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A instituição do direito, o Fórum e sua arquitetura

ArquiteturA Forense em são PAulo

2.1. As transformações arquitetônicas dos Fóruns de Justiça e sua tipologia Ao introduzir o percurso da produção forense em São Paulo, seus ante-

2.1.1. A instituição do direito, o Fórum e sua arquitetura

Figura 10: Fórum Romano (GROS, 2002)

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ense em São Paulo, seus antecedentes, formulações e transformações arquitetônicas, faz-se necessário esclarecer o que

Este resgate projetual arquitetônico será

produção vai incorporar a partir de 1950, com as introduções conceituais e projetuais advindas da arquitetura moderna desenvolvida no país, momento em para esta produção, da mesma forma com a noção de tipo arquitetônico e as

A adoção do nome Fórum para os edifícios da Justiça no Brasil sugere certa ligação com o Fórum Romano, bem como com o Direito Romano, do qual deriva o Direito Brasileiro61, embora o ensino do Direito instituído em 1827, em São Paulo, Olinda e Pernambuco, não contemplasse inicialmente o curso de Direito Romano.62

O Fórum Romano, pois, não era só um único edifício, mas um grupo deles, constituindo o centro das ações administrativas, da ordem, da vida social e reli- giosa das cidades da Itália na Antigüidade:

Le fórum n’est pas um édiice. Il est, au mieux, um group d’ediices rassem- blés d’une façon plus ou moins cohérente autour d‘une place; il releve done plutôt d’une rélexion sur l’urbanisme que sur l’architecture proprement dite: nonbreuses sonte effectivement lês études qui ont tente de restituer, dans lê réseau viarie dês Villes d’Italie ou dês provinces occidentales, lês modalités de son insertion, de as clôture et de ses accés. [...]63

(GROS, 2002, p. 207)

Ao buscarmos algumas sendas que iluminem a similaridade semântica, vemos que o Fórum Romano era o local onde se concentravam todas as ações municipais administrativas e de ordem jurídica, além da vida comercial. No seu centro, um espaço livre pavimentado era o local em que ocorriam os julgamentos e promulgavam-se decretos, além de diversas comunicações de interesse público. Os discursos eram proferidos em uma tribuna rostros, plataformas elevadas para destacar a autoridade para o público geral. Esse grande pátio, que ocupava cer- ca deduas insulae (quadras), era ladeado por templos, além da basílica jurídica e da cúria. A basílica jurídica era uma extensão do Fórum; lá, as ações públicas podiam ser praticadas e abrigadas das intempéries. Dentro dela, tanto poderiam ocorrer julgamentos, reuniões dos conselheiros municipais, como também práticas 61 O direito brasileiro faz parte da chamada “família romano-germânica” de sistemas jurídicos de oratória, isto é, aqueles sistemas que tiveram sua origem na fusão entre o Direito romano e os direitos germânicos medievais, como o francês, o espanhol, o italiano, o belga e o alemão, bem como os direitos dos estados hispano-americanos. Ver: GAVAZZONI, Aluísio, A história do Direito Brasileiro – Dos sumérios até a nos-

sa era, Editora Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1999; FERREIRA, Waldemar Martins, História do Direito Brasileiro, Editora Saraiva, São Paulo, 1985, 2ª Ed; BANDECCHI, Brasil, Elementos de história do Direito Brasileiro, Editora Pannartz, São Paulo, 1984, 2ª Ed.

62 Informação dada por Aluísio Gavazzoni, em A história do Direito Brasileiro, que no mesmo texto completa que esta “lacuna” só seria suprida em 30 de março de 1853. O mesmo autor coloca a questão metodológica do estudo do direito, que possui duas ramiicações: historicista, na qual se baseia o seu trabalho; e analíti- cas, com súmulas de jurisconsultos, sendo que este último prevaleceu no ensino no Brasil. Estas diferenças e evoluções apontadas pelo autor no ensino do Direito demonstram que as origens do direito brasileiro e sua arquitetura não derivam diretamente da origem do direito romano, mas, sim, de suas transformações. 63 O fórum não é um edifício. Ou melhor, ele é um grupo de edifícios com uma certa semelhança em torno de uma praça; ele nos leva a um comentário mais relacionado ao urbanismo do que a sua arquitetura propria- mente dita: muitos são os estudos que tentam restabelecê-los dentro da razão viária de suas vilas da Itália ou das províncias ocidentais, sobre os métodos nelas inseridas, seus limites e sobre seus acessos. [...]

comerciais. Em um de seus lados, icava a tribuna.64 Nesse sentido, de um local especíico, onde se estabelece um certo ordenamento jurídico e administrativo, as semelhanças começam a ocorrer a partir de um deslizamento de signiicados, pois o Fórum de Justiça é o local onde se praticam, entre outras ações, as de ordem pública, não só para fazer valer e estabelecer normas de condutas sociais, mas da própria ordem jurídica do Estado, regida pela Constituição Brasileira.

