I. QUEM TEM MEDO DE JAMIL SNEGE?
13. A (in)visibilidade do escritor e de sua obra
1.4. A obra – alguns traços
A obra de Snege, tomada em conjunto, reflete justamente seu esforço em defesa
da liberdade de criação. O escritor, em seus onze livros publicados, visitou os mais
diversos gêneros: novela, conto, romance, ensaio, drama, crônica e poesia. E, mesmo no
interior da estrutura de uma de suas obras (o romance autobiográfico, por exemplo) o
autor empregava construções típicas de outros gêneros: a prosa como base formal para a
poesia; o verso e as marcações do diálogo teatral no romance, e assim por diante.
Segundo a opinião de Snege, que afirmava não conseguir ter uma voz única e não se
preocupar se estava repetindo uma experiência de texto ou usando uma nova dicção, a
literatura mereceria uma abordagem múltipla exatamente para que suas várias facetas
pudessem ser exploradas. Além disso, o cenário de criação era propício a tal
multiplicidade formal, pois, em se tratando de obra literária surgida após o que
consensualmente denominamos Modernismo, há que se ter em mente a questão da
fração e desfiguração dos gêneros literários. Conforme assinala José Castello a esse
respeito: “As fronteiras entre os gêneros estão rachadas e, em vez de cicatrizá-las ou
fechá-las com próteses, como fazem alguns escritores mais crédulos, o caminho que se
abre, em vez disso, é o do contágio, o da contaminação. O corpo da literatura perdeu o
controle de suas fronteiras – como uma pele que se rasga – e entrou em estado de
infecção.”79
A linguagem é o elemento que une e confere homogeneidade aos seus
estruturalmente diversos livros – concisão ou brevidade irônica talvez sejam expressões
79
CASTELLO, J. “O caminho dos escritores é feito de escombros, balizas envergadas e destroços”. In: Rascunho. Ano 4, n. 41. Curitiba, setembro de 2003. p. 19.
adequadas para caracterizar a escritura de Snege. Seus textos são curtos, os capítulos
(quando há divisão) são curtos, suas frases são curtas – às vezes, formadas por duas ou
três palavras. Essa economia narrativa, como declarou o próprio escritor, foi herdada de
sua prática jornalística e do trabalho com o texto publicitário.
Clareza, objetividade, humor e ironia são outras características freqüentemente
atribuídas aos textos de Snege. O texto curto, além de recurso formal adotado, era uma
preferência do autor, que afirmava sentir-se angustiado diante da experiência com textos
mais longos, incomodando-se com a ansiedade de ter que voltar ao mesmo tema de
tempos em tempos.
No entanto, a maior qualidade do texto de Jamil Snege parece resultar do
tratamento com a linguagem anteriormente referido. O autor foi sempre muito
extremoso na escolha do léxico e das referências incorporadas em seus textos. É dessa
forma que, na prosa de Snege, a descrição detalhada de alguma cena do cotidiano, às
vezes, deixa margem para a metáfora-síntese, para a construção de uma imagem poética
de rara sensibilidade. Conforme comentou Wilson Bueno à época do lançamento da
novela Viver é prejudicial à saúde:
(...) temos de novo, fino privilégio, o prazer de degustar, página por página, mais um irrepreensível inédito de Jamil Snege, escritor a se situar, fácil, entre os poetas que, disfarçados de prosadores, aspiram mais que “dizer” uma história, contá-la, letra a letra, com as armas do coração. E aí está o seu pulo do gato: ultrapassar o verbo, transcender o parágrafo que se quis cena explícita para a síncope epifânica da melhor poesia.80
Os encontros e desencontros da vida humana, os acertos e desacertos que
marcam a trajetória de cada sujeito, o incongruente e o inevitável no destino das
80
BUENO, W. “A vida não tem fim”. [Publicado originalmente no jornal A notícia, de 23 de julho de 1998, e acessado no seguinte endereço: http://www.an.com.br/1998/jul/23/0cro.htm.]
