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A obra – alguns traços

No documento Como ele se fez por si mesmo: Jamil Snege (páginas 53-60)

I. QUEM TEM MEDO DE JAMIL SNEGE?

13. A (in)visibilidade do escritor e de sua obra

1.4. A obra – alguns traços

A obra de Snege, tomada em conjunto, reflete justamente seu esforço em defesa

da liberdade de criação. O escritor, em seus onze livros publicados, visitou os mais

diversos gêneros: novela, conto, romance, ensaio, drama, crônica e poesia. E, mesmo no

interior da estrutura de uma de suas obras (o romance autobiográfico, por exemplo) o

autor empregava construções típicas de outros gêneros: a prosa como base formal para a

poesia; o verso e as marcações do diálogo teatral no romance, e assim por diante.

Segundo a opinião de Snege, que afirmava não conseguir ter uma voz única e não se

preocupar se estava repetindo uma experiência de texto ou usando uma nova dicção, a

literatura mereceria uma abordagem múltipla exatamente para que suas várias facetas

pudessem ser exploradas. Além disso, o cenário de criação era propício a tal

multiplicidade formal, pois, em se tratando de obra literária surgida após o que

consensualmente denominamos Modernismo, há que se ter em mente a questão da

fração e desfiguração dos gêneros literários. Conforme assinala José Castello a esse

respeito: “As fronteiras entre os gêneros estão rachadas e, em vez de cicatrizá-las ou

fechá-las com próteses, como fazem alguns escritores mais crédulos, o caminho que se

abre, em vez disso, é o do contágio, o da contaminação. O corpo da literatura perdeu o

controle de suas fronteiras – como uma pele que se rasga – e entrou em estado de

infecção.”79

A linguagem é o elemento que une e confere homogeneidade aos seus

estruturalmente diversos livros – concisão ou brevidade irônica talvez sejam expressões

79

CASTELLO, J. “O caminho dos escritores é feito de escombros, balizas envergadas e destroços”. In: Rascunho. Ano 4, n. 41. Curitiba, setembro de 2003. p. 19.

adequadas para caracterizar a escritura de Snege. Seus textos são curtos, os capítulos

(quando há divisão) são curtos, suas frases são curtas – às vezes, formadas por duas ou

três palavras. Essa economia narrativa, como declarou o próprio escritor, foi herdada de

sua prática jornalística e do trabalho com o texto publicitário.

Clareza, objetividade, humor e ironia são outras características freqüentemente

atribuídas aos textos de Snege. O texto curto, além de recurso formal adotado, era uma

preferência do autor, que afirmava sentir-se angustiado diante da experiência com textos

mais longos, incomodando-se com a ansiedade de ter que voltar ao mesmo tema de

tempos em tempos.

No entanto, a maior qualidade do texto de Jamil Snege parece resultar do

tratamento com a linguagem anteriormente referido. O autor foi sempre muito

extremoso na escolha do léxico e das referências incorporadas em seus textos. É dessa

forma que, na prosa de Snege, a descrição detalhada de alguma cena do cotidiano, às

vezes, deixa margem para a metáfora-síntese, para a construção de uma imagem poética

de rara sensibilidade. Conforme comentou Wilson Bueno à época do lançamento da

novela Viver é prejudicial à saúde:

(...) temos de novo, fino privilégio, o prazer de degustar, página por página, mais um irrepreensível inédito de Jamil Snege, escritor a se situar, fácil, entre os poetas que, disfarçados de prosadores, aspiram mais que “dizer” uma história, contá-la, letra a letra, com as armas do coração. E aí está o seu pulo do gato: ultrapassar o verbo, transcender o parágrafo que se quis cena explícita para a síncope epifânica da melhor poesia.80

Os encontros e desencontros da vida humana, os acertos e desacertos que

marcam a trajetória de cada sujeito, o incongruente e o inevitável no destino das

