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Félix Alcan começou a carreira de editor na Giard et Brière e se associou posteriormente a Germer Baillière, tradicional editor de livros de medicina, ciências e

filosofia17. A entrada de Alcan na editora Baillière representou uma mudança em sua política editorial, que passou a focalizar prioritariamente o público universitário. Assim como a Guillaumin, a editora Alcan não pode ser comparada às dimensões de uma Hachette ou Armand Colin, editores antigos, pertencentes à alta burguesia parisiense e cujo negócio era de longe muito mais lucrativo, dadas as dimensões da edição de manuais escolares. A Alcan, voltada à universidade, era necessariamente um empreendimento relativamente modesto, mais especializado e arriscado.

Na Terceira República, o esforço da Alcan para promover as ciências sociais frutificou rapidamente, já que a editora remava a favor da corrente política republicana e contava com o prestígio de autores já consagrados pela universidade. No campo intelectual, publicar na Alcan era significativamente mais legítimo do que publicar, por exemplo, na Giard et Brière ou na Flammarion, pois a Alcan editava a famosa coleção Bibliothèque de Philosophie Contemporaine bem como as duas revistas mais importantes de ciências sociais, mais especificamente, de psicologia e de sociologia  a Revue Philosophique e L’Année Sociologique. Em 1883, ao se tornar independente, Alcan passou a editar sozinho a Bibliothèque de philosophie contemporaine e a Revue Philosophique, entre outras coleções e revistas do antigo fundo Baillière. Em 1886, começou a editar os Annales de l’École Libre des Sciences Politiques, de Émile Boutmy, fato significativo do equilíbrio que ele pretendia manter entre as ciências sociais e a filosofia. Do mesmo modo, a aquisição do fundo Guillaumin e, com ele, da Bibliothèque des Sciences Morales et Politiques se mostra coerente com essa política. O fato de a editora Guillaumin ter sido adquirida pela Alcan, em 1906, é revelador das afinidades entre a economia, a psicologia e a sociologia, todas situadas no pólo científico das ciências sociais. Por outro lado, uma luta pela hegemonia se estabeleceu dentro da própria editora. Entre as três disciplinas, a psicologia, sem dúvida alguma, era a disciplina hegemônica, principalmente por sua interface com o pólo filosófico, extremamente forte na editora, e o científico, crescentemente favorecido pela universidade. Além disso, a abertura crescente de Alcan a coleções militantes e de atualidades, tal como a de Dick May à época do caso Dreyfus, gerou uma segunda polarização, desta vez entre publicações especializadas e militantes, o que a ala filosófica soube aproveitar em favor do enaltecimento da dimensão “moral” em detrimento da “fria” ciência social.

17 “Doutor em medicina, republicano anticlerical e homem político (ele será vice-presidente do Conselho

Geral do Seine), esse herdeiro da editora Baillière (...) é, com efeito, um intelectual particularmente engajado.” MUCCHIELLI, Laurent, “Aux origines de la psychologie universitaire en France (1870-1900): enjeux intellectuels, contexte politique, réseaux et stratégies d’alliance autour de la Revue Philosophique de Théodule Ribot”, Annals

Alcan teve na editora Baillière o mesmo papel que posteriormente Théodule Ribot e Gabriel Monod tiveram na Alcan: matemático e normalista, ele era portador não apenas de capital intelectual, mas acima de tudo de um grande capital de relações sociais, dentro e fora da universidade. Tinha amigos na grande imprensa como, por exemplo, Yves Guyot  liberal e diretor do importante jornal Le Siècle e quem provavelmente intermediou a compra da Guillaumin , quanto na universidade, tais como Alfred Croiset e Louis Liard18. Ao mesmo tempo, a Sra. Alcan mantinha um salão com o objetivo de reunir os autores da editora em sua casa, muitos deles provenientes da região da Alsácia e Lorena, além de pertencerem a minorias religiosas protestantes e judaicas. Entre os autores presentes constam Alfred Fouillée, Jean-Marie Guyau, Pierre Janet, Lucien Lévy-Bruhl, Henri Bergson, Émile Durkheim, Léon Brunschvicg, Georges Dumas, Théodule Ribot, Jacques Novicow, Eugène de Roberty e Gabriel Tarde. Os mais íntimos eram Yves Guyot, Jean-Louis Lanessam, Alfred Croiset, Louis Liard e Gabriel Monod19.

