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A interpretação conforme à Constituição

4.3. Técnicas de Controle de Produção Normativa

4.3.1. Controle de constitucionalidade

4.3.1.2. A interpretação conforme à Constituição

Muito embora o controle de constitucionalidade brasileiro tenha sido fortemente influenciado pelo modelo norte-americano, com relação à interpretação conforme à Constituição (e também com a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto) sua origem remete a sistemas europeus de fiscalização de constitucionalidade, notadamente da Alemanha e da Itália, como indicam manifestações da nossa Suprema Corte334 ainda na vigência da Carta pretérita.

Considerando o fortalecimento do controle de constitucionalidade a partir da Carta de 1988, a interpretação conforme à Constituição foi sendo gradualmente incorporada à prática brasileira. Nos dias atuais, é instrumento de indiscutível relevância para a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, tendo sido, inclusive, positivada pelo art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/1999.

334 O Supremo Tribunal Federal, em um primeiro momento, apresentou certa restrição à utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição, inclusive apontando, com considerações sobre as particularidades de sua aplicação no continente europeu, os riscos que teria essa orientação no Brasil, conforme revelam alguns pronunciamentos exarados pelo Tribunal (cf. Representação n. 1.417-7/DF, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 09.12.1987, DJ 15.04.1988, e Representação n. 1.389-8/RJ, Plenário, Rel. Min. OSCAR CORRÊA, julgamento em 23.06.1988, DJ 12.08.1988).

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Pela aplicação da técnica de interpretação conforme à Constituição, não deve ser pronunciada a inconstitucionalidade de um texto normativo quando, a partir dele, ao menos uma interpretação for compatível com a Constituição. É o que ensina CELSO RIBEIRO BASTOS: Pela interpretação conforme à Constituição, uma lei não deve ser declarada nula quando seja passível de uma interpretação que a coloque em plena sintonia com o conjunto normativo-constitucional .335

Em outras palavras, se a partir de um texto de direito positivo, impugnado com relação à sua constitucionalidade, for possível construir pelo menos uma norma jurídica compatível com a Constituição, ainda que outro ou outros sentidos sejam desconformes, esse texto normativo não deve ser pronunciado inconstitucional.336

Nesse sentido, ANDRÉ RAMOS TAVARES: Assim, quando uma norma infraconstitucional contar com mais de uma interpretação possível, uma (no mínimo) pela constitucionalidade e outra ou outras pela inconstitucionalidade, múltipla interpretação dentro dos limites permitidos ao intérprete, este deverá sempre preferir a interpretação que consagre, ao final, a constitucionalidade .337 Portanto, havendo uma ou mais interpretações conformes à Lei Constitucional, o texto normativo terá sua presunção de validade confirmada. Daí afirmarmos que a interpretação conforme à Constituição opera no plano das significações.

O fundamento desta técnica de controle de constitucionalidade reside, como sustenta J. J. GOMES CANOTILHO,338 em um princípio de prevalência normativo-

vertical e de integração hierárquico-normativa, atuando as normas de superior hierarquia como determinantes do conteúdo das normas infraconstitucionais. Para JORGE MIRANDA,339 justifica-se a interpretação conforme com a Constituição por

economia do ordenamento ou do máximo aproveitamento dos atos jurídicos, mas não pela presunção de constitucionalidade dos atos normativos.

335

Hermenêutica e interpretação constitucional, 1997, p. 167.

336 A interpretação conforme à Constituição, pensamos, ajusta-se perfeitamente aos ensinamentos de PAULO DE BARROS CARVALHO no sentido de que a partir de um mesmo texto de direito positivo (suporte físico) podem ser construídas distintas normas jurídicas (significações).

337

Curso de direito constitucional, 2007, p. 85. 338

Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 1994, p. 405-406.

339

Manual de direito constitucional, 2003, p. 295. Também nesse sentido, ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de direito constitucional, 2007, p. 85 e 255). Já para GILMAR FERREIRA MENDES, a interpretação conforme à Constituição encontra justificativa no postulado da presunção de constitucionalidade dos atos normativos, que tem como pressuposto que o legislador não pretenderia produzir uma lei inconstitucional (Controle concentrado de constitucionalidade, 2005, p. 410 e 413-414).

