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CAPÍTULO 2 - A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA NA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

2.1. Uma ideia de Justiça

2.1.2. A justiça enquanto nyaya: outro paralelo com a competência

Em sua obra “Uma ideia de Justiça”, Amartya Sen inicia por nos explicar uma interessante distinção presente no Direito Indiano a respeito dos conceitos de justiça, distinção esta que em muito poderá nos ajudar na persecução da própria justiça. Acerca destes conceitos centrais à sua obra, o autor assim discorreu ainda em sua introdução68:

UMA DISTINÇÃO CLÁSSICA NA TEORIA DO DIREITO INDIANO [...]

Considere duas palavras diferentes, niti e nyaya; no sânscrito clássico, ambas significam justiça. Entre os principais usos do termo niti, estão a adequação de um arranjo institucional e a correção de um comportamento. Contrastando com niti, o termo nyaya representa

68 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 50 e 51.

um conceito abrangente de justiça realizada. Nessa linha de visão, os papéis das instituições, regras e organizações, importantes como são, tem de ser avaliados da perspectiva mais ampla e inclusiva de nyaya, que está inevitavelmente ligada ao mundo que de fato emerge, e não apenas às instituições ou regras que por acaso temos.

[...]

Considerando uma aplicação específica, os antigos teóricos do direito indiano falavam de forma depreciativa do que chamavam matsyanyaya, “a justiça do mundo dos peixes”, na qual um peixe grande pode livremente devorar um peixe pequeno. [...] O reconhecimento central aqui é que a realização da justiça no sentido de nyaya não é apenas uma questão de julgar as instituições e as regras, mas de julgar as próprias sociedades. Não importa quão corretas as organizações estabelecidas possam ser, se um peixe grande ainda puder devorar um pequeno sempre que queira, então isso é necessariamente uma evidente violação da justiça humana como nyaya.

A vida humana ocupa uma posição central e de destaque sob a perspectiva da justiça considerada como nyaya, em contraposição à perspectiva de justiça enquanto niti. Essa perspectiva de nyaya tem sido objeto também dos analistas sociais, ainda que sob a roupagem de cálculos quantitativos, os quais não se justificam senão no impacto dos dados nas vidas humanas.

Considerada a justiça como nyaya, perceberemos que nem sempre a opulência econômica de uma nação se traduzirá em uma liberdade substantiva, esta considerada desde a liberdade para viver uma vida mais longa e livre de doenças ou outras causas de mortes prematuras até a liberdade enquanto a possibilidade que realmente temos para escolher entre diferentes estilos e modos de vida.

Eis aqui mais uma conclusão importante do professor de Economia e Filosofia da Universidade de Harvard, qual seja, de que a disponibilidade de mais recursos não tem uma correlação necessária com a realização do bem-estar. Não raro, a opulência de recursos não implica em conquistas sociais afetas ao direito à vida, à educação e à saúde, ou à oportunidade e liberdade real para que as pessoas vivam as vidas que escolham viver.

Amartya Sen esclarece que as preocupações com o mundo dos fatos não se resumem aos seus aspectos puramente consequencialistas e que ignoram a importância dos processos institucionais, tal qual poderiam argumentar os

“deontológicos”, quais sejam, aqueles que tem sua mira voltada à construção das instituições idealmente justas. Para o referido autor, a avaliação completa das realizações deverá, necessariamente, levar em conta os processos institucionais através do quais tal estado de coisas de fato emerge, pelo que, em suas próprias palavras, uma compreensão apropriada da realização social – fundamental para a justiça como nyaya – tem de assumir a forma abrangente da explicação que inclua os processos69.

Novamente, importante deixarmos registrados o necessário paralelo com o tema desta pesquisa. Parece imprescindível que, uma vez percebida à incompatibilidade entre o potencial da arrecadação realizável por meio do exercício da competência tributária e os resultados sociais auferidos, o dever do intérprete do direito não se resume nem a reafirmar o conteúdo da “norma construída”, indiferente aos resultados conquistados; nem em reafirmar somente a indesejabilidade da realização social, como que a ignorar ou “passar por cima” das construções normativas idealizadas pelo jurista. Diferente disso, cabe ao intérprete do Direito reavaliar as construções normativas, tendo em vista justamente viabilizar que os resultados indesejados ocorridos no mundo dos fatos sejam superados numa “nova”

norma, reconstruída a partir dos mesmos textos normativos, mas que inclui em suas ponderações os resultados pragmaticamente percebidos e absolutamente incompatíveis com a justiça.