Para Robert Jacob, o modelo mais adotado para os edifícios da Justiça em di- versos países foi o “Palácio da Justiça” francês e a conformação derivada dele:65

A história da arquitetura forense volta ao passado por um longo período. Certamente, no passado mais recente – no último século e no começo desse século –, o modelo francês de “Palais de Justice”, à primeira vista, parece ser o modelo mais popular. Essa característica do monumento francês com a fachada rigorosamente simétrica, dominada por uma entrada impetuosa com colunas e pedestal, apareceu nas cidades francesas e nas cidades ao redor no inal do séc. XVIII e se espalhou no séc. XIX para todo o oeste europeu (com exceção da no- tável Grã Bretanha), inluenciando até mesmo os fóruns construídos nos EUA, na América latina e no norte da África.

(JACOB, 1995)66

No Brasil, do ponto de vista do programa, os Palácios da Justiça não foram os únicos modelos de edifícios adotados para servirem à justiça, sendo queos fóruns utilizados para servir de primeira e segunda instâncias popularizam-see indevidamente são tidos como os únicos edifícios do Judiciário.67 Por mais ins- tigante que seja a decifração da origem ou da utilização da designação “Fórum de Justiça” no caso brasileiro, tal investigação escapa aos objetivos do trabalho, mas revela as riquezas de questões que o permeiam.

Por sua vez,a arquitetura designada para a Justiça sempre conteve espe- ciicidades que a destacava no campo das resoluções arquitetônicas com certa magnitude. A partir do inal do século XVIII na França e alastrado no século XIX em diversos países, os monumentais edifícios “Palácio da Justiça” foram produ- zidos durante longos períodos em diversas partes do mundo, com característi- cas próprias, as quais resguardam seus signiicados.

64 Para aprofundar a questão, ver: GROS, Pierre, L’ Architecture Romaine- Du début du III siècle av. J.-C.J.-C.

à la in du Haut- Empire- I Lês monuments publics. Éditions A. et J. Picard, Deuxiéme edition, Paris, 2002;

BALTY, Jean Ch., Curia Ordinis, Recherches d’architecture et d’urbanisme antiques sue les curies provin-

cials du monde romain, Impression Palais des Académies de L’université livre de Bruxelles, 1983.

65 Robert Jacob é jurista medievalista e professor de História do Direito Universal de Liège na França. 66 O texto original, “La formazione storica dell’architectura giudiziaria, The historical development of cour-

thouse architecture”, de Robert Jacob, publicado na revista Zodiac, nº 14, setembro, 1995, p. 30, tradução

da autora. Cabe completar que o dito monumento era concebido segundo as formulações neoclássicas. 67 Primeira instância é o ponto inicial do processo, do qual provém o caso para julgamento superior. Segun- da instância é o processo revisto através de recurso da sentença.

[...] o modelo próprio (arquitetura forense) foi aproximadamente relacionado ao simbolismo da Justiça como uma instituição social, que esse simbolismo recu- sou-se fortemente a ser revelado e interpretado de outras maneiras.

Como a arquitetura eclesiástica respondeu aos ditados da Liturgia, então a arquitetura forense, através dos séculos, foi determinada pelos requerimentos do ritual jurídico e manteve a imagem que a justiça queria preservar. (JACOB, 1995) A arquitetura designada para os Fóruns de Justiça sempre conteve especi- icidades que a destacavam no campo das resoluções arquitetônicas com certa magnitude. Edifícios monumentais foram feitos durante longos períodos em di- versas partes do mundo, conferindo um destaque entre os edifícios, tornando-os acentos tônicos no tecido urbano, assim como ocorreu com as igrejas. Os ritos processuais que se deram nos seus edifícios durante longo período eram carre- gados de simbologia, solicitando uma correspondência na organização espacial. A materialização espacial dos ritos e imagens simbólicas da justiça conformou uma produção arquitetônica com traços próprios.