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Em nosso entendimento, a interpretação conforme à Constituição não se resume a um importante princípio de hermenêutica constitucional. Trata-se, efetivamente, de instrumento de controle de constitucionalidade.340 Foi também essa

a posição proclamada já em 1987 pelo Supremo Tribunal Federal.341

Todavia, há limites à aplicação da interpretação conforme à Constituição.342

Não pode o Poder Judiciário, a pretexto de construir sentido compatível com a Lei Constitucional, produzir norma jurídica que desborde por completo dos limites semânticos do elemento literal constante dos enunciados prescritivos. Se assim o fizer, estará a invadir prerrogativa do Poder Legislativo.343 É a lição de CELSO BASTOS: É que o intérprete não poderá atribuir um significado à norma totalmente distante da letra desta, ou em inteira autonomia, desprezando por completo o que estiver preceituado. A interpretação não se pode desvincular da norma posta .344

A interpretação conforme à Constituição não é aplicada exclusivamente pela Suprema Corte no exercício da jurisdição constitucional. Como instrumento de controle de constitucionalidade, tampouco está restrita àquelas ações próprias do controle concentrado. E conquanto devam ser observadas certas cautelas em razão da distinção entre os modelos concentrado e difuso, como adverte JORGE MIRANDA,345 a interpretação conforme à Constituição tem aplicação em ambos os

340 Nesse sentido, dentre outros, JORGE MIRANDA (Manual de direito constitucional), ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de direito constitucional) e PAULO ROBERTO LYRIO PIMENTA (Efeitos da decisão de inconstitucionalidade em direito tributário). Em sentido contrário, FERNANDO OSORIO DE ALMEIDA JUNIOR entendendo tratar-se de critério para solução de antinomias entre interpretações possíveis de uma lei (Interpretação conforme a Constituição e direito tributário, 2002, p. 19).

341 Consta da ementa do acórdão da Representação n. 1.417-7/DF: O princípio da interpretação conforme à Constituição (Verfassungskonforme Auslegung) é princípio que se situa no âmbito do controle de constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação (Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 09.12.1987, DJ 15.04.1988 destaques do original).

342 Os limites para a aplicação da interpretação conforme à Constituição são a literalidade do texto normativo e a chamada vontade (intenção) do legislador. Nesse sentido, dentre outros, GILMAR FERREIRA MENDES (Controle concentrado de constitucionalidade), ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de direito constitucional) e PAULO ROBERTO LYRIO PIMENTA (Efeitos da decisão de inconstitucionalidade em direito tributário). Aponta ainda JORGE MIRANDA a existência de um requisito de razoabilidade, atrelado ao limite imposto pela literalidade do texto (Manual de direito constitucional, 2003, p. 296). Para GILMAR FERREIRA MENDES, a prática do Supremo Tribunal Federal ... não confere maior significado à chamada intenção do legislador, ou evita investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto (Controle concentrado de constitucionalidade, 2005, p. 414 destaques do original).

343 Cf. Representação n. 1.417-7/DF, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 09.12.1987, DJ 15.04.1988.

344

Hermenêutica e interpretação constitucional, 1997, p. 168. 345

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modelos de fiscalização de constitucionalidade, como, aliás, está a fazer o Supremo Tribunal Federal ao lançar mão desse instrumento também no controle difuso.346

E mais do que isso. Assume uma função conformadora do sistema do direito positivo. Bem por isso, com EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA,347 pensamos que a

interpretação conforme à Constituição transcende a jurisdição constitucional, para expandir-se por todo o processo de positivação do direito. Daí sua aplicação, por exemplo, pelos órgãos administrativos de consulta e de julgamento, inclusive em matéria tributária.

