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2. JORNADA SOCIAL E UNIVERSITÁRIA: UMA EXPLORAÇÃO TEÓRICA 1 A socialização como elemento fundamental da jornada da vida social

2.2. A Universidade e sua identidade: mais um espaço de socialização

Uma nova socialização que acontece no ambiente universitário, bem como se dá em qualquer outro espaço, é, em muitos aspectos, delineada pela própria estrutura institucional, pelas relações estabelecidas com os pares, com a própria dinâmica do espaço e pelo caminho que cada pessoa pode e deseja traçar.

A forma como essas relações se estabelecem e o caminho que cada indivíduo assume, porém, não é, simplesmente, uma postura ou colocação unilateral de cada um. A experiência com os outros, de algum modo, nos constrói e delineia os nossos caminhos sem que, algumas vezes, tenhamos consciência disso. A organização e as estruturas da instituição, por sua vez, têm também poder de influenciar a maneira como as relações se estabelecem e os percursos individuais são traçados.

Nessa perspectiva, apresento o segundo relato impressionista da minha experiência na Université de Lorraine, que nos ambienta na noção de como a Universidade e sua identidade característica, que podemos considerar como comum no ambiente acadêmico do Brasil e da França, é o de ser esse espaço de socialização, no qual as relações que estabelecemos conduzem nosso percurso na instituição.

Depois de uma observação numa aula sobre educação especial, uma menina resolveu falar comigo e me pediu um contato para que a gente pudesse se comunicar. A menina era Marion, uma jovem muito simpática de 21 anos, estudante do terceiro ano de psicologia. Ela me enviou um e-mail dizendo que, provavelmente, eu só devia estar vendo coisas adoráveis sobre a universidade e a socialização dos estudantes, mas que, se eu quisesse, ela poderia conversar comigo sobre muitas coisas não positivas que aconteciam por lá. Diante do desejo dela de falar e da minha curiosidade, não pude recusar. 7 dias depois, nos

Ela disse que sonha em ser professora e explicou que, geralmente, quem cursa ciências da educação, tem que, antes, no primeiro ano, fazer outro curso, como história, letras, psicologia… inclusive, psicologia e ciências da educação, parece o caminho mais comumente traçado pelos alunos. E assim Marion pretendia fazer. Porém, ao longo desse primeiro ano de curso, Marion encontrou com pessoas com quem teve inimizades e isso a fez permanecer em psicologia, já que essas outras pessoas partiram para ciências da educação. Hoje, Marion ainda lida com essas pessoas em aulas coletivas, como foi a de educação especial, e ainda vive momentos ruins. Ela contou que no dia da aula, por exemplo, duas meninas chutaram, por trás a cadeira dela, só porque ela tinha se virado para pedir silêncio. Os planos de Marion são de traçar outros caminhos mais difíceis para chegar ao seu sonho. E isso me fez pensar profundamente como as relações podem influenciar as trajetórias universitárias e de vida uns dos outros. Parei para me questionar o quanto meu percurso é audácia minha e influência dos outros… Intrigante, né?!

Muitos estudantes, ao longo da jornada acadêmica, podem não perceber a influência que os colegas (e também professores) exercem sobre o seu percurso e escolhas acadêmicas e até mesmo profissionais e pessoais. Mas essa influência existe.

E todas essas relações se passam num meio ambiente universitário muito característico, cuja história construiu as atuais estruturas que comportam os integrantes dessa instituição (professores, alunos, funcionários administrativos, etc.) e suas relações.

A Universidade que conhecemos hoje no Brasil é reflexo de um longo percurso histórico e as marcas desse percurso são, inevitavelmente, partícipes da vivência estudantil.

As universidades brasileiras são hoje baseadas em 3 grandes pilares: o ensino, a pesquisa e a extensão. Todavia, nem todas as universidades no mundo são assim e nem mesmo a própria Universidade nasceu com todos esses pilares no Brasil.

Historicamente, temos o registro de que ainda antes de Cristo, com outra estruturação, surgiu uma instituição semelhante ao que chamamos hoje de Universidade, em Alexandria, em uma cultura bem distinta da nossa sociedade ocidental contemporânea. Mas a primeira instituição universitária cujo modelo foi o

berço do que conhecemos hoje, foi a de Bolonha, fundada em 1088, seguida pela de Paris (BORTOLANZA, 2017).

Nesse período inicial a relação das universidades com o poder da Igreja, o qual se fundia com as outras formas de poder das sociedades européias da idade média, era bastante intensa e o foco das atividades universitárias era o ensino.

Um só pilar, o do ensino, sustentou a Universidade do século XI até o século XIX, quando surgiu a moderna pioneira Universidade de Humboldt, em Berlim, na Alemanha. Esse novo modelo direcionava o foco universitário para uma formação pela ciência e para a pesquisa (PAIVANDI, 2015).

