• Nenhum resultado encontrado

1. Introdução

1.4 A Reforma Psiquiátrica em tempos de desmonte

Até o ano de 2015, continua o alargamento do acesso aos cuidados, tanto para transtornos mentais graves e persistentes como para transtornos mentais menos acentuados, seguindo um contínuo desenvolvimento de serviços e renovação de processos de trabalho (DELGADO, 2019).

Todavia, apesar dos diversos avanços que a Reforma Psiquiátrica vinha conquistando, esse panorama sofreu mudanças bruscas a partir de 2016 com os projetos de saúde do governo ilegítimo de Michel Temer e do atual governo de Jair Bolsonaro (DELGADO, 2019). O projeto de ambos os governos aponta para o desmonte do SUS, focando em um “Projeto Privatista que tem sua lógica orientada pelas regras de mercado e pela exploração da doença como fonte de lucros”

(BRAVO, PELAEZ e MENEZES, 2019, p. 02), seguindo um caminho oposto aos direitos pleiteados pelos movimentos antimanicomiais e reformistas.

A partir do Governo Temer verifica-se a aceleração e a intensificação das políticas que contribuem com o desmonte do Estado brasileiro.

No governo Bolsonaro tem-se a perspectiva de aprofundamento das contrarreformas iniciadas no governo anterior. (BRAVO, PELAEZ e MENEZES, 2019, p. 02)

No artigo Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte, Delgado (2019) retoma medidas que foram definidas entre 2016 a 2019. Dentre elas estão: (1) a modificação do Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que altera os parâmetros populacionais e dispensa a determinação da presença do agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família, “com consequências imediatas de descaracterização e fragilização da atenção básica” (DELGADO, 2019, p.02); (2) A expansão do financiamento de hospitais psiquiátricos; (3) Diminuição dos cadastros de CAPS, “em proporção ainda imprecisa, uma vez que o Ministério da Saúde deixou de fornecer os dados sobre a rede de serviços de saúde mental”

(DELGADO, 2019, p.02); (4) Amplificação do financiamento para vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs); (5) Restauração da centralidade do hospital5 psiquiátrico “e recomendou a não utilização da palavra ‘substitutivo’ para designar qualquer serviço de saúde mental” (DELGADO, 2019, p. 02-03); (6) Reconstituição do hospital-dia “um arcaísmo assistencial, vinculado aos hospitais psiquiátricos, sem definir sua finalidade, em evidente reforço ao modelo desterritorializado”

5 Embora em sua origem histórica, conceitual e metodológica, o movimento das CT tenha muitas mais semelhanças do que diferenças com o proposto pela Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Luta Antimanicomial, na prática, pelo menos no Brasil, a realidade é diferente, como confirmado por diversas investigações realizadas na atualidade. De fato, uma boa parte das CT no Brasil possui práticas tão desumanas e iatrogênicas quanto às das antigas instituições asilares manicomiais, sem garantir minimamente a preservação dos direitos humanos mais básicos. (PERRONE, 2013, p. 578 )

(DELGADO, 2019, p.03); (7) Recriação do ambulatório de especialidade, também sem referência territorial.

Além disso, em 2019 é assinada a Nota Técnica 11/2019 (BRASIL, 2019), que reafirma as medidas tomadas na gestão de Temer.

[...] o documento apontou as mudanças realizadas na direção da política. Além da crítica genérica sobre a ‘ideologia’ presente na política de saúde mental (reproduzindo a retórica ideológica

‘anti-ideologia’ do governo Bolsonaro), substituída por uma visão

‘científica’, alguns pontos devem ser destacados, pois representam uma medida direta de desconstrução da reforma psiquiátrica: reforço do papel estratégico do hospital psiquiátrico; ênfase na internação de crianças e adolescentes; ênfase em métodos biológicos de tratamento, como a eletroconvulsoterapia; disjunção entre a saúde mental e a política de álcool e outras drogas; e condenação das estratégias de redução de danos. (DELGADO, 2019, p.03)