O fato de Félix Alcan ser matemático e normalista não significa, segundo Mollier, que o perfil dos novos editores fosse, nas primeiras décadas da República, mais acadêmico20. Ao contrário de Fabiani 21, ele afirma que a maior parte dos editores científicos  principalmente Jean-Baptiste Baillière e Victor Masson  pertencia à pequena burguesia e sua afinidade com o meio científico teria se dado pelo aprendizado tardio no próprio emprego no setor editorial22. O espírito comercial ou político, respectivamente, da Masson e da Baillière, segundo Mollier, seria distinto do da Alcan. O “alcanismo”, expressão que reverenciava o espírito universitário da editora, representava uma política editorial voltada à publicação de teses na área de filosofia, o investimento de longo prazo, a aposta em autores desconhecidos, o apoio a revistas científicas especializadas, a criação de coleções inovadoras e o respeito pela decisão do autor23. Por outro lado, a Alcan se profissionalizava e, diferentemente da Guillaumin, tinha que ter um plano de retorno financeiro para poder manter sua visão

18 Quando Lavisse foi eleito para a Académie française, Alcan, Rambaud e Monod organizaram um

banquete em sua homenagem. BNF/NAF – Fundo Lavisse. Contudo, as relações entre eles parecem ter esfriado por ocasião do caso Dreyfus, como veremos.

19 TESNIÈRE, V., Le Quadrige, op. cit., pp. 184 e 130-4.

20 MOLLIER, Jean-Yves, L’Argent et les lettres: histoire du capitalisme d’édition, 1880-1920, Paris, Fayard,

1988.

21 “O setor da edição científica foi geralmente desenvolvido por indivíduos providos de capital escolar, ou

seja, caracterizados por propriedades intelectuais diferentes daquelas da maioria de seus companheiros e de um capital de relações no campo universitário”, FABIANI, Jean-Louis, Les Philosophes de la République, Paris,

Minuit, 1988, p. 103.

22 “(…) o esquema que pretende dar conta da diversidade de trajetórias sociais no campo da edição

universitária não corresponde nem ao percurso de Germer Baillière, nem de seu irmão Jean-Baptiste e ainda menos aos destinos do negociante de vinho Victor Masson”, MOLLIER, Jean-Yves, op. cit., pp. 296-7.

prospectiva e de alto risco. Apesar do grande percentual de universitários que publicaram na Alcan e, em especial, na Bibliothèque de Philosophie Contemporaine, os publicistas também foram aceitos nessa coleção e, freqüentemente, eram os responsáveis pela recuperação das perdas provenientes de autores desconhecidos. A presença dos publicistas Gustave Le Bon, Jean Bourdeau24 e Max Nordau na coleção mais importante da editora, além de uma estratégia

editorial, se deve ao processo inacabado de diferenciação do campo intelectual nos anos 90. Entre essas posições extremas, ou seja, entre os publicistas e os cientistas sociais modernistas, o núcleo duro da Bibliothèque de Philosophie era sustentado pela filosofia universitária, o que significava um compromisso com a tradição intelectual. Mesmo que perfis tão distintos como os de Gustave Le Bon, Gabriel Tarde, Alfred Fouillée, Émile Boutroux e Émile Durkheim fossem editados na mesma coleção, os autores pertencentes às posições moderadas dominavam, o que significa que provavelmente Gabriel Tarde estivesse mais em casa do que Durkheim25  cuja insatisfação com a editora ficou conhecida, a ponto de o autor cogitar editar L’Année na Armand Colin. Os temas da coleção revelam a posição dominante da psicologia e da filosofia em relação à sociologia e à criminologia, uma hierarquia estabelecida na apresentação temática da coleção:

“A psicologia, com suas auxiliares indispensáveis, a anatomia e a fisiologia do sistema nervoso, a patologia mental, a psicologia das raças inferiores e dos animais, as pesquisas experimentais de laboratório; – a lógica; – as teorias gerais fundadas sobre descobertas científicas; – a estética; – as hipóteses metafísicas; – a criminologia e a sociologia; – a história das principais doutrinas filosóficas” 26.