80

BUENO, W. “A vida não tem fim”. [Publicado originalmente no jornal A notícia, de 23 de julho de 1998, e acessado no seguinte endereço: http://www.an.com.br/1998/jul/23/0cro.htm.]

personagens, enfim, a análise das contradições, dos limites e da possibilidade de

transcendência do ser é feita, no obra de Snege, a partir de uma perspectiva narrativa

que permite participarem do enredo a descrição objetiva, o diálogo informal e o

comentário irreverente ao lado do olhar do poeta que, na confusão do cotidiano, procura

extrair beleza para construir e distribuir por sua prosa imagens sensíveis e imprevistas

como essas: “Só sei que não pertenço a esse tempo, que cheguei, simultaneamente, cedo

e tarde demais, que talvez nunca devesse ter voltado”81, ou: “Temos vivido assim, numa

dieta de distâncias e sorrisos, sem palavras, pois tudo nos dizemos com os olhos”82.

Ainda assim, também encontramos em suas narrativas a observação fria que

procura revelar aspectos sombrios da vida e do ser, que arranca o leitor do devaneio e

devolve-o à realidade.

Não obstante o leitor seja constantemente convidado a participar da construção

do texto (à maneira de Machado, Snege, muitas vezes, lança mão do elemento retórico

de apelo ao destinatário, atribuindo-lhe o papel de co-autor de significados) percebe-se

que o autor, em sua intencionalidade, mantém seguro o comando do enredo. Por isso,

diante da obra de Jamil Snege, uma tentativa de leitura que procure seguir a tendência

teórica que vê o escritor como entidade abstrata, estabelecendo uma distinção rígida

entre a pessoa do autor e a figura do narrador, encontrará sérias dificuldades. É um

constante debruçar-se sobre a memória, um referir-se a acontecimentos vividos que

anima a ficção de Snege. Mas sua escritura escapa ao confessionalismo, pois há uma

decisiva re-elaboração simbólica da experiência transformada em linguagem literária.

Quanto às crônicas de Jamil Snege, o tratamento lírico de fragmentos da

81

SNEGE, J. “Sob um céu de tempestade”. In: Os verões da grande leitoa branca. Curitiba: Travessa dos Editores, 2000. p. 16-17.

82

realidade que servem de assunto para seus textos leva-nos a pensar no escritor como um

poeta disfarçado de cronista (o que talvez permita aproximá-lo do Drummond

prosador). Nesse gênero está concentrada toda a habilidade do escritor no emprego de

recursos discursivos variados que transformam a linguagem do cotidiano, a conversa

informal em observações poéticas elaboradas sobre o inusitado das situações que

permeiam o viver diário.

O humor serve como uma espécie de refletor que ilumina recantos obscuros

captados por um olhar que trespassa a aparência do real em busca de sentidos

profundos. Entre outros temas, estão presentes nas crônicas de Snege: o lado patético e

animalesco do comportamento humano em busca de justificação para a existência; a

banalização dos gostos e hábitos do homem contemporâneo; a análise da fragilidade dos

sentimentos e das relações amorosas; a crítica ao sistema de produção cultural; as

neuroses da sociedade pós-moderna e o culto exagerado ao medo; os conflitos surgidos

das diferenças entre os sexos, da convivência homem x mulher (no caso, pode-se ler

“versus” mesmo); a dissolução da individualidade, a negação do eu perante a

irracionalidade e ao delírio coletivo; a percepção da passagem do tempo e seus efeitos

sobre a consciência individual; as contradições do cenário político; a mesquinhez

irmanada ao impulso consumista desenfreado; a reflexão sobre o ato solitário de

escrever. Outro tema de grande destaque em suas crônicas refere-se à reflexão sobre as

contradições do cenário urbano.