personagens, enfim, a análise das contradições, dos limites e da possibilidade de
transcendência do ser é feita, no obra de Snege, a partir de uma perspectiva narrativa
que permite participarem do enredo a descrição objetiva, o diálogo informal e o
comentário irreverente ao lado do olhar do poeta que, na confusão do cotidiano, procura
extrair beleza para construir e distribuir por sua prosa imagens sensíveis e imprevistas
como essas: “Só sei que não pertenço a esse tempo, que cheguei, simultaneamente, cedo
e tarde demais, que talvez nunca devesse ter voltado”81, ou: “Temos vivido assim, numa
dieta de distâncias e sorrisos, sem palavras, pois tudo nos dizemos com os olhos”82.
Ainda assim, também encontramos em suas narrativas a observação fria que
procura revelar aspectos sombrios da vida e do ser, que arranca o leitor do devaneio e
devolve-o à realidade.
Não obstante o leitor seja constantemente convidado a participar da construção
do texto (à maneira de Machado, Snege, muitas vezes, lança mão do elemento retórico
de apelo ao destinatário, atribuindo-lhe o papel de co-autor de significados) percebe-se
que o autor, em sua intencionalidade, mantém seguro o comando do enredo. Por isso,
diante da obra de Jamil Snege, uma tentativa de leitura que procure seguir a tendência
teórica que vê o escritor como entidade abstrata, estabelecendo uma distinção rígida
entre a pessoa do autor e a figura do narrador, encontrará sérias dificuldades. É um
constante debruçar-se sobre a memória, um referir-se a acontecimentos vividos que
anima a ficção de Snege. Mas sua escritura escapa ao confessionalismo, pois há uma
decisiva re-elaboração simbólica da experiência transformada em linguagem literária.
Quanto às crônicas de Jamil Snege, o tratamento lírico de fragmentos da
81
SNEGE, J. “Sob um céu de tempestade”. In: Os verões da grande leitoa branca. Curitiba: Travessa dos Editores, 2000. p. 16-17.
82
realidade que servem de assunto para seus textos leva-nos a pensar no escritor como um
poeta disfarçado de cronista (o que talvez permita aproximá-lo do Drummond
prosador). Nesse gênero está concentrada toda a habilidade do escritor no emprego de
recursos discursivos variados que transformam a linguagem do cotidiano, a conversa
informal em observações poéticas elaboradas sobre o inusitado das situações que
permeiam o viver diário.
O humor serve como uma espécie de refletor que ilumina recantos obscuros
captados por um olhar que trespassa a aparência do real em busca de sentidos
profundos. Entre outros temas, estão presentes nas crônicas de Snege: o lado patético e
animalesco do comportamento humano em busca de justificação para a existência; a
banalização dos gostos e hábitos do homem contemporâneo; a análise da fragilidade dos
sentimentos e das relações amorosas; a crítica ao sistema de produção cultural; as
neuroses da sociedade pós-moderna e o culto exagerado ao medo; os conflitos surgidos
das diferenças entre os sexos, da convivência homem x mulher (no caso, pode-se ler
“versus” mesmo); a dissolução da individualidade, a negação do eu perante a
irracionalidade e ao delírio coletivo; a percepção da passagem do tempo e seus efeitos
sobre a consciência individual; as contradições do cenário político; a mesquinhez
irmanada ao impulso consumista desenfreado; a reflexão sobre o ato solitário de
escrever. Outro tema de grande destaque em suas crônicas refere-se à reflexão sobre as
contradições do cenário urbano.