Já a extensão universitária dá os seus primeiros sinais no fim do século XIX, na Inglaterra, espalha-se um pouco pela Europa, mas só com uma experiência nos Estados Unidos, junto ao governo de Theodore Roosevelt, no início do século XX, é que a extensão universitária passa a ter mais prestígio e visibilidade (PAULA, 2013).

E assim, aos poucos, nasceram os 3 grandes pilares que compõem o que conhecemos hoje como a nossa universidade. Portanto, diante desse percurso histórico, nos parece evidente que alguns desses pilares tenham mais espaço e prestígio do que outros, e que, também naturalmente, ocupem maior ou menor espaço na vivência estudantil. Hierarquicamente, nas universidades brasileiras, de forma geral, o ensino e a pesquisa têm maior prestígio social do que a extensão, por exemplo.

Porém, o que é indubitável é que, para um estudante, a entrada num ambiente tão histórico e complexo como é a universidade, se configura como uma “aventura”, um desafio diante da sociedade e de si mesmo. Para o iniciante da vida universitária, esta nova instituição é um novo mundo a se desbravar.

Esse é um novo espaço que

“[...] constitui um momento crucial na construção de um tipo de aprendizado complexo, variado, pensado em função de uma articulação de diferentes tipos de saberes e de suas mobilizações posteriores nas situações reais”4(PAIVANDI, 2015, p. 10)

Ou seja, quando se entra na universidade, é preciso aprender muito sobre diversas coisas e ainda vislumbrar o processo explícito de formação para o exercício

profissional a partir desses conhecimentos. Em acréscimo a isso, a entrada no ambiente universitário ainda exige significativa autonomia para que esses diferentes saberes sejam mobilizados, articulados e direcionados. Mas essa consciência se inicia com um choque inicial, pois é preciso efetuar uma rápida mudança no status de educando, do ambiente escolar do ensino médio, como estudante imaturo e tutelado para a autodeterminação do estudante universitário autônomo. E disso decorre um sentimento de incapacidade que precisa ser superado. “Passada a euforia pelo ingresso no curso superior, os estudantes têm a impressão de que foram ‘promovidos’ para um nível avançado de incompetência escolar” (FERREIRA, 2014, p. 117) e nessa nova jornada, o estudante descobre e constrói um novo mundo e um novo si mesmo, uma nova identidade.

Nesse mesmo sentido, segundo Saeed Paivandi (2019), os estudos feitos por diversos pesquisadores em diversos países apontam que a saída do ensino médio e a entrada no ensino superior, especialmente nas universidades, é uma ruptura no plano cognitivo e grande desafio enfrentado pelos estudantes.

Ainda com essa mesma perspectiva de carreira de estudante, Alain Coulon (1997) identificou um claro processo de adaptação e afiliação do novo estudante no meio universitário. Para ele, inicialmente, os novos estudantes passam por uma série de rupturas simultâneas diante de seus antigos hábitos escolares; diante de sua vida familiar; da sua organização do tempo, que agora implica e permite muito mais autonomia; da sua relação com o espaço, o qual é infinitamente maior do que as salas e corredores das escolas de ensino médio; das regras, que são mais complexas do que nas escolas; e das relações com os saberes, os quais são mais complexos em si mesmos e ainda estabelecem uma relação com uma atividade profissional futura. Enfim, perante tudo isso, Coulon (1997) denomina essa fase inicial como o tempo de estranhamento.

Num segundo momento, Coulon (1997), diante de seus estudos, indica que acontece um período doloroso, feito de dúvidas e incertezas. Nele o estudante não tem mais, tão fortemente, as memórias do seu passado escolar, mas também ainda não vislumbrou o futuro mais claramente. É um estágio de aprendizado complexo e indispensável para a sua passagem para a vida universitária mais ampla, e a esse período o autor denomina como tempo de aprendizagem.

Por fim, viria, para o autor, um tempo de maior segurança diante da vivência institucional e da desistência, por exemplo, viria o momento da agregação, da passagem definitiva para um novo status, reconhecido não apenas por uma matrícula ativa, mas por pares, o status de: estudante. Viria, então, para Coulon (1997, p. 2), “[...] a maneira pela qual qualquer pessoa adquire um novo status social”: a afiliação; portanto, esse novo tempo é o chamado tempo de afiliação. E este é o “ponto de chegada” desejado, pois segundo o autor, “[...] a entrada na universidade de nada serve se ela não é acompanhada de um processo de afiliação”. Diante desse processo afiliativo que os estudantes fazem, os autores especialistas ainda nos evidenciam que existe todo um contexto universitário cheio de nuances próprias que fazem esses processos serem ainda mais característicos diante dos demais processos sociais.