O fato da metafísica e da estética serem mencionadas antes da sociologia e da criminologia é significativo do compromisso da Bibliothèque com os grupos ligados à tradição filosófica e, além disso, do forte vínculo entre a coleção e a Revue Philosophique, que operava como fonte de captação de autores. Segundo Tesnière, desde a década de 80, o catálogo da Bibliothèque mostrava que a psicologia era dominante, seguida pela estética, pela moral e, finalmente, pela criminologia e pela sociologia. Nos anos 90, contudo, teria havido segundo ela uma expansão de títulos na área de criminologia e de sociologia a ponto dessas

24 Jean Bourdeau (1848-1928), publicista no Journal des Débats e colaborador da Revue des Deux Mondes,

esteve ao lado dos que condenaram a ciência universitária no fim do século, em outros termos, dos críticos da sociologia da Sorbonne e simpáticos à abordagem psicossocial de Tarde.

25 Entre os autores presentes no catálogo de 1904, vários são do convívio de Tarde, tais como Alfred

Fouillée, Théodule Ribot, Alfred Espinas, Frédéric Paulhan, Charles Richet, Jacques Novicow, Eugène de Roberty e Scipio Sighele.

matérias se tornarem a principal concorrente da psicologia, deixando para trás todas as outras  ciências, estética, filosofia política, história da filosofia, moral e metafísica27. Se nos anos 90 houve, de fato, um aumento do número de autores de sociologia, tendo em vista que na década anterior a rubrica tinha sido objeto de uma única obra, de Jean-Marie Guyau, por outro lado, o crescimento dos títulos de sociologia não foi tão grande como afirma a autora.28 Se

considerarmos o catálogo da Bibliothèque dos anos 90 e compararmos apenas os títulos

compreendidos pelas rubricas “psicologia/psicológico” e “sociologia/sociológico”, as

publicações da primeira ultrapassam largamente a segunda: aproximadamente 25 autores para a primeira e 13 autores para a segunda, considerando-se as reedições ou traduções de obras estrangeiras29. Se considerarmos, contudo, as ciências sociais no seu conjunto, o número de obras publicadas na área aumenta um pouco, mas o tema continua minoritário na editora. Para se ter uma idéia mais precisa do volume de publicações em ciências sociais, é possível utilizar um critério temático, que reuniria indiferenciadamente temas da sociologia, da criminologia e da psicologia social. Segundo esse critério, a proporção de temas “sociais” na Alcan, em 1904, é de, aproximadamente, 20% da coleção (ou 25 autores em 120)30. Os nomes exprimem uma diversidade enorme de perfis intelectuais: o grupo durkheimiano (Durkheim, Bouglé, Richard, Lévy-Bruhl); o grupo da “psicologia social” (Fouillée, Tarde, Espinas, Le Bon); os criminologistas (Lombroso, Ferri, Sighele, Garofalo, Proal e Tarde); os intelectuais “livres” ou professores estrangeiros (G. De Greef, M. Nordau, E. de Roberty, É. de Laveleye e Th. Ziegler 31) e, finalmente, os autores isolados, tais como Izoulet e Palante, professores, respectivamente, do Collège de France e do ensino secundário. Pode-se compreender, a partir dessa listagem, a posição desconfortável do grupo durkheimiano diante de grupos tão díspares e, na maioria das vezes, diletantes.

27 TESNIÈRE, V., Le Quadrige, op. cit., pp. 105-7.

28 Jean-Marie Guyau (1854-1888) é enteado de Alfred Fouillée e filho de Augustine Tuillerie, Mme.

Fouillée (que assinava G. Bruno nos manuais).

29 Para o termo “psicologia” ou “psicológico”: Théodule Ribot, Charles Richet, Lucien Arreat, Perez, Clay,

Alfred Fouillée, Alfred Binet, Gustave Le Bon, Pierre Janet, Guglielmo Ferrero, Karl Lange, Raoul de la Grasserie, Mario Pilo, Lionel Dauriac, Frédéric Queirat, Frédéric Rauh, Herbert Spencer, Henri Marion, L. Gerard-Varet, Ludovic Dugas, Max Nordau, M. Jaëll, Jules Lachelier, G.-L. Duprat, Henri Marion. Para o termo “sociologia”, “sociológico” ou “ciência social”: Émile Durkheim, Jean-Marie Guyau, Guillaume de Greef, Eugène de Roberty, Gaston Richard, Herbert Spencer, Celestin Bouglé, Eugène d’Eichthal, Gabriel Tarde, Jean Izoulet, Alfred Fouillée, Auguste Comte e Alfred Espinas.

