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1.2. A Gramática da Língua Materna

1.2.2. A Perífrase Verbal [Ter+Particípio]

Como aponta Fonseca (2001:70), as gramáticas tradicionais incluem as perífrases com “Ter” e “Haver” nos tempos verbais, denominando, assim, “tenho feito” como Pretérito Perfeito Composto.

Ilari (1997), no entanto, questiona até que ponto essa construção é perífrase ou tempo composto. Segundo o autor, para se reconhecer se se trata de tempo composto ou perífrase basta observar como o auxiliar “Ter” influencia de maneira sistemática a interpretação temporal das sentenças nas quais aparece, como expressões do tipo “tenho dito”, que ainda conservam seu valor de anterioridade em casos muito restritos, para expressar um fato que acabou de ocorrer (Ilari, 1997 e Fiorin, 1996).

Costa (1997), também estudando o aspecto no português, chama a perífrase de Pretérito Perfeito Composto, lembrando que esta denominação remonta ao português antigo, quando o particípio ainda concordava em número com o complemento, como as sentenças 1.103. 1.104., 1.105, 1.106 e 1.107 abaixo. A autora apresenta três usos diferentes para esse tempo:

A. assume reiteração;

B. assume eventualmente valor de continuidade;

C. assume valor de repetição ou continuidade, começando no passado, incluindo o presente e, eventualmente, ultrapassando-o31.

31

Conforme aponta Fonseca (2001:71), a forma composta do português exprime a reiteração e a repetição (Costa, 1997). Contudo, creio que esta forma composta do português, atualmente, sem marcador, significa passado recente. Observemos:

Tenho trabalhado até tarde. vs.

Os exemplos fornecidos por Costa (1997) aparecem a seguir:

(1.103)Tenho esses assuntos estudados.

(1.104)Nestes últimos anos, tenho tido muito sucesso.

(1.105)Você tem levado seu filho ao parque?

(1.106)Você sabe que eu tenho mantido o regime até hoje.

(1.107)Tenho feito feira semanalmente.

Travaglia (1981:186) afirma que a perífrase [Ter+Particípio] no presente do indicativo marca o imperfectivo, o não acabado e o iterativo. Por influência do verbo principal, podemos ter o durativo e o cursivo no lugar do iterativo. O autor apresenta os exemplos abaixo:

(1.108) Meu irmão tem mandado notícias. (imperfectivo, iterativo, não- acabado).

(1.109) Tenho amado você desde que te conheci. (imperfectivo, cursivo, durativo, não-acabado).

Tenho trabalhado até tarde toda a minha vida.

Tenho dormido cedo. vs.

Tenho dormido cedo há três anos.

O primeiro exemplo significa que venho trabalhando, ando trabalhando até tarde, e o segundo, venho dormindo, ando dormindo cedo. Somente com o acréscimo de marcadores temporais específicos como toda a minha vida, e há três anos, conseguimos marcar um tempo pretérito mais longo, que englobe mais que o valor implícito nos últimos tempos.

(1.110) O paciente tem respirado bem. (imperfectivo, durativo, não- acabado).

Castilho (2002:106), por sua vez, aponta que o Pretérito Perfeito Composto expressa a iteração nos exemplos abaixo:

(1.111) Tenho saído sim...assim em termos.

(1.112) Tenho ido ao teatro.

(1.113) Tenho ouvido dizer que (...) aquele programa é abaixo da crítica.

O autor reforça que a iteratividade representa uma quantificação do perfectivo ou do imperfectivo, podendo haver, então, um iterativo perfectivo e outro imperfectivo.

Travaglia (1980) lembra que o tempo marca o imperfectivo e o não- acabado, a questão da cursividade e da duração ficam por conta do léxico. “Amar” e “respirar”, por sua vez, não aceitam iteratividade ou repetição. Como salienta o autor, acrescentando que o cursivo tende a ser expresso por verbos que não aceitam descontinuidade, como os verbos de sentimentos, verbos como “viver”, “respirar”, etc. Com os verbos de estado, por sua vez, devido ao seu valor durativo, fica enfraquecida a iteratividade também. Com verbos que indicam um evento que não se repete para o mesmo ser, como “nascer” e “morrer”, por exemplo, a sentença pode ficar inaceitável, como mostra o autor:

(1.114) Tem nascido um filhote.

