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3 NA TRILHA DA EDUCAÇÃO

3.1 A inserção da escola indígena em minha história

Não é sem angústias que inicio a redação desse capítulo. A sensação é de que muito já foi dito sobre o assunto e de forma eficiente, completa. O que dizer nesse contexto, onde educadores que vivem suas experiências pedagógicas com os Guarani e Kaiowá expressaram tão bem as complexidades presentes na educação escolar indígena, de uma forma geral e em Mato Grosso do Sul, de forma particular?

Foi convivendo com esses educadores que me aproximei desse universo. Autoras como Rossato (2002), Nascimento (2004), Perreli (2007), Mendes (2010), relatam essa experiência e, ao passarem pela questão da educação escolar indígena, trouxeram excelentes abordagens teóricas, analisando o momento histórico em que se inicia a oferta dessa modalidade de educação nas aldeias e o movimento de luta política que está ligado a ela.

De forma geral, os estudos que passam pela questão da educação escolar indígena tratam da legislação que a regulamenta, fazem análise sobre a distinção entre a perspectiva anterior e após a Constituição de 1988 e tratam dos impasses subjacentes à proposta de uma educação escolar diferenciada. Essas análises remetem à problemática da oferta dessa modalidade de educação por instituições da sociedade brasileira, pautadas pelo estabelecimento de uma determinada hegemonia, não somente distinta do modo de vida dos povos indígenas, mas que se opõe a ele.

Rossato (2002), pioneira no campo da educação escolar indígena diferenciada entre os Guarani e Kaiowá, traz para sua pesquisa a preocupação do povo Guarani, ao formular a questão problema para sua dissertação: “Será o letrao ainda um dos nossos?”. Nessa dissertação, ela já apontava os desafios presentes na educação escolar indígena, enquanto espaço de dissenso por parte dos próprios Guarani e Kaiowá e de descaso por parte do poder público. Registrava, também, a importância da trajetória política do Movimento de Professores Guarani e Kaiowá, cujos integrantes, a partir da escola, se envolvem nos projetos de vida e futuro de suas comunidades.

Em estudo sobre a escola indígena, Nascimento (2004) analisa as diferenças presentes na escola indígena. Perseguindo um referencial teórico que fornecesse elementos sobre o componente jurídico e pedagógico que está relacionado à proposta da educação escolar indígena diferenciada, a autora analisa os impasses da construção dessa escola, a partir de quatro frentes: a atitude centralizadora do Estado na implantação dessa política pública; a dificuldade da transmutação dos conceitos como os de etnia, interculturalidade, processos próprios de aprendizagem, tradição, para as experiências curriculares concretas; a limitação na concretização da diferença, dada pelos resquícios e marcas que a passagem pela escola,

baseada nos paradigmas da cultura ocidental, deixou nos professores indígenas; o precário conhecimento sobre o cotidiano das escolas indígenas, que inviabiliza inferências profundas sobre o impacto dessa instituição na totalidade das relações sociais locais.

Perrelli (2007), de forma emocionada e emocionante, reflete sobre o processo de tornar-se professora de ciências, junto aos Guarani e Kaiowá, a partir de sua experiência no curso de formação de professores Ára Verá. Caracteriza-a como um momento em que teve que rever os paradigmas de sua trajetória pessoal e os paradigmas que norteiam as ciências biológicas, para re-conhecer outras formas de compreender, forçando-se a colocar em diálogo modos distintos de conhecer, conceber e interpretar o mundo.

Utilizando a metodologia da pesquisa ação, Mendes (2010) relata a experiência de formular um currículo na área de matemática, que atendesse às necessidades da proposta de formação intercultural, presente no projeto político pedagógico do curso de licenciatura indígena Teko Arandu. Nela, os Guarani e Kaiowá, que integram o curso na qualidade de estudantes, são parte constituinte da pesquisa e, junto com os professores do curso, formuladores da proposta curricular.

