em excesso do APPT, não refletindo condições de plena concorrência, mas sim uma forma de desviar lucros.

Em segundo lugar a Comissão considera que as funções da SMBV foram erradamente consideradas menos complexas do que efetivamente são, uma vez que, ao contrário da Alki LP, cujas funções foram consideradas relevantes no APPT, a SMBV possui funcionários, detém PI significativa e exerce atividades que extravasam as realizadas por um fabricante de rotina.

Por fim, a Comissão considera ainda que a aplicação do MMLT é desadequada uma vez que a atividade principal da SMBV foi identificada de forma errada no relatório de preços de transferência. De facto a Comissão é da opinião que a torrefação e fabrico não são a principal atividade da empresa, que passará antes pela revenda de produtos não relacionados com café, uma vez que esses dão origem à maior parte dos rendimentos auferidos pela SMBV. O método aceite no APPT acaba por transferir os lucros que a SMBV retira da revenda daqueles produtos, sendo que os rendimentos

registados nos Países Baixos seriam muito superiores na inexistência do pagamento dos royalties.

Uma vez que a função principal da SMBV havia sido mal identificada no relatório de preços de transferência, também o grupo de pares de empresas comparáveis utilizado pelo consultor fiscal para determinar a remuneração das funções desempenhadas pela SMBV é incorreto. A Comissão procede inclusivamente à seleção de meia dúzia de comparáveis que considera adequadas, estabelecendo uma margem de lucro que estaria em conformidade com a plena concorrência, sendo que a margem em questão mostra-se discrepante relativamente ao intervalo utilizado para estabelecer a remuneração da SMBV e, consequentemente, o seu lucro.

Ademais, a Comissão considerou também que a matéria coletável da SMBV é reduzida indevidamente nos Países Baixos devido ao preço inflacionado que paga pelo café verde à SCTS. De facto, a margem dos grãos de café aumentou para mais do triplo desde 2011. Através destes pagamentos as atividades de torrefação de café da SMBV não geravam por si só lucros suficientes para pagar royalties à Alki. Neste sentido, a Comissão concluiu que os royalties teriam como principal efeito transferir para a Alki os lucros gerados pelas vendas de outros produtos nos pontos de venda da Starbucks, nomeadamente chá, produtos de pastelaria e chávenas, que representam a maior parte do volume de negócios da SMBV.

Em resumo, de forma geral, a Comissão identifica as seguintes derrogações, (i) um desvio ao princípio da plena concorrência, i.e., ao sistema de referência; e (ii) uma derrogação concretizada através da discricionariedade da administração fiscal ao aceitar um tratamento fiscal nos APPT que se desviava do regime normal de tributação dos Estados-Membros implicados, favorecendo as empresa em questão.

Embora nos casos que envolvem APPT a demonstração da seletividade poder se mostrar supérflua, parece-nos que a Comissão em certos pontos das suas decisões estende excessivamente a interpretação do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE. Ao considerarmos o sistema de referência foi identificado de forma errada, é natural que a identificação das derrogações acabem por perder sentido, sendo difícil aferirmos se os

tribunais europeus chegarão sequer a analisar a existência das derrogações, uma vez isso requereria refazer a análise da Comissão, identificando o sistema de referência adequado (o regime normal segundo a legislação nacional do Estado-Membro) para depois identificar se os APPT constituem ou não derrogações a esse sistema.