Pois bem. Devemos examinar qual o resultado da aplicação desta técnica de controle de constitucionalidade. É proclamada como válida uma interpretação, sem exame de outras? É fixada como constitucional um único sentido? A existência de uma interpretação conforme implica a inconstitucionalidade das demais?

Parte dos autores defende existir na interpretação conforme à Constituição a fixação de uma exegese que permite compatibilizar o texto normativo questionado com a ordem constitucional. É fixado, pois, um sentido válido.348 Nessa linha de idéias, outras interpretações seriam inconstitucionais,349 ou seja, seriam acepções inválidas construídas a partir do texto do direito positivo e que não poderiam ser aplicadas.

346 Cf. Recurso Extraordinário n. 150.755-1/PE, Plenário, Rel. para acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgamento em 18.11.1992, DJ 20.08.1993; Recurso Extraordinário n. 169.740-7/PR, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 27.09.1995, DJ 17.11.1995; Recurso Extraordinário n. 390.458-2/RJ, Plenário, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, julgamento em 17.06.2004, DJ 18.02.2005; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 427.533-8/RS, Plenário, Rel. originário Min. MARCO AURÉLIO, Rel. para acórdão Min. CEZAR PELUSO, julgamento em 02.08.2004, DJ 17.02.2006; Recurso Extraordinário n. 420.816-4/PR, Plenário, Rel. originário Min. CARLOS VELLOSO, Rel. para acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgamento em 29.09.2004, DJ 10.11.2006). Já Para SÉRGIO AUGUSTO ZAMPOL PAVANI, a interpretação conforme à Constituição seria cabível no controle difuso apenas nos termos do art. 97 da Constituição, é dizer, em decisão do plenário ou do órgão especial dos tribunais (A interpretação conforme a Constituição e o controle difuso de constitucionalidade. In: Temas de direito público: aspectos constitucionais, administrativos e tributários: estudos em homenagem ao Ministro José Augusto Delgado, 2005, p. 581-599).

347 Eis a lição: Pero este principio de la interpretación del ordenamiento conforme a la Constitución no vincula únicamente al Tribunal Constitucional, en el momento de la decisión del recurso de inconstitucionalidad, sino también a todos los Tribunales en las funciones aplicativas de la Constitución (...) a revelar un verdadero principio general del ordenamento que, por tanto, resulta de necesaria aplicación universal, también afectante, en consecuencia, además de a los Tribunales, a los operadores jurídicos públicos y privados de cualquier carácter, en cualquier aplicación del ordenamiento o de cualquiera de sus elementos (Hermeneutica e supremacia constitucional: el principio de la interpretación conforme a la Constitución de todo el ordenamiento. Revista de Direito Público, n. 77, p. 34).

348 Nas palavras de JORGE MIRANDA, ... o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental (Manual de direito constitucional, 2003, p. 296 destaques do original). 349 Nesse sentido, CELSO RIBEIRO BASTOS, LUÍS ROBERTO BARROSO, PAULO ROBERTO LYRIO PIMENTA, FERNANDO OSORIO DE ALMEIDA JUNIOR e SÉRGIO AUGUSTO ZAMPOL PAVANI.

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Em determinados casos, o Supremo Tribunal Federal tem fixado como válida uma e somente uma exegese,350 inclusive consignando de forma expressa não

serem válidos outros possíveis sentidos.351

De outra banda, autores sustentam que a interpretação conforme à Constituição é instrumento que confere validade a uma interpretação, sem exclusão de outras exegeses legítimas e tampouco implica a pronúncia de inconstitucionalidade dos demais sentidos.352 Dessa perspectiva, na interpretação conforme à Constituição é constituída em linguagem competente a confirmação da validade do texto normativo impugnado, bem como a validade de uma interpretação a partir daquele texto, nada dispondo acerca de outros sentidos que possam ser construídos pelos intérpretes.

Nesta linha de idéias, GILMAR FERREIRA MENDES353 argumenta que a interpretação conforme à Constituição confere validade, porque constitucional, a uma determinada exegese, enquanto para o afastamento de uma interpretação inconstitucional mostra-se tecnicamente mais adequada, e inclusive dotada de maior clareza e segurança jurídica, a pronúncia de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.