Esses são exemplos de estudos que trazem detalhes sobre a luta política para a implantação de escolas que atendam aos interesses dos indígenas, assim como a legislação que busca concretizá-la, os desafios para a concretização dessa proposta inovadora e, novamente, as relações de força presentes nesse campo. Estas dizem respeito às relações hegemônicas presentes na concepção de educação formal e à luta política que os Guarani e Kaiowá têm que empreender para garantir minimamente sua oferta nas aldeias.

Esses aspectos fizeram parte do meu cotidiano, na medida em que consistem em categorias pelas quais aqueles que se inserem na educação escolar indígena têm que transitar.

A categoria de educação escolar indígena tem sido continuadamente revisitada, mas aqui se revela importante para discutir aspectos referentes à formação cultural dos jovens Guarani e Kaiowá. O que interessa a mim, nas pesquisas apontadas, são os aspectos referentes ao protagonismo dos jovens professores, em suas conversas com saberes e poderes externos que, quer no campo pedagógico ou político, estão referenciados por saberes bastante distintos. Perrelli aponta a dimensão do protagonismo dos Guarani e Kaiowá na prática pedagógica.

Bem ao “jeito guarani” de falar por metáforas, os alunos kaiowá e guarani vão indicando-me as pistas e sinalizando do que gostam ou não do meu trabalho. Assim o fazem em ilustrações que pregam na parede da sala de aula (cartazes com desenhos e charges) retratando, com muita perspicácia, os episódios marcantes de cada aula. Também o fazem nas encenações em “noites culturais” das sextas-feiras, onde não se cansam de exibir, com muito

humor, os episódios, as falas e gestos que denotam meus acertos e também os meus equívocos mais marcantes da semana. Mas, quando precisavam ser mais severos, me enviavam, com elegância e discrição, alguns bilhetes (“seu trabalho deu uma desandada, estou meio confusa, com muita dúvida, acho que deve retomar o assunto depois do intervalo [...]”). As mensagens podiam expressar dúvidas (“tive dificuldade de entender sobre a fecundação de xx e xy”), comentários (“você hoje parece que está com tristeza?”) e até “questões de ordem” (“já está na hora do intervalo”, “falar mais devagar”). Havia ainda convites para uma “conversa particular depois da aula”. (PERRELLI, 2007, p. 114).

Os estudantes presentes na sala de aula, no momento retratado por esta pesquisadora, não são somente jovens; a turma seguinte, por mim acompanhada, foi composta majoritariamente por eles, e eu presenciei muitas vezes essa cena, ao ponto de, com frequência, as fronteiras entre professores e estudantes não serem distinguidas. Inverte-se a lógica, presente nas escolas, forjadas pelo pensamento ocidental. Esse é, inclusive, um traço peculiar na formação de professores indígenas. A categoria profissional é frequentemente utilizada com conotação política, na medida em que os estudantes se reconhecem como professores, o que de fato são em suas aldeias, e a relação que se estabelece em sala de aula é de respeito, embora não se traduza emsubordinação hierárquica.

Neste sentido, os professores/estudantes Guarani e Kaiowá conferem legitimidade aos seus saberes e esperam ser ouvidos. A partir desse princípio, a metodologia utilizada permite uma prática dialógica, na qual são os professores/estudantes indígenas que imprimem o ritmo dos trabalhos, em um tempo de falar e ouvir, de refletir em grupos pequenos, de falar para o grupo maior, de pensar estratégias de ensino nas aldeias, de escrever. Nessa perspectiva, a partir de suas concepções culturais, expressam como concebem determinados aspectos da sua existência, quais são as práticas e os saberes próprios de seu povo em relação a um evento, fazendo com que o professor, aquele que está encarregado da atividade, se veja forçado a redimensionar os saberes acadêmicos.

O método dialógico, próprio das experiências alternativas de educação, que tem em Freire (1996, 2000, 2001) seu grande mentor, encontra entre os Guarani e Kaiowá um campo fecundo, para o qual contribui o elemento cultural de valorização da palavra entre seus integrantes, grandes oradores. Ainda que o que entendemos por timidez seja uma característica frequente, ela sempre se apresenta como algo a ser superado. Neste sentido, é no processo formativo que a capacidade de se expressar se desenvolve, o que é previsto no projeto político pedagógico do curso.