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CAPÍTULO 2 – PERSPECTIVAS DA INTERAÇÃO MUSICAL

2.1.4 A interação enquanto geradora de mudanças estruturais

Com o olhar focado mais para os aspectos musicais, em contraposição aos dois autores discutidos acima, Robert Hodson, em sua tese de doutorado intitulada Interaction and improvisation: Group interplay in jazz performance, publicada no ano de 2000, objetiva a compreensão, a partir da análise do

produto (transcrição dos improvisos), dos processos interacionais, entendendo esses processos como responsáveis e geradores da música improvisada.

As análises que Hodson (2000) realiza em seu trabalho, tem como objetivo ―explorar as maneiras pelas quais os improvisadores do jazz equilibram os fatores restritivos dos aspectos sintáticos estruturais da composição‖, principalmente a progressão harmônica pré-estabelecida pelo tema e sua forma, como podemos concluir pelos títulos dos capítulos34 e ―os processos interativos dinâmicos que ocorrem entre os membros do conjunto‖ (HODSON, 2000, pp. 33 - 34).

O autor entende, e demonstra com as análises que, a partir da negociação, realizada de maneira interativa na performance, é possível transformar aspectos estruturais das composições. A progressão harmônica, uma dessas estruturas, como argumenta, não é rígida, e sim, constantemente negociada no momento da performance pelos membros do grupo. Esse fato pode, facilmente, ser percebido dada as diferenças harmônicas em gravações de um mesmo standard de jazz. Isso leva Hodson (2000) a afirmar que as gravações de um mesmo tema têm harmonias semelhantes, mas não idênticas (HODSON, 2000, p. 84).

Essas mudanças ocorridas em relação às progressões harmônicas são possíveis a partir de algumas variações já estabelecidas em relação a algumas progressões conhecidas do repertório do jazz. A harmonia ―blues‖ é um bom exemplo dessas variações e Hodson (2000) discuti três delas e as nomeia como, harmonia básica, blues jazz e blues Bird, sendo esta terceira a progressão que ocorre no tema Blues for Alice do saxofonista Charlie Parker. Para a sistematização deste conceito, o autor empresta algumas ideias da linguística, que são as estruturas deep, shallow e surface do linguista Noam Chomsky.

Na definição das três estruturas, Hodson sustenta que a deep structure refere-se a ―um mapa mental sobre a progressão harmônica‖, shallow structure são ―todas as possibilidades de progressões que podem ser geradas‖ a partir

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Os títulos dos capítulos 2 e 3 dessa tese são, respectivamente: Harmonia e Interação e Forma e Interação.

da deep structure e por fim a surface structure ―é a manifestação específica de uma progressão‖ (HODSON, 2000, p. 99). Com isso, Hodson (2000) elabora uma Teoria Gerativista da harmonia do jazz. Retomando as três variações acima citadas, a harmonia básica de blues é entendida como deep structure e as outras duas, tanto a blues jazz quanto a blues Bird são surface structure, enquanto todas as possibilidades, entre essas progressões, se encontram na shallow structure.

Para o autor, a definição de qual progressão será de fato utilizada em uma performance será estabelecida a partir da interação entre os membros do grupo, tendo em mente que em uma mesma performance, essas progressões poderão ser modificadas entre um ―chorus‖ e outro. Dessa forma, o autor demonstra que a harmonia no jazz não é rígida e sim fluida e que, a partir da interação, podemos fazer alterações em um elemento estruturante da composição.

Outro aspecto sintático estrutural que pode ser alterado, a partir da interação entre os membros na performance, é a forma da composição. Hodson (2000) afirma que ―os músicos de jazz usam a palavra forma para descrever a estrutura de um ―chorus‖ de um tema‖ (HODSON, 2000, p. 119). Barry Kernfeld (1997) nomeia essa estrutura por ―chorus form‖ e a define como uma ―sequência de acordes ligados a um esquema métrico‖ (HODSON, 2000, p. 119). Hodson reelabora esta definição e afirma que a forma de um tema é sua progressão harmônica juntamente com sua estrutura fraseológica (Hodson, 2000). Assim, a improvisação de um músico pode ser afetada tanto pela harmonia e comprimento de ―chorus‖ quanto pela sua organização interna das frases neste chorus, como afirma Hodson.