30 Para chegar a esse número, usei um critério bastante genérico: o tema sugerido pelo título. O critério está

sujeito a uma margem de erro grande, principalmente nos casos de obras de psicologia. Para minimizar a margem de erro, consultei também o catálogo de 1912, que apresenta separadamente uma “section sociologique” e que inclui todos os temas “sociais” da coleção.

31 Guillaume J. De Greef (1842-1924), belga, e Eugène de Roberty (1843-1915), economista de origem

russa, são professores da Université Nouvelle de Bruxelles; Max Nordau (1849-1923) é médico e publicista; Émile de Laveleye (1822-1892) é economista belga e Th. Ziegler é professor de filosofia (moral) da Université de Strasbourg.

Sobre a criminologia foram publicadas obras de Lombroso, Garofalo, Ferri, Tarde, Sighele e Proal. O tema, contudo, não era especialidade da Alcan e sim de editoras próximas da área do direito ou da medicina, tais como a Masson, a Storck, a Dalloz e a Giard et Brière. A criminologia na Alcan foi um empreendimento de curto prazo visando explorar um tema da moda, típico da década de 90, e cujo sucesso foi temporário, pois sua participação no catálogo minguou já na primeira década do século XX. A diferença de prestígio entre a psicologia, a sociologia e a criminologia dentro da própria Alcan se reflete sobre sua política editorial e revela a ambigüidade das ciências sociais: de um lado, simplesmente um tema popular de sucesso imediato e, de outro lado, obras de vendagem lenta e que se tornaram clássicas no longo prazo. Nos anos 90, o termo “social” significava em grande medida um problema específico (a “questão social”, ou seja, trabalhista) ou genérico (uma questão coletiva, política) e raramente um domínio científico, visão que o mundo da edição reproduziu. A psicologia social estava marcada por essa ambigüidade e, como todo tema cunhado pelo termo “social”, era menos legítima na ordem do conhecimento científico. Nenhuma obra da Alcan foi intitulada com essa expressão e o próprio editor sugeriu a alteração do nome quando Gabriel Tarde escolheu a expressão “psicologia social” para título de Les lois de l’imitation32. Apenas no final da década, precisamente em 1898, a obra Études de psychologie sociale de Tarde é publicada, mas não na Alcan e sim na Giard et Brière, expressão que, em seguida, o autor substituiu por “interpsicologia” com o intuito de se diferenciar da sociologia durkheimiana. Na apresentação do catálogo da Alcan, de 1904, mencionado anteriormente, a rubrica “psicologia das raças inferiores” é a que mais se aproxima da expressão em questão, mas apenas duas obras corresponderiam a essa expressão nos anos 90: Les lois

psychologiques de l’évolution des peuples (1894) e La psychologie des foules (1895), de

Gustave Le Bon.

Do ponto de vista da recepção, os sucessos de venda da Bibliothèque foram, em primeiro lugar, Théodule Ribot, Herbert Spencer e Schopenhauer, com várias reedições nas décadas seguintes; depois deles, Gustave Le Bon, Lombroso e Max Nordau tiveram sucesso imediato, mas temporário; finalmente, Paul Janet e Alfred Fouillée atingiram um público maior do que o universitário, provavelmente em razão de sua colaboração, respectivamente, no jornal Le Temps e na Revue des Deux Mondes, ambas de grande tiragem. O preço de um livro na coleção Bibliothèque de Philosophie Contemporaine foi fixado em 2,50 fr. na série in-12º e variou de 3,75 fr. a 15 fr. na série in-8º. As edições e reedições foram, normalmente,

32 LUBEK, Ian, “La psychologie sociale perdue de Gabriel Tarde”, Revue Française de Sociologie, vol.

de 1.100 exemplares, e os ganhos do autor, modestos, como era tradição na publicação científica, sendo ele muitas vezes obrigado a subsidiar parte da edição. Essa realidade é bastante distinta da edição literária, em que as tiragens poderiam chegar a 30.000 exemplares num único ano e fazer a vida do autor33. Publicar na Alcan representava, antes de qualquer

coisa, um investimento simbólico. Esse investimento pode ser qualificado pelo estilo da capa da coleção. Numa visão comparativa, principalmente com a coleção de Worms, percebe-se um espírito austero, sem luxo, letras com serifa, mas sem acabamento arredondado34.