Segundo Amartya Sen, é certo que toda teoria da justiça passa pela escolha e vislumbre de instituições justas. No entanto, esta capacidade de realização da justiça deve ser aferida no mundo dos fatos, e não simplesmente ser presumida, como se as instituições representassem, de per si, a realização da justiça, pelo simples fato de serem idealmente justas70. Nesse sentido, os arranjos institucionais devem ser postos a prova, “testados” empiricamente, para que, a partir deste teste, possamos verificar a sua efetiva e concreta capacidade de realização da justiça.

Tal necessidade de reavaliação parte da percepção de que, comumente,

“instituições justas” podem gerar e geram resultados catastróficos, sem que,

69 Ibidem, p. 52 e 53.

70 Ibidem, p. 112.

necessariamente, venham a violar qualquer um de seus pressupostos institucionais.

SEN comprovou, nesse sentido, que graves casos de fomes coletivas foram gerados por grandes potências econômicas e políticas, sem que “direitos de liberdade”

tenham sido diretamente violados71. E justamente por força desta verificação, exorta o autor:

Há, evidentemente, uma atração considerável para pressupor que as instituições sejam invioláveis, ao se imaginar que elas sejam racionalmente escolhidas por algum acordo justo hipotético, independentemente do que elas de fato realizam. O ponto geral em causa aqui é saber se podemos deixar o problema para a escolha das instituições (que são obviamente escolhidas com um olho nos resultados na medida em que estes entram nas negociações e nos acordos), mas sem questionar o status dos acordos e das instituições uma vez escolhidos os arranjos, não importando quais consequências reais venha a se revelar.72”.

[...]

Na perspectiva inclusiva de nyaya, nunca podemos simplesmente entregar a tarefa da justiça a alguma niti das instituições e regras sociais que vemos como precisamente corretas, e depois aí descansar, libertando-nos de posteriores avaliações sociais. [...]

Perguntar como as coisas estão indo e se elas podem ser melhoradas é um elemento constante e imprescindível da busca da justiça.

Desta feita e em conclusão deste tópico, fazemos eco ao clamor do ora comentado Prêmio Nobel de Economia, para que superemos a tendência preponderante em nossa filosofia política de nos atermos à ideia de institucionalismo transcendental e às muitas propostas de reformas institucionais “necessárias”, para colocar no centro de nossas reflexões e ações a construção de um mundo menos parcial e injusto. Tal discurso institucionalista tem transformado questões fundamentais acerca de arranjos manifestamente injustos, em retórica vazia mesmo que seja reconhecida como retórica ‘bem-intencionada’73. Ao contrário,

71 Ibidem, p. 115

72 Ibidem, p. 114

73 Ibidem, p. 114.

necessitamos da união de esforços e do fortalecimento do consenso acerca da superação de arranjos institucionais manifestamente injustos aos olhos de grande parte da comunidade em questão, ainda que possamos discordar sobremaneira em quaisquer outros assuntos74. Precisamos, nesse sentido, da reavaliação constante das instituições por nós adotadas, para termos a clareza se, afinal de contas, a justiça tem sido devidamente realizada a partir delas.

No que tange à competência tributária e às limitações constitucionais ao poder de tributar, nossa avaliação a partir da realidade empírica demonstra uma falha, um desajuste, uma desproporção entre o volume de riquezas extraídas do seio social e as conquistas sociais que a partir de tais riquezas emergem. Eis a razão pela qual, na esteira de Amartya Sen, compete ao estudioso do Direito vislumbrar quais as “correções de curso” necessárias à realização da justiça tributária no

“mundo da vida”. Ao invés de nos limitarmos ao eterno louvor de fórmulas normativas que, apesar de “perfeitamente justas” idealmente, tem se demonstrado inquestionavelmente incapazes de concretizar os objetivos e diretrizes constitucionais afetos à direitos e garantias fundamentais, cabe-nos considerar os revezes e propor à comunidade uma nova “fórmula institucional”, ou, no que aqui nos interessa, uma nova “norma jurídica”, que esteja apta a fomentar a superação das injustiças percebidas.