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1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO

1.3. A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL NO BRASIL

O Estado Brasileiro vem investindo em Políticas que buscam a salvaguarda do patrimônio cultural em sua dimensão imaterial. Nesse sentido, pode-se ressaltar a publicação de documentos oficiais, que em concordância com aqueles firmados internacionalmente, vão, paulatinamente, dando forma a uma política de preservação do patrimônio cultural, destacando-se aqui a Carta de Cabo Frio, de 1989, e a Carta de Fortaleza, de 1997.

A Carta de Cabo Frio, de 1989, resultante do encontro do Comitê Brasileiro do ICOMOS, salienta a importância da preservação ambiental e enfatiza: “a defesa da identidade cultural far-se-á através do resgate das formas de convívio harmônico com seu ambiente” (CURY, 2004, p. 189); e, ainda, “sendo a identidade cultural a razão maior e a base da existência das nações, é imprescindível a ação do Estado nas suas várias instâncias e a

participação da comunidade na valorização e defesa de seus bens naturais e culturais” (CURY, 2004, p. 290 -291).

A Carta de Fortaleza, de novembro de 1997, tratou das estratégias e formas de proteção do patrimônio imaterial, em comemoração aos 60 anos de criação do IPHAN. O objetivo deste Seminário foi

recolher subsídios que permitissem a elaboração de diretrizes e a criação de instrumentos legais e administrativos visando identificar, proteger, promover e fomentar os processos e bens ‘portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores as sociedade brasileira’ (Artigo 216 da Constituição), considerados em toda sua complexidade, diversidade e dinâmica, particularmente ‘as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas’, com especial atenção àquelas referentes à cultura popular. (CURY, 2004, p.363).

Criado em 2000, por meio do Decreto 3551/00, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI, orienta e fomenta a implementação dessas políticas, por meio de parcerias com órgãos governamentais, universidades, ONGs, OSCIPs, instituições privadas e agências de financiamento.

O instrumento em torno do qual se estrutura a política de salvaguarda dos bens de natureza imaterial é o Registro.

O Registro institui o reconhecimento de que essas expressões vivas da cultura também integram o patrimônio cultural brasileiro e estabelece, para o Estado, o compromisso de salvaguardá-los por meio de documentação, acompanhamento e apoio às suas condições de existência. É ainda, e principalmente, um instrumento de preservação adaptado à natureza dinâmica dessas manifestações e voltado, primordialmente, para a produção de conhecimento mediante a elaboração de ‘dossiês de Registro. (SANT’ANNA, 2005, p. 7).

O Registro é feito em um dos quatro livros: Celebrações, Saberes, Lugares e Formas de Expressão. Ele permite, conforme preconiza a política de salvaguarda, ações para a promoção da sustentabilidade dessas práticas, de acordo com quatro grandes linhas: 1) ações de apoio às condições de transmissão e reprodução; 2) ações de valorização e promoção; 3) ações de defesa de direitos; e 4) ações de acompanhamento, avaliação e documentação.

A metodologia a ser utilizada para proceder ao processo de registro é o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC. O INRC tem como objetivo produzir conhecimento sobre os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social.

Atualmente, foram registrados e considerados Patrimônio Cultural do Brasil: o modo de fazer viola-de-cocho do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; o ofício das paneleiras do distrito de Goiabeiras, no Espírito Santo; o ofício da baiana do Acarajé, em Salvador; o samba de roda do Recôncavo Baiano; a arte de pintura corporal dos índios Wajãpi, no Amapá; o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, do Pará.

Toda a abordagem do PNPI está calcada na antropologia, tanto no que diz respeito aos conceitos utilizados quanto na organização do trabalho de campo como um trabalho etnográfico. Apoiada na idéia da realização de trabalhos com características etnográficas, a implementação do PNPI pretende que o bem imaterial “registrado” e documentado em fichas, gravações audiovisuais, fotografias e descrições possa ser conhecido naquilo que constitui sua essência e preservado por meio de práticas de fomento que garantam a sobrevivência dos grupos e de suas manifestações.

