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A Reforma Gregoriana: separação dos poderes e predomínio do espiritual

Com a fundação em 952 do Sacro Império Romano-Germânico tendo como primeiro imperador Oton, o Grande, abrangendo parte da França, a Alemanha e parte da Itália, o papado passou a ser tutelado pelo imperador (CHELINI, 1968, p. 190). Na Alemanha era onde se encontrava a maior força do império e seu centro “administrativo”. Havia entre o primeiro imperador e os que se seguiram, o pensamento de que os poderes instituídos eram dois: o espiritual e o temporal. Embora os imperadores considerassem o poder espiritual como secundário.

Com o Sacro Império Romano-Germânico, iniciou-se um modo de relações entre o império e o papado, onde o papado colocava-se como submisso aos soberanos do império. O papa João XII (955-964), contemporâneo de Oton (912- 973), o Grande, em troca da defesa dos reinos da Igreja (Patrimônio de Pedro) ameaçados pelo rei Alberico, aceitou que a eleição do pontífice pelos cardeais fosse sempre aprovada e confirmada pelo soberano do império. A influência dos soberanos do império na Igreja estendia-se para todas as suas ações, quer de natureza estritamente espiritual (sacramentos, bênçãos, escolha de bipos, etc.) ou terrena (bens das igrejas, taxas e dízimos). Chelini (1968, p. 185) chamou esta fase de “cesaropapismo otoniano”. Pacaut (1976, p. 98-100) preferiu caracterizar este tempo iniciado com Oton I de “declínio do poder pontifício”.

Um século após a fundação do Sacro Império Romano-Germânico, com a conseqüente submissão da Igreja cristã do ocidente ao imperador, reis e príncipes, cresceu um movimento de contestação da tulela do poder temporal (PACAUT, 1976, p. 126; CHELINI, 1968, p. 206-211). Este movimento recebeu o nome de reforma gregoriana por causa das dimensões que a reforma tomou no pontificado de Gregório VII.

1.4.1 ASPECTOS REFORMADORES DO PONTIFICADO DE GREGÓRIO VII

Em 1073, o monge arcediácono Hildebrando foi eleito papa e assumiu o nome de Gregório VII. Hildebrando serviu nos anos anteriores ao papado como emissário

especialmente na França e na Alemanha. Esteve a serviço da cúria romana por diversos anos. Sua primeira aparição notória na política do papado aconteceu no ano de 1054 na Alemanha, quando foi chamado para corrigir uma heresia eucarística, segundo os critérios da teologia corrente, promovida por Berengário (CHELINI, 1968, p. 207). Serviu aos papas Gregório VI (1045-1046) e Leão IX (1049-1054), totalizando vinte anos de serviço à Igreja junto aos problemas da administração geral.

O papa Gregório VII trouxe consigo idéias de reforma da Igreja aos moldes do Mosteiro de Cluny, sendo por isso chamada por alguns historiadores como reforma cluniacense (PACAUT, 1970, p. 75-78).

Foram três os pontos principais que Gregório VII anunciou como intenção de corrigir dentro da Igreja: o nicolaismo, a simonia e a investidura de cargos eclesiásticos feita por leigos. O nicolaismo consistia no grande número de bispos e padres que não viviam o celibato, estando o maior número na Alemanha e por isso protegidos pelos soberanos germânicos. A simonia era a venda de “coisas” sagradas ou dos sacramentos, como por exemplo, a compra de ordenações de bispos por parte tanto de clérigos como leigos. A investidura segundo a definição mais sucinta é o “ato físico de investir um clérigo com as insígnias do cargo.” (LOYN, 1997, p. 209). O problema com a investidura acontecia porque era um leigo (rei ou nobre) quem empossava um prelado no seu cargo. No gesto de investidura estava claro que era o poder temporal que legitimava o poder espiritual.

Gregório VII, nestas propostas de reforma, participa das idéias de renovação surgidas há quase um século inspiradas em Cluny. Seus antecessores próximos tentaram a autonomia da Igreja frente ao poder temporal, mas não alcançaram sucesso. Seu contexto histórico permitiu que tomasse medidas severas proibindo as investiduras e disciplinando moralmente o clero, ou seja, trazendo-os para a obediência da cúria romana e do papa. O papa aproveitou da pouca idade e inexperiência do novo imperador Henrique IV (1050-1106) para anunciar as medidas reformadoras.

