• Nenhum resultado encontrado

A nova expropriação: dessa vez, do Estado

No documento Globalização: As consequências humanas (páginas 60-63)

Com efeito, não se espera mais que os novos Estados, exatamente como os mais antigos na sua condição atual, exerçam muitas das funções outrora consideradas a razão de ser das burocracias da nação-estado. A função mais notória abandonada pelo Estado ortodoxo ou arrancada de suas mãos foi a manutenção do “equilíbrio dinâmico” que Castoriadis descreve como uma

“igualdade aproximada entre os ritmos de crescimento do consumo e de elevação da produtividade” — tarefa que levou os Estados soberanos em diversas épocas a impor intermitentes proibições de importação ou exportação, barreiras alfandegárias ou estimulação estatal keynesiana da demanda interna.9 Qualquer controle desse “equilíbrio dinâmico” está hoje além do alcance e mesmo das ambições da imensa maioria dos Estados de outro modo soberanos (estritamente no sentido de policiamento da ordem).

A própria distinção entre o mercado interno e o global ou, mais genericamente, entre o “interior” e o “exterior” do Estado, é extremamente difícil de manter senão no sentido mais estreito, de “policiamento do território e da população”.

O tripé da soberania foi abalado nos três pés. Claro, a perna econômica foi a mais afetada. Já incapazes de se manter se guiados apenas pelos interesses politicamente articulados da população do reino político soberano, as nações-estados tornam-se cada vez mais executoras e plenipotenciárias de forças que não esperam controlar politicamente. No veredito incisivo do radical analista político latino-americano, graças à nova

“porosidade” de todas as economias supostamente “nacionais” e à condição efêmera, ilusória e extraterritorial do espaço em que operam, os mercados financeiros globais “impõem suas leis e preceitos ao planeta. A

‘globalização’ nada mais é que a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida.” Os Estados não têm recursos suficientes nem

liberdade de manobra para suportar a pressão — pela simples razão de que

“alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso”:

No cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as megaempresas …

Os novos senhores do mundo não têm necessidade de governar diretamente. Os governos nacionais são encarregados da tarefa de administrar os negócios em nome deles.10

Devido à total e inexorável disseminação das regras de livre mercado e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a “economia” é progressivamente isentada do controle político; com efeito, o significado primordial do termo “economia” é o de “área não política”. O que quer que restou da política, espera-se, deve ser tratado pelo Estado, como nos bons velhos tempos — mas o Estado não deve tocar em coisa alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa punição dos mercados mundiais. A impotência econômica do Estado seria então mais uma vez flagrantemente exposta para horror da equipe governante. De acordo com os cálculos de René Passat,11 as transações financeiras intercambiais puramente especulativas alcançam um volume diário de US$ 1,3 bilhão — cinquenta vezes mais que o volume de trocas comerciais e quase o mesmo que a soma das reservas de todos os

“bancos centrais” do mundo, que é de US$ 1,5 bilhão. “Nenhum Estado”, conclui Passat, “pode portanto resistir por mais de alguns dias às pressões especulativas dos ‘mercados’.”

A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um “orçamento equilibrado”, policiando e controlando as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da população face às consequências mais sinistras da anarquia de mercado. Como assinalou recentemente Jean-Paul Fitoussi,

Tal programa, no entanto, não pode ser executado a não ser que a economia, de uma maneira ou de outra, seja retirada do campo da política. Certamente um Ministério da Fazenda continua sendo um mal necessário, mas idealmente se poderia ter um Ministério dos Assuntos Econômicos (isto é, que governasse a economia). Em outras palavras, o governo deveria ser despojado de sua responsabilidade pela política macroeconômica.12

Ao contrário de opiniões sempre repetidas (embora não mais verdadeiras por isso), não há contradição lógica nem pragmática entre a nova extraterritorialidade do capital (absoluta no caso das finanças, quase total no caso do comércio e bem avançada no da produção industrial) e a nova proliferação de Estados soberanos frágeis e impotentes. A corrida para criar novas e cada vez mais fracas entidades territoriais “politicamente independentes” não vai contra a natureza das tendências econômicas globalizantes; a fragmentação política não é um “trava na roda” da

“sociedade mundial” emergente, unida pela livre circulação de informação.

Ao contrário, parece haver uma íntima afinidade, mútuo condicionamento e reforço entre a “globalização” de todos os aspectos da economia e a renovada ênfase do “princípio territorial”.

Por sua independência de movimento e irrestrita liberdade para perseguir seus objetivos, as finanças, comércio e indústria de informação globais dependem da fragmentação política — do morcellement [retalhamento] — do cenário mundial. Pode-se dizer que todos têm interesses adquiridos nos “Estados fracos” — isto é, nos Estados que são fracos mas mesmo assim continuam sendo Estados. Deliberada ou subconscientemente, esses interEstados, instituições supralocais que foram trazidas à luz e têm permissão de agir com o consentimento do capital mundial, exercem pressões coordenadas sobre todos os Estados membros ou independentes para sistematicamente destruírem tudo que possa deter ou limitar o livre movimento de capitais e restringir a liberdade de mercado.

Abrir de par em par os portões e abandonar qualquer ideia de política econômica autônoma é a condição preliminar, docilmente obedecida, para receber assistência econômica dos bancos mundiais e fundos monetários internacionais. Estados fracos são precisamente o que a Nova Ordem Mundial, com muita frequência encarada com suspeita como uma nova desordem mundial, precisa para sustentar-se e reproduzir-se. Quase-Estados, Estados fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não precisam ser temidos como freios efetivos à liberdade das empresas globais.

A separação entre economia e política e a proteção da primeira contra a intervenção regulatória da segunda, o que resulta na perda de poder da política como um agente efetivo, auguram muito mais que uma simples mudança na distribuição do poder social. Como assinala Claus Offe, o

agente político como tal — “a capacidade de fazer opções coletivamente impositivas e executá-las” — tornou-se problemático. “Em vez de perguntar o que deve ser feito, devemos com mais proveito investigar se há alguém capaz de fazer o que deve ser feito.” Uma vez que “as fronteiras se tornaram permeáveis” (de maneira altamente seletiva, com certeza), “as soberanias tornaram-se nominais, o poder anônimo e o lugar, vazios”.

Ainda estamos bem longe do destino final; o processo continua, aparentemente de forma inexorável. “O padrão dominante pode ser descrito como ‘afrouxamento dos freios’: desregulamentação, liberalização, flexibilidade, fluidez crescente e facilitação das transações nos mercados financeiros imobiliário e trabalhista, alívio da carga tributária etc.”13 Quanto mais consistente a aplicação desse padrão, menos poder é retido nas mãos do agente que o promove e menos ele poderá, por ter cada vez menos recursos, evitar aplicá-lo caso o deseje ou seja pressionado a fazê-lo.

Uma das consequências mais fundamentais da nova liberdade global de movimento é que está cada vez mais difícil, talvez até mesmo impossível, reunir questões sociais numa efetiva ação coletiva.

No documento Globalização: As consequências humanas (páginas 60-63)