O que foi iniciado em 2019 foi só o início de uma política genocida que foi se desenrolando de forma desenfreada nos anos que se seguiram. Em 2020, o Brasil viveu um ano caótico com a chegada do coronavírus no país, somado à péssima gestão do governo durante a maior crise sanitária do mundo contemporâneo. Em 2021, esse cenário se intensificou e o Brasil se tornou um dos principais epicentros de Covid-19, ultrapassando o número de 500 mil mortes no mês de junho .6

Além dessa ineficaz gestão governamental no combate à crise sanitária, que envolveu, por exemplo, a troca de ministro da saúde quatro vezes durante a pandemia , a recusa de compra de milhões de doses de vacinas, a indicação de7 remédios sem eficácia comprovada para tratamento de Covid-19 e o descaso com as mais de 500 mil vidas perdidas decorrentes do vírus, o governo Bolsonaro favoreceu caminhos cada vez mais concretos para o desmonte do SUS, durante um momento em que o SUS nunca se fez tão imprescindível.

7Dados referentes ao período de produção dessa pesquisa (até junho de 2021)

6 Epicentro do vírus, Brasil tem percentual de positivos 6 vezes acima do almejado, CNN NEWS.

Disponível em

<https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/12/epicentro-da-pandemia-brasil-reduz-testagem-e-tem -percentual-de-positivos-6-vez> Acessado em 08/05/2021

Brasil atinge marca trágica de 500 mil mortes pela Covid, G1. Disponível em

<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/06/19/brasil-atinge-marca-tragica-de-500-mil-morte s-pela-covid.ghtmll> Acessado em 19/06/2021

O trecho a seguir refere-se a uma publicação da Revista Piauí, nesta notícia são apresentadas algumas diretrizes do governo federal para 2021 no tocante a saúde:

[...] o SUS enfrenta a perspectiva de redução de gastos em 2021 – uma redução que decorre inclusive de medidas que Mandetta adotou ou apoiou. O orçamento do Ministério da Saúde chegou ao Congresso com quase 43 bilhões de reais a menos do que os gastos autorizados neste ano.

Como se não bastassem os possíveis cortes, há pressões no Congresso Nacional para ampliar o espaço da iniciativa privada no sistema de saúde, em debate que aguarda o fim das eleições municipais. [...]

Objeto de um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de outubro e revogado dois dias depois, a construção e a ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) terão menos verbas federais em 2021, de acordo com o projeto de lei orçamentária enviado pelo governo ao Congresso (500 mil reais a menos). O mesmo acontece com os investimentos federais na estruturação da rede de atenção primária à Saúde, a porta de entrada no SUS, hoje bancada majoritariamente pelos próprios municípios. Nesses investimentos, a redução chega a 30%, um corte de 15 milhões de reais.(SALOMON, 2020, n.p)

Além dos cortes orçamentários, as políticas de saúde mental também sofreram diversos retrocessos ao longo do governo Bolsonaro, um desses retrocessos foi a proposta de revogação de portarias e o encerramento de programas de saúde mental. “Em meio à pandemia da Covid-19 e durante o recesso do Congresso Nacional, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho que busca repensar os serviços e revogar as portarias ligadas à política de saúde mental. Essa proposta colocaria em risco o modelo de atenção psicossocial e ameaça a luta da história da saúde mental no Brasil.” (POLAKIEWICZ, 2021).

