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2 POTENCIALIZAÇÃO DO SUJEITO E DIMINUIÇÃO DE SUA

2.2 Considerações sobre a pragmática linguística intersubjetiva de Habermas

2.2.2 A opção de Habermas pelo naturalismo fraco

Para iniciar nossa exposição cabe-nos apresentar a distinção entre o naturalismo epistemológico e o naturalismo ontológico. Este pode ser definido como uma visão de mundo em que se sustenta somente a existência de entidades naturais, ou seja, não há nada que extrapole os domínios, princípios e relações do mundo físico estudado pelas ciências naturais. Aquele, entretanto, é definido como uma postura epistemológica que nega haver conhecimentos do tipo sintético a priori, sustentando a tese de que não é possível haver conhecimento substancial do mundo sem o auxílio da experiência deste mundo 44.

Em linhas gerais, o naturalismo em suas duas vertentes pode ser entendido como uma postura que não admite a existência de nada que seja exterior à natureza. Com efeito, abandonando a meta de uma filosofia primeira, tal postura vê a ciência natural como a guia primária de uma investigação da realidade cuja correção e falibilidade podem ser perfeitamente assumidas. Desta maneira, o naturalismo não seria um legislador supra- científico, pois estaria assimilado a uma psicologia empírica que não rejeita a epistemologia daí decorrente, mas, somente, aquela advinda de uma postura metafísica já rejeitada 45. Porém, o naturalismo que Habermas pretende empreender aqui não pode ser identificado de imediato com a ideia de naturalismo apresentada, porque ele atribui à sua proposta naturalista o adjetivo de fraca 46.

O naturalismo de Quine pode ser identificado como a postura forte, cujas características se ancoram na necessidade de remeter o conhecimento aos procedimentos das ciências da natureza, cujo modelo-padrão na modernidade é a física de tal modo que qualquer ciência se tem que pautar por este modelo. A estratégia pela qual Habermas opta é lançar mão de um naturalismo fraco entre o naturalismo quineano e o idealismo histórico de Heidegger, coadunado, obviamente com a perspectiva pragmática do mundo da vida (Cf. VJ, p. 31).

Por um lado, o naturalismo puro de Quine fracassa por não possibilitar aos sujeitos capazes de fala e de ação o reconhecimento mútuo e, assim sendo, estes não poderiam se

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Cf. KORNBLITH, Hilary. Naturalismo Metafísico e Epistemológico. In. Fátima R. Évora e Paulo C. Abrantes (Eds). Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas: UNICAMP, 1998. Série 3, v. 8, p. 147- 169, jul-dez. Aqui, p. 149.

45

Cf. QUINE, Willarm van Orman. Theories and Things. Cambridge (MA), London: Harvard, 1981. p. 72.

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Um bom motivo para Habermas proceder assim é porque o naturalismo por ele sustentado e formulado não atrai o problema da falácia naturalista, uma vez, que não reduz toda dimensão humana ao puro dado empírico da ciência. O naturalismo estrito ou puro deve confrontar-se com o problema que surge ao alegarmos que há, na existência de uma classe de afirmações descritivas sobre fatos das ciências físicas, conclusões sobre valores e normas. Cf. FALÁCIA NATURALISTA. In. BRANQUINHO, João; MURCHO, Desidério; GOMES, Nelson G. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 333-335.

reconhecer na prática cientificista à qual seus conhecimentos estariam alienados radicalmente; conforme salienta o próprio Habermas “Sujeitos capazes de falar e agir, enredados em práticas comunicativas, não podem evitar, em seus pensamentos e ações, regular-se por normas e deixar-se afetar por razões. Eles não podem se reconhecer sob a descrição objetivante de Quine” (VJ, p. 32). Para Habermas, é falsa a alternativa de Quine de reduzir todas as estruturas teóricas das ciências às estruturas teóricas das ciências da natureza 47. Por outro lado, o idealismo de Heidegger também fracassa, pois deixa os sujeitos capazes de fala e de ação à mercê das possibilidades da história do Ser, ou seja, o que está determinado no Ser determinará os sujeitos; Habermas diz que Heidegger “localiza os ‘eventos’ das interpretações epocais do mundo no nível transcendental de uma instauração a priori do sentido, do qual os sujeitos não se podem subtrair. Os sujeitos capazes de falar e agir estão entregues à história do Ser como a uma fatalidade” (VJ, p. 33). Segundo Candioti, Habermas se preocupa com “as consequências não desejadas de um transcendentalismo atenuado que considera as condições de possibilidade como temporais e contingentes, com o consequente risco de desembocar em um relativismo ou um certo idealismo linguístico” 48. São os problemas elencados que o levam à elaboração do seu naturalismo fraco, cuja mínima caracterização ele descreve argumentando que

Essa concepção apoia-se numa única suposição meta-teórica: a de que nossos processos de aprendizado – possíveis na moldura das formas de vida socioculturais – de certo modo apenas dão continuidade aos “processos de aprendizagem evolucionários” prévios, os quais, por seu turno, produziram as estruturas de nossas formas de vida. Pois, então, as estruturas que possibilitam transcendentalmente os processos de aprendizado do tipo em que nos envolvemos qualificam-se, por seu turno, como o resultado de processos de aprendizado histórico-naturais menos complexos – e com isso

ganham, elas mesmas, um conteúdo cognitivo. No entanto, a continuação

dos processos de aprendizagem num nível superior pode ser entendida apenas no sentido de um naturalismo “fraco”, com o qual não se pode vincular nenhuma pretensão reducionista (VJ, p. 36).

