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A palavra enquanto meio

No documento Autoria sob a materialidade do discurso (páginas 49-53)

Cap 2 – O meio é a mensagem

2.2 A palavra enquanto meio

“A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés”

(MCLUHAN, 1999, p. 97). A linguagem, enquanto extensão da inteligência, é capaz de gerar novos modos de agir e pensar.

Segundo McLuhan (1999), a palavra falada envolve todos os sentidos intensamente. Mergulhados na oralidade, os homens de uma cultura não alfabetizada têm uma percepção de mundo regida pela simultaneidade com que os sentidos atuam. A palavra falada integra esse ambiente de percepção. O homem dessa cultura oral vive num mundo audio-tátil e não há

separação entre ação e pensamento. A percepção de mundo é sincrética, sinestésica e tátil, regida por um profundo senso prático.

Em depoimento à revista Isto é, Kaká Werá Jecupe, índio tapuia, ou txucarramãe (guerreiro sem arma), confirma esse tipo de percepção provocada pela oralidade:

Para o tupi-guarani, ser e linguagem são uma coisa só. A palavra tupuy designa ser. A própria palavra tupi significa som em pé. Nosso povo enxerga o ser como um som, um tom de uma grande música cósmica, regida por um grande espírito criador, o qual chamamos de Namandu-ru-etê, ou Tupã, que significa o som que se expande. Um dos nomes de alma é neeng, que também significa fala. Um pajé é aquele que emite neeng-porã, aquele que emite belas palavras. Não no sentido de retórica. O pajé é aquele que fala com o coração. Porque fala e alma são uma coisa só. É por isso que os guaranis-cayowas, por desilusão dessas relações com os brancos, preferem recolher a sua palavra-alma. Se matam enforcados (como vem acontecendo há cerca de dez anos, em Dourados, em Mato Grosso do Sul) porque a garganta é a morada do ser. Por aí você pode ver que a relação da linguagem com a cultura é muito profunda para o tupi-guarani. (ASSUNÇÃO, 1999).

Já a palavra escrita significa uma ruptura. Introduz no mundo oral a visualidade e a fragmentação. Inaugura a consciência da palavra enquanto signo, representação. A percepção agora se organiza em um tempo e espaço uniformes, contínuos e interligados; especializa-se.

O ouvido não tem preferência particular por um ‘ponto de vista’. Nós somos envolvidos pelo som. Este forma uma rede sem costuras em torno de nós. Costumamos dizer: “A música encherá o ar”. Nunca dizemos: “A música encherá um segmento

particular do ar”.

Ouvimos sons vindos de toda parte, sem jamais haver um foco. Os sons vêm de “cima”, de “baixo”, da “frente”, de “trás”, da “direita”, da “esquerda”. Não podemos fechar a porta aos sons automaticamente. Simplesmente não possuímos pálpebras auditivas10. Enquanto o espaço visual é um continuum organizado de uma espécie uniformemente interligada, o mundo auditivo é um mundo de relações simultâneas. (MCLUHAN, 1969, p. 139).

10 Compreendemos essa afirmação do ponto de vista do fenômeno físico da percepção, pois, do ponto

A passagem de uma cultura oral para uma cultura escrita foi gradativa. Entre palavra manuscrita e a impressa houve um processo de lenta mudança de percepção.

Para McLuhan, a cultura manuscrita guardava vínculos estreitos com a cultura oral. Era uma espécie de conversação, porque na Antiguidade e na Idade Média ler era necessariamente ler em voz alta. A publicação de um livro era um evento oral, em que seu autor formulava um sujeito que se postava diante de um auditório e o lia, submetendo-o à apreciação da platéia. Essa performance enquanto “leitura” do livro estava prevista no ato de sua enunciação. Por isso, mantinha estreitos vínculos com a cultura oral. E também por isso “a linguagem e a literatura medievais eram, na época, o

que são hoje o cinema ou o ‘show’ de televisão” (MCLUHAN, 1972, p. 130),

um acontecimento público, para recepção de um grupo de pessoas, o contrário da atitude individual e silenciosa que se supõe na leitura de um livro impresso.

O significado da invenção da tipografia é construído por McLuhan pouco a pouco na Galáxia. Com a tecnologia de Gutenberg entramos na era do surto da máquina, afirma a certa altura (MCLUHAN, 1972, p. 216), e a organização social passa a ser regida pelo princípio da segmentação (das ações, das funções, dos papéis que os indivíduos desempenham). Passamos a traduzir a visão de mundo auditiva, sinestésica e sincrética em termos visuais, em que se supõe um tempo e espaço agora lineares e não simultâneos.

O alfabeto fonético utilizado na escrita ocidental representou uma ruptura com o mundo mágico da audição. “O homem recebeu um olho em

troca do ouvido.” (MCLUHAN, 1969, p. 72-73). O resultado desse novo

padrão de interação pode ser observado através de nosso hábito de pensar em pedaços, de dividir nosso discurso em partes. Tornamo-nos especializados em tarefas. Dividimos o todo em partes, as classificamos e ordenamos, num processo de “departamentalização” linear que é inerente à tecnologia do alfabeto.

Ao abordar a palavra escrita enquanto meio, McLuhan lança mão de uma suposição interessante que nos ajuda a compreender essa questão:

Suponhamos que em lugar de ostentar as listras e estrelas, tivéssemos de escrever as palavras ‘bandeira americana’ num pedaço de pano e exibi-lo como pavilhão nacional. Embora os símbolos transmitissem o mesmo significado, o efeito seria bem diferente. Traduzir o rico mosaico visual das listras e estrelas para a forma escrita significaria privá-la da maior parte de suas qualidades de experiência e de imagem corporada, embora o vínculo literal abstrato permanecesse quase o mesmo. (MCLUHAN, 1999, p. 101).

O que diferencia esses dois meios – a imagem e a escrita – é o padrão básico de cultura, porque são distintos os padrões de percepção do mundo que cada meio cria.

Por isso, numa cultura essencialmente oral, uma única geração alfabetizada pode ser suficiente para desligar o indivíduo da teia tribal. Seus novos hábitos e costumes podem dar início a uma nova cultura que, de alguma forma, pode representar uma ameaça para a cultura anterior, pela perda da memória. Entretanto, o que atua nesse indivíduo para que isso aconteça, não é o conteúdo do que ele aprende, mas a ruptura introduzida pela escrita no seu padrão de percepção e interação no mundo: é resultado da súbita mudança provocada pelo choque entre a experiência essencialmente auditiva da oralidade e a experiência visual introduzida no seu padrão de comunicação pela escrita. Mesmo as tentativas de manutenção da cultura oral de um povo através de registros escritos, por exemplo, não altera a questão: a oralidade sob a forma escrita já não é uma oralidade primária, mas secundária (ONG, 1998, p. 19) e, nesse caso, o contato com o oral se faz através da escrita, ou seja, é através do padrão visual da escrita que se busca o auditivo do oral – a mudança de padrão de percepção já se operou.

Porém, com a eletricidade, novos padrões de percepção e novas formas de interação foram introduzidos. O que mudou?

No documento Autoria sob a materialidade do discurso (páginas 49-53)