Atualmente, o cerimonial judiciário, mesmo conhecendo modiicações que reletem as signiicativas mudanças ocorridas na estrutura do próprio Judiciário – veja-se como exemplo o atual papel dos Procuradores da Justiça –, mantém ritos e práticas tradicionais. Um exemplo das simbologias adotadas pela justiça que ainda permanece, assunto recentemente debatido pelo Judiciário no Brasil, é a obrigatoriedade da cruz de Cristo sobre a cabeça do magistrado, no salão do Júri, como referência ao poder de Deus sobre os homens, quando o juiz, mo- mentaneamente, torna-se um representante do poder divino, resquício do emba- raçamento da relação Igreja e Estado.68 Cabe registrar que a presença da cruz, junto ao juiz e “vigiando” a justiça dos homens, não é uma questão local:

Inicialmente, Cristo foi colocado, no momento do julgamento universal, na parte de baixo da corte, fazendo uma planície para os observadores como se a jus- tiça humana e a justiça divina trabalhassem simultaneamente na esfera terrestre.

Na Alemanha, esse layout manteve-se sem modiicações até as reformas, na França; o Cristo do juízo inal inalmente desistiu da cruciicação quando a árvore da justiça foi consagrada pela sagrada cruz; em harmonia com as lendas populares que tentavam identiicar a árvore de Deus e o mal como a árvore da vida.

68 Ver Folha de São Paulo, 17 de setembro de 2005, artigo sobre o uso dos cruciixos nos Tribunais, no qual um juiz do Rio Grande do Sul apresentou a proposta de sua retirada das salas de audiência ao Congresso de Magistrados, ocorrido no inal do mesmo mês, em Santana do Livramento. O assunto foi bastante polêmico segundo o jornal, novamente publicado em 3 de outubro de 2005 e discutido na sessão “Tendências e Deba- tes”, 4 de outubro de 2005. Para o Juiz Roberto Arriada Lorea, autor da proposta, o Poder Judiciário, sendo laico, não deveria ostentar símbolos religiosos. Já para o Desembargador José Renato Nalini, a nação brasi- leira nasceu sob a invocação da cruz e essa serve como representação do compromisso de quem assume o encargo de produzir justiça aos homens. Tal debate relete como esta instituição ainda está presa a simbolo- gias em suas práticas e costumes, e como ainda problematiza a separação entre Igreja e Estado.

A cruciicação sobre o juiz manteve-se como o principal símbolo nas cortes francesas, até que o Estado e a Igreja fossem separados oicialmente em 1904.

(JACOB, 1995)

Apesar da questão da soberania do Estado laico no Brasil ainda não pos- suir limites claros, hoje em dia, as restrições programáticas dos edifícios de justi- ça seguem certa lógica funcional para se obter condições de um julgamento com imparcialidade. Uma dessas soluções pode ser observada nas especiicações do posicionamento espacial das partes no salão de júri popular: o réu deve icar longe da acusação e atrás de uma parede cega, frente ao júri que está atrás de uma parede com janelas. A luz incide na expressão facial do julgado, permitindo ver mais claramente suas reações, sendo que ele não consegue olhar claramen- te no rosto dos jurados.69

Estas especiicidades, ditadas pelo funcionamento dos Tribunais e demais edifícios da Justiça, promoveram, na sua organização espacial, um ajustamento entre forma e pensamento, o qual se observa desde os seus primeiros exempla- res republicanos, como será visto mais adiante.

A partir dessas breves considerações, todavia marcantes, de um ritual ju- rídico que solicita uma conformação espacial, o trabalho adota a existência de uma tipologia, ao menos de uma questão tipológica. O tipo forense mescla um programa que não se estrutura, prioritariamente, em termos funcionais, ainda que a função não seja desprezível, sobretudo em termos do ideal da justiça, como instituição social que formula uma liturgia própria, materializada em uma hierarquia espacial do edifício, com elementos da arquitetura historicista, em geral neoclássica. Há uma estrutura profunda no tipo forense, mas ela advém fortemente da liturgia e de seus valores, buscando referências arquitetônicas existentes e podendo gerar novas.

Antes da questão arquitetônica, porém, é necessária, como já proposto, uma introdução expondo brevemente a conformaçãodo Poder Judiciário no Bra- sil, a im de compreender os caminhos traçados para a elaboração da tipologia Fórum de Justiça em São Paulo. Ainda que o trabalho restrinja-se ao campo da arquitetura, a compreensão de como o Poder Judiciário formatou-se é imprescin- dível para a sua arquitetura ter se moldado a ele e seus ritos aos seus “ditados litúrgicos” em um logo período de sua produção.

69 Conduta praticada segundo os atuais responsáveis, como a arquiteta Maria Lúcia de Britto Passos e de- mais técnicos da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, na elaboração dos novos fóruns de justiça do Estado de São Paulo, relatada em entrevista realizada em 28.4.2006.