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A montagem da fantasia os fracassos da fantasia

Capítulo III Fantasia em Lacan – uma visão imaginárias

3.2 A montagem da fantasia os fracassos da fantasia

Neste ponto da tese apresentaremos as ideias de Silvia Amigo a fim de iniciar a discussão sobre o matema da fantasia. Se partirmos da fantasia em Freud como um devaneio, então, deveremos chegar ao matema lacaniano da fantasia, o fantasma, antes de entrarmos nos aspectos clínicos da constituição do mesmo.

Silvia Amigo, psicanalista, em seu livro A clínica dos fracassos da fantasia (2008), a partir de O Seminário, livro 14, A lógica da fantasia (Lacan inédito), propõe três tempos de montagem da fantasia ligados às três identificações: real, simbólica e imaginária.

Tendo a pintura de Renné Magritte, A condição humana , de 1933, como imagem de referência, Amigo elabora três tempos simultâneos da constituição da fantasia sem os quais não seria possível sua constituição.

O primeiro passo diz respeito ao ato de expulsão do real, “Ausstosung”, como decorrência da primeira identificação real ao Outro real:

“Que um sujeito humano viva o real como posto fora dele, que o campo do real apareça como exterior depende de que tenha feito a primeira identificação à linguagem, o que nos autistas jamais se dá.

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Uma vez que se incorporou àlinguagem o sujeito fez a Ausstosung, tal como Freud a indicava, para deixar de fora o objeto de gozo. Por esse mecanismo o real fica separado do sujeito” (Amigo, 2008, p. 24).

O segundo passo diz respeito à construção de bordas para se ter acesso ao real decorrente da segunda identificação, simbólica ao Outro real, ao traço unário do Outro. Essa segunda identificação permite ao sujeito ter acesso a um real com bordas. Na psicose, esse acesso ao real, devido à não construção dessas bordas, se dá de maneira tsunâmica para o sujeito:

“Às vezes, o sujeito pôs o real fora, mas carece da borda desse furo e acede ao real por um rompimento ou uma rachadura dolorosa. Essa formação da moldura é outro dado essencial da fantasia. Não se trata de que o sujeito tenha possibilidade de aceder ao real, mas de que tenha que poder aceder através de uma moldura legal. Veremos mais tarde que se adquire esta moldura na segunda identificação ao traço unário do Outro, ao traço fálico do Outro” (Amigo, 2008, p. 24-25).

O terceiro passo, que depende desses dois anteriores, diz respeito à identificação imaginária ao Outro real, onde o sujeito terá que pintar, desenhar uma imagem do objeto, tal qual Magritte:

“Finalmente, segundo uma ordem lógica, advém a terceira identificação possível, do imaginário ao Outro real. É imprescindível poder imaginarizar um objeto dentro da moldura. Lacan formaliza explicitamente a necessidade dessa terceira identificação em seus últimos seminários. É imprescindível poder “desenhar”, representar no imaginário um objeto” (Amigo, 2008, p. 25).

Esses passos da constituição psíquica, ou melhor, da formação da fantasia, descritos por Amigo, são simultâneos, de modo que a inexistência do primeiro, por exemplo, impede toda a conclusão da fantasia como uma resposta ao enigma do desejo do Outro, o que acarretaria no autismo, onde a alienação ao desejo do Outro ficaria comprometida.

Por que um desses passos não aconteceria? Por que o real não seria expulso? Por que as bordas, que dão contorno ao real , não se constituiriam? Por que o sujeito, ao passo de constituir as duas primeiras identificações, por alguma crise estocástica, não desenharia um objeto na moldura que bordeja o real?

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Amigo sugere que a ausência ou a falha da primeira identificação constitui o sujeito autista e que o psicótico estaria preso na segunda identificação, sem a possibilidade de constituir uma tela com uma imagem do objeto para fazer barreira frente às investidas siderantes do real:

“Desde já, se fracassa o primeiro tempo, o da primeira expulsão, o sujeito não terá sequer a chance de começar a escrita que lhe proporcione uma fantasia. Se não houver expulsão do real o sujeito jamais vai poder constituir a fantasia. Se o sujeito não pode levar a cabo a segunda identificação ao simbólico do Outro real, então não vai poder emoldurar os furos do corpo nem constituir a moldura escritural da sua fantasia” (Amigo, 2008, p. 26).

“Nessas duas alternativas, exponho minha idéia de que há fracassos definitivos e absolutos da fantasia, por exemplo, no autismo e na psicose. Estes têm por definição a impossibilidade para o sujeito de responder ao desejo do Outro por não poder situá-lo, com o que o fracasso da fantasia é perpétuo, não pela eventualidade de não contar momentaneamente com ele, nem pelo aprisionamento em algum tempo final de sua constituição, mas simplesmente por impossibilidade de constituição dos passos que fundam a fantasia” (Amigo, 2008, p. 26-27).

Autismo e psicose são os grandes problemas da constituição psíquica, pois se apresentam como um fracasso absoluto da fantasia, não havendo possibilidade alguma, dependendo da precocidade do diagnóstico na infância, de reversibilidade.

O Nome-do-Pai vem permitir toda essa construção psíquica, mas não a garante. O Nome-do-Pai torna possíveis as duas primeiras identificações fundantes da estruturação, porém, o encontro com o real pode desconfigurar o objeto numa crise estocástica e, momentaneamente, o sujeito fica sem imagem para compor seu quadro fantasístico.

Portanto, é importante marcar que a fantasia também fracassa na neurose, mas com uma possibilidade muito grande de recuperar seu formato, pois o Nome-do-Pai já se inscreveu definitivamente. As fobias na infância são um belo exemplo disso:

“Vamos trabalhar dois outros casos possíveis de fracasso da fantasia: inicialmente os casos em que um sujeito que pôde constituir uma fantasia por alguma contingência estocástica da vida perde momentaneamente as letras ou a ordem das letras, como se desmantelasse o quadro, perdesse a moldura, caíssem as cortinas, se derrubasse o bastidor, carecendo momentaneamente de figuração do

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objeto. O sujeito terá perdido a disponibilidade de sua fantasia. Nessas condições o sujeito perdeu sua bússola, não pode saber o que deseja, porque, ao não poder acreditar situar o que deseja o Outro, já não sabe o que ele deseja, situação esta que Lacan chama ‘tragédia do desejo’” (Amigo, 2008, p. 26-27).

“Mas também há outros casos em que o sujeito, não sendo psicótico, isto é, não tendo fracassado na inscrição do significante Nome-do-Pai, tendo obtido a incorporação do real ao Outro real e a do simbólico do Outro real, ainda assim não pode terminar, não por uma crise, mas por estrutura, e já não só por contingências, de constituir a fantasia e vive perpetuamente em meio às graves dificuldades desse déficit constitutivo” (Amigo, 2008, p. 27).

O fracasso da fantasia é a não disponibilidade da mesma, seja por não haver nenhuma possibilidade devido à não inscrição da primeira, da segunda ou da terceira identificação, seja no autismo, na psicose ou na neurose. Porém, se fracassam as duas primeiras identificações, fracassará definitivamente a constituição do fantasma, do matema. A terceira identificação, imaginário ao Outro real, uma vez que as outras duas já se inscreveram, quando fracassa, tornando-se indisponível para o sujeito, pode ser reconfigurada no trabalho analítico, como ocorre no caso das fobias. Resta saber se a psicanálise com crianças aposta na reconfiguração das outras duas.

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