O PNPI estabelece a salvaguarda daquelas manifestações culturais mais representativas do país ou aquelas que se encontram em risco de desaparecer e, ao mesmo tempo, pretende dar conta da natureza dinâmica dessas manifestações. Esta discussão é central, na medida em que o Registro pode significar, em alguma medida, a cristalização de aspectos culturais, que são eminentemente dinâmicos.

Um outro aspecto a ser discutido é o de que a definição dos elementos mais representativos de determinadas nações, e por isso mesmo dignos de serem objeto de políticas de preservação, é obtida a partir de determinados grupos sociais, geralmente intelectuais detentores de conhecimentos “auráticos”, e expressam a visão de mundo ao qual esses grupos estão ligados. “Os intelectuais que estão direta ou indiretamente envolvidos em uma política de preservação nacional fazem o papel de mediadores simbólicos” (FONSECA, 2005). A definição do que merece se tornar um bem sempre foi função de um grupo circunscrito de intelectuais que, por um lado, tinha o desafio de eleger o que deveria ser passível de preservação (estabelecer um recorte) e, por outro, investir esses bens de características universais.

Ortiz (2003), ao apresentar as diversas concepções de identidade nacional ao longo de vários períodos no Brasil, estabelece uma distinção entre memória coletiva e memória nacional. A primeira é considerada como processo de rememoração, tradição que possui característica dinâmica; e a segunda apresenta-se como conhecimento que pretende ser totalizante, refere-se a uma história que transcende os sujeitos e não se concretiza imediatamente no seu cotidiano. Nesse processo de eleição dos elementos da memória coletiva que farão parte da memória nacional, os intelectuais assumem papel fundamental:

Se os intelectuais podem ser definidos como mediadores simbólicos é porque eles confeccionam uma ligação entre o particular e o universal, o singular e o global. Suas ações são, portanto, distintas daqueles que encarnam a memória coletiva. Enquanto esses são especialistas que se voltam para uma vivência imediata, aqueles se orientam no sentido de elaborar um conhecimento de caráter globalizante. (ORTIZ, 2003, p. 139-140).

A criação de consenso sobre a importância dessa preservação busca encobrir o caráter arbitrário dessas escolhas, geralmente utilizando-se práticas discursivas do tipo “retórica da perda”. (GONÇALVES,1996).

Essas práticas de colecionamento e exposição respondem ao desafio de salvar esses objetos do desaparecimento, transformando-os em coleções representativas do sistema de oposições e correlações em que se inserem essas categorias (sociais e culturais). (GONÇALVES,1996, p. 22).

Apoiada na idéia da realização de trabalhos com características etnográficas, a implementação do PNPI pretende que o bem imaterial “registrado” possa ser conhecido naquilo que constitui sua essência e preservado por meio de práticas de fomento que garantam a sobrevivência dos grupos e de suas manifestações. O que se coloca, no entanto, é que a própria realização do INRC implica numa leitura da realidade, conforme Geertz (1989), uma interpretação de segunda ou terceira mão. Isso fica claro quando se admite que a manifestação a ser registrada implica num recorte dentro de um complexo de práticas estabelecidas pelos grupos.

Coloca-se, assim, o risco dos processos de patrimonialização, na medida em que interferem nas práticas dos grupos, imprimindo nelas o tom de teatralização que pode esvaziar sua realização cotidiana daqueles significados dados pelo próprio grupo no processo de ligação do passado e do presente e de ordenamento do presente em função de suas práticas e ritos. Ou seja, a integridade das tradições é colocada em risco também em função dos processos de patrimonialização, uma vez que orientam o processo interpretativo inerente a elas, colocando como verdade única aquele sentido sacramentado externamente, expresso por atitudes estandartizadas.

O que se coloca aqui, entretanto, é o caráter que essas intervenções assumem no âmbito dos grupos em que são implantadas, pela ação do próprio antropólogo. Quer dizer, ao instituir uma política pública de preservação de aspectos da cultura de determinado grupo, já ocorre uma interferência nos significados dados pelos “nativos” àquela prática. O que implica

dizer que, contraditoriamente, a ação de preservação já implica, ela mesma, em um tipo de intervenção que pode alterar aquelas práticas que se pretende preservar.