O “revogaço” pretende, entre outras medidas: extinguir o Programa De Volta pra Casa, instituído por lei em 2003, que visa à reinserção social de pacientes com transtornos mentais que tenham permanecido por um longo tempo internados em instituições psiquiátricas; acabar com mecanismos de fiscalização e estímulo à redução dos hospitais psiquiátricos e com equipes que atuam na transferência de pacientes com transtornos mentais dos hospitais para serviços comunitários; encerrar o funcionamento da estratégia Consultório na Rua, que oferece atendimento à saúde voltado para pessoas em situação de rua; flexibilizar o controle sobre internações voluntárias, com a revogação de uma portaria que determina que o Ministério Público seja comunicado nesses casos. [...] Para Leonardo

Pinho, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), a notícia não foi uma surpresa. Segundo ele, a revogação das portarias estaria alinhada com um processo de

“contrarreforma psiquiátrica” que vem se desenrolando ao longo dos anos. (ANTUNES, 2020, n.p.)

Além disso, foi demonstrada a participação da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) no processo de feitura da planilha que propunha a revogação:

A ABP desde o início está integrada ao processo de elaboração do revogaço. O material começou a ser preparado em agosto (2020), após reunião entre representantes da Associação e a então coordenadora de saúde mental Maria Dilma. Na ocasião, a ABP apresentou o documento Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil, que se tornaria a base da planilha vazada pela imprensa na última semana. Criticado por psiquiatras e outros profissionais ligados à reforma psiquiátrica, o material defende, por exemplo, a volta dos ambulatórios especializados, que, se implantados, tirariam dos CAPS a função de atender emergências e de realizar intervenções ambulatoriais, enfraquecendo o serviço. Questionado sobre as intenções por trás da proposta, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental Leonardo Pinho, é enfático: “A volta das clínicas e hospitais psiquiátricos atende aos interesses da iniciativa privada Internações em leitos privados, por um lado, ambulatórios especializados em substituição ao atendimento psicossocial dos CAPS, por outro. Isso favorece dois segmentos de mercado: o das clínicas e hospitais, que ganham com as internações; e o da indústria farmacêutica, porque a ambulatorização na saúde significa aumento da quantidade de remédios receitados. Exatamente o contrário do que propõe a Rede de Atenção Psicossocial, cujo objetivo é, sempre, diminuir a medicação e preservar a dignidade do usuário do sistema de saúde mental.” (MARTINS, 2020, n.p.)

Levando em conta este cenário de retrocessos às bases asilares e manicomiais e de desmonte de políticas públicas que o Brasil vem enfrentando, principalmente frente aos governos neoliberais vigentes desde 2015, cabe aos estudantes, aos trabalhadores da área da saúde e a sociedade como um todo, fazer resistência e se conscientizar do momento político presente. E nesse sentido, Delgado termina seu texto, anteriormente citado, com o seguinte apelo:

No campo da atenção psicossocial, há um vasto movimento de luta, formado por dezenas de milhares de profissionais diretamente implicados nos serviços, aliados a estudantes, usuários e familiares.

A trincheira da resistência está nos serviços territoriais. (DELGADO, 2019, p. 4)

Assim, alinhando o que foi apresentado até agora com o tema desta pesquisa, e tendo em vista que um dos preceitos que a reforma psiquiátrica defende é o trabalho em rede com uma equipe multidisciplinar alinhada, é importante que se entenda como os futuros profissionais da área da saúde articulam seus saberes acerca de uma visão antimanicomial em relação às questões de saúde mental, podendo assim fazer oposição contundente aos retrocessos atuais e, exercer serviços de saúde de qualidade, respeitando a individualidade e a liberdade de todos.

Alguns estudos atuais abordando essa temática, apontam a não superação dos modelos biomédicos, principalmente em áreas como enfermagem e medicina.