Na maior parte dos livros de Snege, Curitiba destaca-se como o principal cenário

onde se movimentam as personagens. Apesar de o autor ter declarado não reconhecer

uma presença muito específica daquela cidade em sua obra, a capital paranaense

percepção”, nas palavras do próprio Snege83) serve como pano de fundo ou tema de

alguns contos (Em busca de Rostropovich); romances/novelas (Tempo sujo, Como eu se

fiz por si mesmo, Viver é prejudicial à saúde) e de crônicas, nas quais são explorados os

encantos e desencantos da cidade em seu ceder-negar espaço para a realização

individual e a conseqüente condenação ao auto-exílio (Como tornar-se invisível em

Curitiba, Canto de amor e desamor a Curitiba, A cidade de nossos exílios, entre

outras). A imagem de Curitiba captada pelo olhar irônico do autor funciona como uma

espécie de desconstrução do discurso oficial sobre essa cidade, discurso que se

acostumou (e nos acostumou, talvez) a vê-la como a capital dos valores positivos

diversos. Entretanto, isso que pode sugerir um retrato desconsolador de Curitiba reflete,

na verdade, a tentativa de Snege de desmistificar ou revelar o relativismo de opiniões

cristalizadas que esquecem ou ignoram aspectos significativos da realidade de quem

vive o dia-a-dia da cidade.

A irreverência do olhar do cronista também se assenta sobre uma certa dose de

non-sense e surrealismo, com jogos de zoomorfização e antropomorfização. O disfarce

intelectual e o apego aos mitos são revelados como faces do desejo de anular a natureza

animalesca do homem, cujos instintos volta e meia manifestam-se, abalando o mundo

das convenções. Na maioria das vezes, o narrador participa do mundo observado,

dotando seu relato de maior verossimilhança e, quando se ausenta, adquire maior

capacidade de descrição dos detalhes observados.

A crônica é, ainda, o espaço onde o escritor permite sua auto-exposição (como

ficou dito anteriormente: a própria doença que o vitimou passou a figurar como tema de

seus textos), tanto em termos de sua personalidade quanto em termos do papel social

83

In: SABBAG, R. “À espera do mar redondo” (entrevista). Revista CULT. Ano VI. n. 62, outubro de 2002. p. 10.

que detinha, não poupando a si mesmo da análise nem um pouco alentadora. Afinal,

segundo afirmação de Snege, a literatura não deveria ser feita para servir como

“sacerdócio de redenção da humanidade”. Apesar dessa visão particular do autor, devo

concordar com a opinião de Reynaldo Damazio ao sustentar que: “O leitor que descobre

os textos de Snege certamente será redimido da escuridão e da mesmice”84.

Presente em seus textos, Jamil Snege fez de sua busca pessoal, de sua

interpretação do real através da arte literária, a busca de todos os que marcam sua

trajetória no mundo por aquela tentativa de transcender o real através da imaginação. A

obra literária de Snege está bem próxima da definição de Anatol Rosenfeld para a

criação ficcional: “A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem

pode viver e contemplar (...) a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente

a si mesmo”.85

Assim, ao modo particular como Sainte-Beuve via Moliére entre os escritores do

século de Luís XV - forçando um pouco os termos -, no quadro da literatura paranaense

sinto-me à vontade para situar Jamil Snege como um desses “exemplares inesperados

com os quais nunca deixamos de nos admirar”.86

Compagnon ressalta, em diversos pontos de sua obra, que a teoria da literatura é

uma escola de relativismos, não de pluralismos, e que devemos sempre fazer nossas

escolhas. Uma de minhas escolhas é pela paixão, pela leitura da literatura como um dos

últimos prazeres solitários que nos resta - exercício de paixão (nos dizeres de Harold

Bloom87).

84

DAMAZIO, R. “Realismo absurdo”. Revista Cult. Ano IV, n. 46. maio de 2001. p. 35.

85

ROSENFELD, A. “Literatura e personagem”. In: CANDIDO, A. (et. al.) A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 48.

86

Cf. COMPAGNON, O demônio da teoria..., p. 238.

87

Se o mistério permanece, a busca por um sentido é o que parece justificar a

No documento Como ele se fez por si mesmo: Jamil Snege (páginas 53-60)

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