Paivandi (2015) faz uma breve retrospectiva de como o contexto universitário é esboçado na pesquisa internacional e levanta alguns pontos fundamentais desse cenário. Um deles é que a percepção e a apreciação estudantil são elementos importantes no engajamento intelectual significativo e também numa implicação mobilizadora. Nesse sentido, Lizzio, Wilson e Simons (2002, p. 28) reforçam ainda que “[...] é a percepção estudantil de seu meio ambiente de aprendizagem, diante de suas motivações e expectativas, que determina como os fatores situacionais influenciam as abordagens de aprendizagem e os resultados dessa aprendizagem”5.

Outro elemento levantado na breve revisão feita por Paivandi (2015) é o dessa aprendizagem não ser, simplesmente, um processo cognitivo, nem o estudante reduzido a um ser discreto e estático. Ferreira (2014) acrescenta ainda que o processo de aprendizagem é indivisível em seus aspectos subjetivos, individuais e os aspectos sociais e culturais. Portanto, a abordagem fomentada pelos professores pode influenciar de forma direta como os estudantes aprendem (PAIVANDI, 2015).

Por fim, Paivandi (2015) ressalta ainda que os autores os quais se debruçam a pensar o ensino superior evidenciam uma contribuição intensa e positiva (não apenas, simplesmente, única) para permanência, sucesso e adoção de uma

abordagem mais autônoma e cooperativa de aprendizagem, dos laços e das relações dos estudantes com o meio ambiente de estudos e, especialmente com seus pares.

Para além desses elementos do ambiente mais geral do ensino superior, para nós também é importante destacar que dentro desse contexto, e diante desses diversos elementos, os estudantes desenvolvem diferentes tipos de abordagens de aprendizado. Para Entwistle (1986), por exemplo, existem três grandes diferentes tipos: a superficial, a profunda e a estratégica. A abordagem superficial estaria ligada ao foco na atividade e na memorização mecânica; a abordagem profunda seria ligada a uma compreensão intencional com busca ao significado subjacente das coisas estudadas; e a abordagem estratégia se configura como uma mescla entre ambas, com diferentes ênfases em diferentes circunstâncias.

Esses aprendizados, por sua vez, acontecem todos num meio ambiente pedagógico, o qual, segundo Paivandi (2015), divide-se em três níveis e possui quatro grandes componentes. Para o autor, os três níveis que compõem o meio ambiente pedagógico são: o meio global da universidade, com suas dimensões históricas, disciplinares, sociais, culturais e simbólicas (1); a categoria do próprio departamento ou curso, podendo ser em níveis de pós graduação, bacharelado ou licenciatura, tecnólogo, técnico, etc (2); e o microcontexto das componentes curriculares, em aspectos de diálogo, tensão, cooperação, respeito, direito de cometer erros, descoberta de si, responsabilidade, autoconfiança, avaliação, engajamento, que compõem o meio ambiente pedagógico local (3).

Ainda para Paivandi (2015), os quatro grande componentes desse ambiente pedagógico são: o conteúdo, composto pelo programa, exercícios propostos, tipos de saberes ofertados e o próprio conteúdo (1); a concepção de ensino, que se expressa também na natureza e no tipo de avaliação, nas condições materiais e nas técnicas e métodos pedagógicos (2); o contexto humano, que se faz visível nos tipos de comunicação, nas interações entre os parceiros, entre os estudantes e as relações fora do contexto das componentes curriculares e do próprio curso (3); e o status, que está ligado ao tipo de curso e ao lugar que se ocupa dentro da organização dos diferentes níveis desse contexto pedagógico (4).

Diante de tudo isso exposto, podemos perceber o quanto as universidades constituem-se, de fato, um vasto universo para a pesquisa e reflexão. Apesar de terem passado tanto tempo sem olhar para si mesma como objeto de estudo (ALAVA; ROMAINVILLE, 2001), agora os pesquisadores conseguem, aos poucos, desenvolver um amplo e articulado processo de investigação do que é a universidade, as característica do seu ambiente e, especialmente, como se estabelecem as relações que os seus principais atores (estudantes, professores, gestores e demais funcionários) vivenciam dentro do contexto universitário.

Nessa lógica, o interesse aqui explorado de aprofundar os conhecimentos acerca da relação dos estudantes de um curso com os de outras áreas, amplia ainda mais a noção de como os universitários experimentam a realidade da educação superior para além das provas, do currículo e das estruturas fixas.

As pesquisas nessa ótica vêm acontecendo porque, aos poucos, se é entendida a função singular e catalisadora que a universidade exerce na vida das pessoas que passam por ela, em especial, dos estudantes; e também porque o seu papel diante da sociedade vem, a cada dia se difundindo e se transformando. Mas sempre, a universidade, caracteriza-se como uma instituição de função imprescindível perante o desvelamento do mundo, seja para compreendê-lo ou para recriá-lo.

2.3. Uma nova Universidade para um novo mundo: a expansão universitária