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A inconstitucionalidade do art 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90

3 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART 2º,

3.3 A inconstitucionalidade do art 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90

A lei nº 8.137/90 que trata dos crimes contra a ordem tributária, estabelece em seu art. 2º, II, que:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)56

[...]

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

O diploma legal tipifica como crime o fato do contribuinte não recolher aos cofres públicos o tributo ou contribuição social devidas no prazo legal. Como se pode ver, não é necessário que haja fraude para que se configure o crime, bastando o mero descumprimento da obrigação tributária de pagar o tributo que o contribuinte tem com o Fisco.

Ora, se o sujeito passivo apenas não pagou o tributo devido, ele possui meramente uma dívida com a Fazenda Pública, ilícito administrativo que deve ser apenado com multa e cobrado por meio de uma ação de execução, instrumentos adequados para a repressão e cobrança de dívidas.

Ocorre que o legislador ordinário tipificou o fato de dever ao Estado como crime, afrontando diretamente a Constituição Federal, que proíbe em seu art. 5º, inciso LXVII, expressamente a prisão civil por dívida, a não ser nos casos do devedor voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, sendo que essa última exceção não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio, como demonstrado no tópico anterior.

Há assim apenas um caso excepcionalíssimo da prisão civil no Brasil, o do inadimplente voluntário e inescusável do dever de alimentar, em razão do direito à vida do alimentado que prevalece sobre o direito à liberdade do alimentante, sendo qualquer outro tipo de prisão civil intolerável no atual Estado Democrático de Direito brasileiro.

Dessa forma, não pode o legislador infraconstitucional tipificar como crime fato que a Constituição veda como tal. Há, portanto, na lei supramencionada clara

56

Mesma natureza do artigo anterior que possui a seguinte redação “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (...)”

inconstitucionalidade material, vez que o seu conteúdo não se compatibiliza com o da nossa Lei Maior.

Sobre o assunto, Hugo de Brito Machado primorosamente assevera que:

Não é razoável admitir-se que o legislador pode definir como crime o que bem entender, mesmo que assim fazendo subverta os dispositivos da Constituição. Se essa afirma que não haverá prisão civil por dívida, certamente o legislador ordinário não pode, para contornar essa limitação, simplesmente definir a dívida como crime. Se pudesse, a Constituição certamente não seria suprema. A rigor, seria absolutamente inútil.57

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil se encontra no ápice do sistema normativo brasileiro. É ela que dá fundamento de validade às demais normas, logo essas devem com ela se compatibilizar, pois, caso contrário, como bem assinalou o ilustre doutrinador, a Constituição não seria suprema, mas inútil.

Desta feita, em função da hierarquia das normas, os diplomas infraconstitucionais não podem contrariar os princípios, regras e valores constitucionais, sob pena de incorrerem em vício de inconstitucionalidade e serem extirpados do ordenamento jurídico, vez que esse precisa ser uno e coerente, não podendo ter normas que conflitam entre si.

Sabe-se que nenhum direito é absoluto e ilimitado. O legislador ordinário deve, contudo, constantemente observar o princípio da proporcionalidade no exercício de sua atividade, não podendo estabelecer limitações descabidas aos direitos fundamentais.

Deve-se sempre analisar se o ato legislativo é necessário e adequado ao fim pretendido. O ato é adequado, se é apto a atingir o objetivo almejado, e é necessário, se não há outro meio menos gravoso para atingir tal escopo. Caso, a norma não seja apta não tem sentido de ser, caso não seja necessária, estará restringindo desarrazoadamente os direitos fundamentais, sendo, portanto, incompatível com os fins da Carta Magna de dar máxima efetividade aos direitos humanos.58

Destarte, é inconstitucional a tipificação, pelo legislador ordinário, da dívida tributária como crime sancionado com pena de detenção, posto que existem meios menos gravosos para a tutela do direito creditório do Fisco, quais sejam, a

57 MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 26. 58 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio

multa e a execução fiscal. Logo, a prisão do devedor é pena desproporcional. Além do que a Constituição proíbe expressamente tal sanção em seu art. 5º, LXVII, pois, como evidenciado anteriormente, tal instituto é totalmente incompatível com a atual estágio de desenvolvimento dos direitos humanos.

Não subsiste o argumento de que dívida tributária teria maior importância que as demais e, por isso, justificaria uma pena mais gravosa ao devedor. O Estado, como credor, possui unicamente os privilégios que sejam compatíveis com as relações creditórias. Não é razoável que se admita a sanção prisional pelo inadimplemento de obrigação de dar, apenas porque o credor é a Fazenda.59 Isso seria um retrocesso, como mencionado no tópico precedente, à concepção jurídica romana, na qual o homem respondia com o seu próprio corpo pelas dívidas contraídas, o que é inimaginável nos ordenamentos jurídicos democráticos do mundo atual.

A liberdade é um direito individual e, como tal, possui eficácia horizontal, ou seja, oponível aos demais particulares, mas também possui eficácia vertical, sendo o direito oponível também ao Estado. É completamente descabida, portanto, a alegação de que as dívidas perante o Estado teriam a prerrogativa de serem apenadas por meio de prisão. Admitir tal seria um retorno aos Estados Absolutistas, nos quais as autoridades estatais cobravam os tributos dos indivíduos por meio de ameaças, violência ou qualquer meio que entendessem eficiente.

A Constituição existe exatamente para limitar o Estado, o qual, desde seu surgimento, é o maior centro de poder do mundo, a fim de se proteger e garantir os direitos do homem60. Por conseguinte, não faz sentido algum passar por cima de uma disposição constitucional, ferindo um dos mais importantes direitos fundamentais, em razão de um interesse do Estado, visto que o papel daquela é justamente limitar as vontades arbitrárias desse.

No Estado de Direito hodierno, a Constituição reina e está acima dos alvedrios do governo.

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