Na maior parte dos livros de Snege, Curitiba destaca-se como o principal cenário
onde se movimentam as personagens. Apesar de o autor ter declarado não reconhecer
uma presença muito específica daquela cidade em sua obra, a capital paranaense
percepção”, nas palavras do próprio Snege83) serve como pano de fundo ou tema de
alguns contos (Em busca de Rostropovich); romances/novelas (Tempo sujo, Como eu se
fiz por si mesmo, Viver é prejudicial à saúde) e de crônicas, nas quais são explorados os
encantos e desencantos da cidade em seu ceder-negar espaço para a realização
individual e a conseqüente condenação ao auto-exílio (Como tornar-se invisível em
Curitiba, Canto de amor e desamor a Curitiba, A cidade de nossos exílios, entre
outras). A imagem de Curitiba captada pelo olhar irônico do autor funciona como uma
espécie de desconstrução do discurso oficial sobre essa cidade, discurso que se
acostumou (e nos acostumou, talvez) a vê-la como a capital dos valores positivos
diversos. Entretanto, isso que pode sugerir um retrato desconsolador de Curitiba reflete,
na verdade, a tentativa de Snege de desmistificar ou revelar o relativismo de opiniões
cristalizadas que esquecem ou ignoram aspectos significativos da realidade de quem
vive o dia-a-dia da cidade.
A irreverência do olhar do cronista também se assenta sobre uma certa dose de
non-sense e surrealismo, com jogos de zoomorfização e antropomorfização. O disfarce
intelectual e o apego aos mitos são revelados como faces do desejo de anular a natureza
animalesca do homem, cujos instintos volta e meia manifestam-se, abalando o mundo
das convenções. Na maioria das vezes, o narrador participa do mundo observado,
dotando seu relato de maior verossimilhança e, quando se ausenta, adquire maior
capacidade de descrição dos detalhes observados.
A crônica é, ainda, o espaço onde o escritor permite sua auto-exposição (como
ficou dito anteriormente: a própria doença que o vitimou passou a figurar como tema de
seus textos), tanto em termos de sua personalidade quanto em termos do papel social
83
In: SABBAG, R. “À espera do mar redondo” (entrevista). Revista CULT. Ano VI. n. 62, outubro de 2002. p. 10.
que detinha, não poupando a si mesmo da análise nem um pouco alentadora. Afinal,
segundo afirmação de Snege, a literatura não deveria ser feita para servir como
“sacerdócio de redenção da humanidade”. Apesar dessa visão particular do autor, devo
concordar com a opinião de Reynaldo Damazio ao sustentar que: “O leitor que descobre
os textos de Snege certamente será redimido da escuridão e da mesmice”84.
Presente em seus textos, Jamil Snege fez de sua busca pessoal, de sua
interpretação do real através da arte literária, a busca de todos os que marcam sua
trajetória no mundo por aquela tentativa de transcender o real através da imaginação. A
obra literária de Snege está bem próxima da definição de Anatol Rosenfeld para a
criação ficcional: “A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem
pode viver e contemplar (...) a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente
a si mesmo”.85
Assim, ao modo particular como Sainte-Beuve via Moliére entre os escritores do
século de Luís XV - forçando um pouco os termos -, no quadro da literatura paranaense
sinto-me à vontade para situar Jamil Snege como um desses “exemplares inesperados
com os quais nunca deixamos de nos admirar”.86
Compagnon ressalta, em diversos pontos de sua obra, que a teoria da literatura é
uma escola de relativismos, não de pluralismos, e que devemos sempre fazer nossas
escolhas. Uma de minhas escolhas é pela paixão, pela leitura da literatura como um dos
últimos prazeres solitários que nos resta - exercício de paixão (nos dizeres de Harold
Bloom87).
84
DAMAZIO, R. “Realismo absurdo”. Revista Cult. Ano IV, n. 46. maio de 2001. p. 35.
85
ROSENFELD, A. “Literatura e personagem”. In: CANDIDO, A. (et. al.) A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 48.
86
Cf. COMPAGNON, O demônio da teoria..., p. 238.
87
Se o mistério permanece, a busca por um sentido é o que parece justificar a