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CAPÍTULO 1 - PREMISSAS

1.2. Sobre as Normas Jurídicas

1.2.2. A polivalência do texto normativo

Como cediço, as normas jurídicas não são uniformes e homogêneas. Ao contrário, diferenciam-se entre si e assumem caracteres e funções extremamente distintas, motivo pelo qual bem compreender e fixar os critérios pelas quais é possível diferenciá-las é imprescindível para a melhor compreensão de seu sentido e alcance.

No que tange à classificação das normas jurídicas, adotamos a divisão tripartite tal qual proposta por Humberto Ávila, a qual passamos a sinteticamente expor.

Segundo o referido autor, as normas jurídicas poderão ser classificadas em regras, princípios e/ou postulados, conforme o enfoque, dado pelo intérprete, atribua maior ênfase, respectivamente: i) ao comportamento que deverá ser adotado pelo destinatário da norma (regra); ii) à finalidade ou estado ideal de coisas que deverão

45 Ibidem, p. 54: [...] o exposto também exige a substituição de algumas crenças tradicionais por conhecimentos mais sólidos: é preciso substituir a convicção de que o dispositivo identifica-se com a norma, pela constatação de que o dispositivo é o ponto de partida da interpretação; é necessário ultrapassar a crendice de que a função do intérprete é meramente descrever significados, em favor da compreensão de que o intérprete reconstrói sentidos, quer o cientista, pela construção de conexões sintáticas e semânticas, quer o aplicador, que soma àquelas conexões as circunstâncias do caso a julgar; importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto.

ser alcançados (princípio); ou iii) se caracterizam como marcos metodológicos voltados à interpretação e aplicação dos princípios e regras (postulados)46.

Sendo a norma jurídica (re)construída pelo intérprete a partir do suporte normativo e das conexões sintáticas e semânticas possíveis a partir do ordenamento jurídico em questão, caberá justamente ao intérprete atribuir predominância ao caráter comportamental, finalístico ou metódico da norma desenvolvida, não sendo tal aspecto um dado “a priori” do texto normativo.

Em outras palavras, não são intrínsecos aos textos normativos os aspectos comportamentais, finalísticos ou metódicos, mas decorrem do processo interpretativo e argumentativo construído pelo intérprete, que poderá escolher sobre tal ou qual aspecto preferirá laborar e desenvolver a norma jurídica. Nesse sentido, pela importância fundamental desta perspectiva para as conclusões que se seguirão, faz-se novamente eco às lições de Humberto Ávila, as quais se pede licença para citar:

[...] mesmo que determinado dispositivo tenha sido formulado de modo hipotético pelo Poder Legislativo, isso não significa que não possa ser havido pelo intérprete como um princípio. A relação entre as normas constitucionais e os fins e os valores para cuja realização elas servem de instrumento não está concluída antes de interpretação, nem incorporada ao próprio texto constitucional antes da interpretação. Essa relação deve ser, nos limites textuais e contextuais, coerentemente construída pelo próprio intérprete. Por isso, não é correto afirmar que um dispositivo constitucional contém ou é um princípio ou uma regra, ou que determinado dispositivo, porque formulado dessa ou daquela maneira, deve ser considerado como um princípio ou uma regra. Como o intérprete tem a função de medir e especificar a intensidade da relação entre o dispositivo interpretado e os fins e valores que lhe são, potencial e axiologicamente, sobrejacentes, ele pode fazer interpretação jurídica de um dispositivo hipoteticamente formulado como regra ou como princípio. Tudo depende das conexões valorativas que, por meio da argumentação, o intérprete intensifica ou deixa de intensificar e da finalidade que entende deva ser lançada.

46 Ibidem, p. 225 e 226.

[...]

De um lado, qualquer norma pode ser reformulada de modo a possuir uma hipótese de incidência seguida de uma consequência.

De outro lado, em qualquer norma, mesmo havendo uma hipótese seguida de uma consequência, há referência a fins. Enfim, o qualificativo de princípio ou de regra depende do uso argumentativo, e não da estrutura hipotética47.

Importante ressalvar, contudo, que não se quer com isso defender que possa o interprete se furtar da construção normativa de uma regra quando o aspecto descritivo de um determinado comportamento for escolhido e enfatizado pelo legislador. O que se está a defender é que, deste mesmo dispositivo legal que enfatizou um determinado comportamento e uma respectiva consequência (dando ênfase, portanto, a geração de uma regra) será perfeitamente possível a construção de uma outra norma, principiológica, quando o labor do intérprete se volte a reverberar não as hipóteses e consequências descritas no texto, mas sim os valores e fins que, ainda que indutivamente, se possa atribuir ao mesmo texto normativo48.

Neste ponto, podemos já enfatizar duas conclusões importantes e que nortearão o exercício de construção de normas empreendida neste trabalho, quais sejam: a) normas jurídicas são construídas pelo intérprete a partir dos textos legais, com eles não se confundindo e; b) um mesmo dispositivo legal poderá dar ensejo à construção de mais de uma norma jurídica, seja ela uma regra, um princípio e/ou um postulado, a depender do enfoque dado pelo intérprete, sem que isso signifique liberdade para que este ignore a ênfase, porventura atribuída ao texto normativo pelo legislador, aos aspectos comportamental, finalístico ou metódicos.

Ainda que não adentremos na diferenciação propriamente dita entre princípios, regras e postulados tal qual descrita por Humberto Ávila, o que fugiria em muito dos objetivos do presente estudo, acreditamos que as conclusões até aqui construídas nos serão suficientes para embasar as construções normativas que se seguirão.

47 Ibidem, p. 62.

48 Ibidem, p. 64.

1.3. Sobre a construção das normas jurídicas e as categorias de argumentos