Na pesquisa Atitudes e Representações em Saúde Mental: Um Estudo com Universitários buscou a obtenção de dados referentes às representações sociais de estudantes das graduações de Psicologia, Medicina e Enfermagem sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre a figura do doente mental, associando-as com a adesão aos paradigmas de atenção à saúde mental (SOUSA et al, 2016). Foi demonstrado, a partir da coleta de dados, feita com a Escala de Atitudes em Saúde Mental (SOUSA et al, 2015) e da Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP), que há

[...] entre os universitários, um conhecimento acerca dos preceitos teóricos que caracterizam a Reforma Psiquiátrica, dado evidenciado pela atitude dos universitários dos três cursos ser pautada no paradigma psicossocial e pelas suas representações acerca da reforma estarem de acordo com o que preconiza a atual política do campo da saúde mental. Contudo, esses estudantes demonstraram uma representação do doente mental marcada pelo medo e exclusão, pautada no paradigma biomédico. No núcleo central das representações sociais do doente mental, onde se concentram os elementos mais rígidos e de mais difícil mudança, observaram-se palavras como “doença” e “doido”, demonstrando o quão fortemente a visão estigmatizada do doente mental ainda se faz presente.

(SOUSAet al, p. 535, 2016)

Foi indicada ainda, através de análises de variância, uma diferença entre as médias dos universitários no paradigma biomédico, apontando para Medicina como o curso com a maior pontuação nesse paradigma, e a Psicologia com a maior pontuação para o paradigma psicossocial.

Ao final da pesquisa, as autoras apontam para a importância da análise das atitudes e representações sociais em relação a Reforma Psiquiátrica e a figura do

doente mental no meio universitário, e também indicam a relevância da compreensão do comportamento dos futuros profissionais do campo da saúde mental, “permitindo identificar como esses universitários compreendem as mudanças ocorridas no âmbito da saúde mental, em decorrência da Reforma Psiquiátrica, e em quais aspectos teóricos estarão pautadas suas futuras práticas”

(SOUSA et al, p. 535, 2016). Ademais, as pesquisadoras demonstram a relevância de novos estudos acerca do doente mental, do preconceito e do processo de inclusão social, para servir de embasamento na “proposição de políticas públicas que favoreçam a efetivação do paradigma psicossocial na sociedade, enfatizando a desconstrução de representações negativas e o incentivo de atitudes mais positivas e inclusivas (SOUSA et al, p. 536, 2016).

Já na pesquisa Processos formativos da docência em saúde mental nas graduações de Enfermagem e Medicina (LINO et al, 2016), são levantadas inquietações a respeito do ensino nos cursos de Medicina e de Enfermagem com a temática da saúde mental alinhada com os princípios da reforma psiquiátrica, buscando contribuir para o debate sobre a formação comprometida com “a produção de práticas pedagógicas profícuas no contexto da saúde mental, e de perspectivas mais críticas em relação às práticas desenvolvidas nos cursos” (LINO et al, p.85, 2016). Através da aplicação de uma entrevista semiestruturada sobre os conhecimento acerca de saúde mental dos docentes, realizada com nove professores dos cursos de Enfermagem e Medicina de cinco universidades públicas do estado da Bahia, efetuada no ano de 2008, foi concluído que em ambos os cursos há um discurso oriundo de uma imagem distorcida da saúde mental, vinculada a teorizações e práticas reducionistas características da psiquiatria tradicional.

Assim como a pesquisa citada anteriormente, nesse estudo as autoras também afirmam a relevância da continuidade das pesquisas referentes à formação em saúde mental, alegando uma escassez de produções acadêmicas nessa temática. E por fim, expõe a importância da intensificação dos conhecimentos em saúde mental como forma de superação das “fragmentações no campo da pesquisa, ensino e assistência de melhor qualidade, como preconiza o Sistema Único de Saúde.” (LINOet al, p.91, 2016).

Frente ao cenário político atual que exige resistência aos desmontes sistemáticos promovidos pelo governo neoliberal vigente, e as pesquisas recentes que demonstram uma não superação dos modelos asilares de saúde mental, é necessário a continuidade nos estudos acerca das práticas atuais de saúde mental e seus alinhamentos com o paradigma antimanicomial.

Dessa forma, a presente pesquisa tem como objetivo identificar e analisar como os cursos de Medicina e Psicologia da PUC-SP abordam os temas da Reforma Psiquiátrica e das práticas antimanicomiais ao longo dos anos de graduação.

Documentos relacionados