Existem pelo menos duas estratégias de interação utilizadas entre seção rítmica e solista para a definição da forma. A primeira estratégia é definida por Hodson (2000) como ―ato de equilíbrio‖35

, cuja definição é:

Parece haver um acordo geral de que a forma deve ser claramente definida, mas a tarefa de defini-la não é

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atribuída a qualquer músico em particular ou grupo de músicos. Em vez disso, é um esforço de grupo, negociado no decorrer da performance. (HODSON, 2000, p. 162). 36

Esse conceito refere-se a duas maneiras de acompanhamento, analisadas por Hodson (2000), na seção rítmica da música Blues by Five do álbum Cookin do trompetista Miles Davis, em que Miles Davis e John Coltrane, os respectivos improvisadores, optam por atitudes diferentes de improvisação. Para o autor o ―ato de equilíbrio‖ se caracteriza como a tentativa de realizar um contraponto com o solista, em que, no caso específico, Miles Davis realiza um solo mais contido, estabelecendo forte relação com a estrutura formal do tema. A seção rítmica, entendendo este percurso, opta por uma condução mais fluida, sem a necessidade de marcações de fim de forma. Em contrapartida, o saxofonista John Coltrane, em seu improviso, opta por uma improvisação menos restrita às estruturas formais, e, da mesma forma, a seção rítmica, numa atitude contrapontística, decide realizar um acompanhamento afirmando mais claramente as estruturas formais.

A segunda estratégia é definida por Hodson, a partir de outra gravação, Flamenco Sketches de Miles Davis, contida no álbum Kind of Blue de 1959. A questão levantada pelo autor, nessa música, é que não há uma forma pré- definida para a improvisação, ela toma corpo no momento da performance e através da negociação entre os músicos. Bill Evans, pianista que participa dessa gravação, descreve esse tema como ―uma série de cinco escalas a serem tocadas de acordo com o solista, até completar a série‖ (EVANS apud HODSON, 2000, p. 221). Hodson (2000) destaca dois pontos importantes nessa descrição, a primeira é a definição do tema como séries de escalas e não uma melodia sobre progressão harmônica, que é o mais recorrente. O segundo ponto é que o período gasto em cada seção não é pré-estabelecido e sim negociado na performance. Dessa maneira, a estrutura formal de Flamenco Sketches não é determinada em momento anterior à performance,

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There seems to be a general agreement that the form should be clearly defined, but the task of defining it is not assigned to any particular musician or group of musicians. Rather, it is a group effort, negotiated in the course of the performance.

como frequentemente ocorre no jazz em relação à progressão harmônica de um tema, porém está intimamente ligada à decisão do improvisador, responsável por decidir o momento de mudança de acorde, que é seguido por seus pares através da percepção dessas mudanças.

Sobre sua concepção de interação, Hodson traz uma nova perspectiva, que difere em certo grau dos autores citados anteriormente. Para a sustentação desse novo olhar, Hodson cita os tipos de interação de Rinzler (1988) e faz uma crítica a maneira de Rinzler compreender a interação. Segundo Hodson (2000), Rinzler ―parece ver essas interações como técnicas isoladas que o músico se baseia e incorpora na performance‖ (HODSON, 2000, p. 35). Em oposição a essa visão, Hodson concebe a interação ―como algo mais elementar, como um processo musical contínuo que está incorporado no próprio tecido da performance e que por vezes se manifesta como preenchimento ou pergunta e resposta‖ (HODSON, 2000, p. 35).

Dessa maneira, há uma ampliação das manifestações possíveis da interação dentro de um grupo de música instrumental improvisada e das maneiras que esta interação pode ocorrer entre seus membros, como Hodson conclui a seguir:

Qualquer coisa tocada por qualquer membro do conjunto pode potencialmente ter um efeito sobre qualquer outro membro do conjunto, aumentando o leque de possibilidades de interações potenciais muito além das descritas na lista de Rinzler (HODSON, 2000, p. 36)37

O aprofundamento da concepção de interação, proposto por Hodson, como sendo algo contínuo e elementar na performance, bem como as possibilidades de alterações estruturais que podem ser feitas a partir da interação são contribuições muito expressivas para o campo de estudos em interação porque propõem uma noção mais abrangente, focada também nos aspectos musicais. As contribuições dos autores até aqui apresentados abrem

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Anything played by any member of the ensemble can potentially have an effect on any other member of the ensemble, increasing the range of possibilities for potential interactions far beyond those described in Rinzler's list.

caminho para o trabalho de Michaelsen acerca de uma metodologia de análise de interação, utilizada na análise desta dissertação.