De nossa parte, entendemos que o Poder Judiciário, ao utilizar a técnica de interpretação conforme à Constituição, tem duas opções. Em determinados casos pode fixar como constitucional uma única significação, de modo que os demais sentidos não estarão conformes à Constituição. Em outras situações, pode constituir em linguagem competente a validade de uma interpretação, todavia sem que isso implique a inconstitucionalidade de todas as outras.

350 ADI n. 1.371-8/DF, Plenário, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, julgamento em 03.06.1998, DJ 03.10.2003; e ADI n. 1.377-7/DF, Plenário, Rel. originário Min. OCTAVIO GALOTTI, Rel. para acórdão Min. NELSON JOBIM, julgamento em 03.06.1988, DJ 16.12.2005. E inclusive no controle difuso, a exemplo do Recurso Extraordinário n. 169.740-7/PR, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 27.09.1995, DJ 17.11.1995.

351 ADI n. 319-4/DF, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, julgamento em 03.03.1993, DJ 30.04.1993; ADI n. 2.341/600, Plenário, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, julgamento em 22.06.1995, DJ 15.09.1995; ADI n. 1.586-9/PA, Plenário, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, julgamento em 07.05.1997, DJ 29.08.1997.

352 Nesse sentido, por exemplo, GILMAR FERREIRA MENDES (Controle concentrado de constitucionalidade), ROBSON MAIA LINS (Controle de constitucionalidade da norma tributária: decadência e prescrição) e MARIANA OITICICA RAMALHO (Modernas formas de controle de constitucionalidade à luz do construtivismo de Paulo de Barros Carvalho. Revista de Direito Tributário, n. 83).

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(1) Na fixação uma única interpretação constitucional, excluindo-se os demais sentidos, porquanto incompatíveis com a Constituição, ter-se-á uma posição mais restritiva. Essa postura, quiçá, possa prestigiar a certeza do direito ao estabelecer a interpretação válida. Esse aspecto, no que tem de positivo, é mais notado no sistema concentrado de constitucionalidade, inclusive porque o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tem eficácia geral e efeito vinculante. De outro lado, essa opção pode limitar substancialmente a atividade hermenêutica, marcadamente na hipótese de existirem situações concretas que demandem a construção de uma outra solução exegética, tal como ocorre no controle difuso de constitucionalidade.

(2) Na proclamação da constitucionalidade de uma interpretação, sem a exclusão de quaisquer outras possíveis, que não são analisadas no pronunciamento judicial, tem-se uma postura menos restritiva. Aqui, o Poder Judiciário confirma a validade do texto de direito positivo, bem como de pelo menos uma interpretação, mas não esgota a produção de sentidos. Nesta hipótese, é privilegiado o papel do intérprete, permitindo outras interpretações para situações distintas verificadas na realidade social, o que pode militar em favor de uma melhor prestação jurisdicional, particularmente no controle difuso. Do lado negativo, notadamente no controle concentrado, pode ser destacada a possibilidade de que, mesmo após o pronunciamento do Poder Judiciário, inclusive do Supremo Tribunal Federal, outras interpretações (não examinadas) ensejem nova jurisdição constitucional, com base no mesmo texto normativo.

Pela técnica de interpretação conforme à Constituição, portanto, o órgão julgador opera exclusivamente no plano das significações. Daí que o juízo quanto à constitucionalidade deverá levar em conta unicamente um possível vício por infração â norma que delimita a matéria.354 Bem por isso, na interpretação conforme à Constituição o plano da expressão não é afetado. De reverso, tem-se a confirmação de sua pertinência com o sistema do direito positivo, o que se dá exatamente em razão de pelo menos uma das normas jurídicas construídas a partir do texto normativo apresentar-se compatível com a Carta da República.

354 Conforme já destacamos, se violadas normas que estabelecem competência ou procedimento, o vício atinge o próprio texto do direito positivo e apenas indiretamente as normas jurídicas (significações).

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