Apoiavam o papa na reforma grande parte da cúria romana, os movimentos espirituais de renovação da vida monástica, alguns bispos que desejavam sair da tutela do poder temporal, vários príncipes e nobres que estavam fora da área geográfica que constituía o Sacro Império Romano-Germânico. Os opositores da reforma foram os bispos germânicos e o próprio imperador Henrique IV.

Parte do programa de reforma de Gregório VII encontra-se num texto chamado de Dictatus Papae (HENDERSON, 1965, p. 366-367). O texto conciso tem a forma de um programa de administração de Gregório VII com algumas das suas idéias e da cúria romana.

1.4.2 O DICTATUS PAPAE

O texto legislativo de Gregório VII é composto de 27 preposições. São preposições diretas, todas referentes à função e proeminência do “romano pontífice”. Nelas Gregório VII defendeu que o poder espiritual exercido pelo papa era superior ao poder temporal exercido pelos imperadores. Esta afirmação contrariava a prática dos imperadores do Sacro Império Romano-Germânico. O texto pretendia por força de lei retirar a Igreja do governo dos leigos e devolvê-la aos sacerdotes. Todo o

Dictatus Papae é o ponto de chegada dos anseios da reforma cluniacense e do

espírito de autonomia que procuram os reformadores. Para que o papa pudesse retomar sua autonomia frente ao imperador e conseguisse exercer de fato a administração da Igreja, especialmente conseguir obediência dos bispos, deveria investir contra as “igrejas nacionais” ou territoriais.

Estas “igrejas nacionais” acostumadas ao sistema de investidura tinham um compromisso muitas vezes maior com os príncipes e com o rei do que com os fiéis ou com a administração exercida pelo papa e pela cúria romana. No sistema de investidura eram os senhores feudais quem nomeavam e removiam bispos e padres de suas sedes eclesiásticas. Desobedecer a um senhor local significava conseqüentemente a perda do cargo, uma sanção bem mais forte do que o pontífice e a cúria romana podiam fazer. Por isso os n. 13 e 14 do Dictatus pretendiam ampliar o poder de sanção do pontífice afirmando que: “Que a ele é lícito, segundo as necessidades, transferir os bispos de uma sede para outra” (HENDERSON, 1965, p. 366). As igrejas nacionais eram um grande obstáculo à vontade de moralização pretendida pelos reformadores, sendo necessário um processo de centralização do poder. O Dictatus foi o caminho para centralização do poder dentro da Igreja.

Entendemos que o Dictatus Papae teve por idéia principal a plenitudo

potetatis. Não há uma fundamentação das proposições e o texto não fez discussões

teológicas e históricas sobre as motivações de cada uma das 27 proposições. Permeia em todo o texto a compreensão de que o poder espiritual está acima de qualquer outro. A maior ruptura com a pretendida equivalência dos dois poderes temporal e espiritual está na afirmação “é lícito depor e imperador” (HENDERSON, 1965, p. 366). Era uma inversão na prática, então, costumeira em que a eleição do papa era confirmada pelo imperador. O Dictatus não só queria acabar com esta prática, como colocava o imperador na dependência do papa.

O Dictatus é mais que uma elaboração de objetivos para o governo da Igreja pelo papa Gregório VII do que uma meta alcançada. Entretanto julgamos um passo importante para a autonomia da Igreja no século posterior. A disciplinação do clero através do fim da investidura, do casamento dos clérigos e da simonia contribuiu para Igreja buscar a unidade necessária para impor sua vontade de supremacia. Não entendemos que isso seja resultado de uma moralização do clero decadente, segundo os critérios dos reformadores, mas que o papado conseguiu abalar com a reforma gregoriana seu principal fator de enfraquecimento: o poder das igrejas nacionais.

A novidade do texto está na afirmação que a Igreja não erra. É um argumento novo dentro das discussões teológicas. A fundamentação que Gregório deu ao argumento que a Igreja não erra, é que o argumento era de acordo com as Sagradas Escrituras e não esclareceu nada além disso. Há lacunas não resolvidas e o texto só não é suficiente para resolvê-las.

Julgamos que a reforma gregoriana com seu auge no período de Gregório VII, abriu a possibilidade de uma maior autonomia da Igreja frente ao poder temporal. O seu Dictatus Papae é um documento que pode ser incluído entre os textos que apóiam a plenitude do poder papal.