Mas se o sujeito é alterado em número, vai para o plural, a sentença fica aceitável:

Beline (2005:30), classifica o pretérito perfeito composto conforme o abaixo:

Quadro 2: Classificação Aspectual do Pretérito Perfeito Composto do Português

Critério qualitativo Imperfectivo (1.116) João tem trabalhado pela modernização da área.

Perfectivo (1.117) Acuda-me, senhor! Aliás, estou perdido e

Henriqueta imolada! A mãe tem decidido que receba o Pancrário.

Critério quantitativo Iterativo (1.118) João tem viajado de carro.

No entanto, para a sentença 1.117 Beline adverte que o exemplo foi extraído de Boléo 193632 (Castilho, A. apud Beline, 2005), escrito em 1925 em Coimbra, e cuja intenção é indicar que o uso da perífrase [Ter+Particípio] com valor perfectivo é antigo e raro na atualidade. Naquele tempo, afirma Beline (2005:50-51), a perífrase podia expressar o aspecto perfectivo resultativo, acrescentado que:

(...) a forma simples do pretérito era também usada, indicando que o passado composto guarda(va) alguma especialidade em relação ao perfeito simples: codifica(va) o resultado de uma ação ou evento passado, em vez de “apenas” localizar o evento no passado (...) bem diferente do uso contemporâneo da perífrase.

Atualmente, o valor da perífrase no português falado do Brasil, é de progressão do passado para o presente, de modo contínuo (durativo) ou de modo intermitente (iterativo). Além disso, aponta o autor (BELINE, 2005:175), a perífrase [Estar + gerúndio] também veicula o mesmo valor da perífrase [Ter + Particípio] em algum de seus usos:

32

A. Feliciano de Castilho, As Sabichonas. “Versão Libérrima” das Femmes Savantes de Molière. Coimbra, 1925, acto IV, sec. 7)

(...) as duas formas perifrásticas são funcionalmente equivalentes, quando o aspecto verbal a ser composto na sentença é caracterizado pela extensão de um evento ou de um estado de coisas do passado até o presente.

Dessa forma, as sentenças abaixo são funcionalmente equivalentes:

(1.119) Tenho trabalhado nisso.

(1.120) Estou trabalhando nisso.

E

(1.121) Estou trabalhando nisso (ultimamente).

(1.122) Estou trabalhando nisso (agora).

Beline alerta, no entanto, que a perífrase [Estar+Gerúndio] pode também ter a interpretação de atividade que está em curso no presente exato de sua enunciação. O que atualiza esse valor aspectual são outras informações dispersas na sentença, devido ao caráter composicional do aspecto.

Como podemos observar, as perífrases [Ter+Particípio] e [Estar + Gerúndio], no português contemporâneo, têm, na maioria das vezes, valores e usos bem distintos do Present Perfect e do Pretérito Perfecto, a despeito da similaridade da construção sintática. Sendo que os valores que encerram o PP e o PF equivalem ao português antigo, como salientou Beline acima. Enquanto as perífrases do português marcam o aspecto imperfectivo, que o evento ou estado avança no presente, o Present Perfect e o Pretérito Perfecto, - excetuando-se alguns usos que englobam o momento da enunciação -, na maioria dos usos apresentam aspecto perfectivo durativo. Por ser o aspecto uma categoria composicional, muitas vezes haverá indicação que o evento foi repetido várias

vezes, houve iteração. Contudo, no momento da enunciação, o evento é visto como acabado, o que permanece até o presente é a conseqüência ou o resultado deste evento ou estado. Sendo esta a razão que nos leva a eleger a posição defendida por Michaelis (1998) que distingue os tempos simples dos compostos do inglês e do espanhol como predicação de evento para os tempos simples e, estado-resultativo para os compostos.

Passamos, agora, no item seguinte, a apresentar como o português do Brasil contemporâneo expressa resultado, uma vez que a perífrase [Ter+Particípio] não veicula mais esse valor.