Satisfeita a necessidade da destranscendentalização das condições de possibilidade do conhecimento e realizada a assunção de que, agora, as estruturas cognitivas do mundo da vida surgem em seu lugar como locus originarius de eventos naturais que tornam factíveis os processos de aprendizagem no interior de formas de vida socioculturais, evidencia-se, por

47 Os que se opõem ao radicalismo dos naturalistas, como é o caso de Habermas, sustentam que a Filosofia tem

uma dimensão normativa, que sob o risco de autorreferência não pode ser estabelecida somente a posteriori. Cf. KORNBLITH, Hilary. Naturalismo Metafísico e Epistemológico. 150.

48 CANDIOTI, María Elena. El realismo pragmático en la concepción habermasiana de la verdad. Tópicos.

assim dizer, a continuidade de processos de aprendizagem naturais impostos à espécie em seu processo evolutivo resultando numa espécie de conteúdo cognitivo cumulativo.

Tal concepção da evolução natural já traz consigo a segurança do aprendizado como um processo similar, cujo eixo teórico associa nossos conteúdos cognitivos às estruturas em geral do equipamento orgânico natural – que possibilitam, por sua vez, nossos processos de aprendizado. Nesse empreendimento, conseguimos vislumbrar de perto a ideia de que tais processos de aprendizagem emergem como uma “sequência de soluções de problemas” que sempre vão nos elevando cognitivamente e, por conseguinte, tornando também os processos de aprendizado mais elevados (cf. VJ, p. 37).

O conceito de mundo formulado no âmbito da lógica do naturalismo fraco, como duas dimensões da realidade, parecem não bastar para tornar inteligível a maneira como processos cognitivos elaboram conteúdos de informações que afluem e já estão dados sempre no mundo de um sujeito e que vão sendo incrementados e cumulados com a evolução destes mesmos sujeitos.

Habermas resolve este impasse salientando que as duas esferas do conceito mundo não são conectadas pelo naturalismo fraco, na verdade estas duas esferas devem ser mantidas separadas e somente numa perspectiva de análise conceitual devem ser reunidas para fins de elucidação teórica. Seguindo assim, o filósofo não recai nem no idealismo que eleva as condições de possibilidade do conhecimento para um horizonte inalcançável e nem esbarra na posição do naturalismo estrito/puro que tende a tornar as ditas condições tão empíricas que, satisfatoriamente, seriam explicadas pelas ciências da natureza; Dutra corrobora com esta ideia quando salienta que “Habermas quer recusar tanto a falácia idealista, a qual separa mente e cérebro completamente, como a naturalista que une, completamente, mente e cérebro” 49.

A utilização de uma assunção meta-teórica não significa outra coisa senão que o naturalismo fraco sustenta a tese de que tanto o arcabouço orgânico, quanto as formas de vida socioculturais, têm sua gênese num processo natural e evolucionista e, que, somente, na busca de teorizar a capacidade humana de viabilizar processos cognitivos com conteúdos de informações e aprendizado, elas podem integrar o mesmo framework 50.

49

DUTRA, Delamar J. V. Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do

direito e da biotecnologia. Florianópolis: UFSC, 2005. p. 137.

50 Uma análise mais apurada deste dito naturalismo fraco nos lança numa suposição: parece que ao optar por este

naturalismo fraco Habermas, consciente ou não, está resguardando a dupla caracterização kantiana do homem, a saber, um ser que pertence tanto ao mundo natural das determinações causais (mundo fenomênico), quanto um ser que pertence ao mundo da liberdade, mundo das indeterminações causais (mundo noumênico). Obviamente que esta suposição tem um status próprio dentro da teoria de Habermas, dado que ele procura asseverar que as

De acordo com Manfredo Oliveira, a vinculação da problemática transcendental- pragmática com a proposta habermasiana de um naturalismo fraco, desemboca, com a afirmação do primado genético da natureza frente à cultura, na sua concepção epistemológica realista sem representação 51. Ora, submetidos às condições empíricas da evolução natural, os sujeitos são levados a buscar soluções para os vários problemas que os circundam e, como o caráter das condições transcendentais do conhecimento são contingentes, dada a pressuposição do mundo da vida, o modo de resolução será indicado pelo modo da referência/experiência que temos, uma vez pressuposto um mundo objetivo; haja vista que na evolução natural os sujeitos realizam tais manobras como resultantes de um processo de adaptação, mutação, seleção, estabilização e luta pela sobrevivência.

O desafio ao qual Habermas se propôs a enfrentar, a saber, pensar acoplados o “primado epistêmico” do mundo da vida e o “primado ontológico” de um mundo objetivo, é vencido. De tal modo que isso o possibilita sustentar uma espécie de realismo pragmático o qual, dispensando a representação mentalista e solipsista, contém afirmações descritivas de cunho objetivo compartilhadas por sujeitos capazes de fala e ação. Isso se dá ao evidenciar que a análise da linguagem recebe uma envergadura litigiosamente filosófica ao elevar o paradigma da linguagem ao nível que pertencera o mentalismo outrora.