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7 PARLAMENTO E JORNAIS: MEIOS DE PROPAGANDA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO DIREITO

2.1 A velha/nova questão social: flores do mal

Na análise teórica e histórica sobre o conceito questão social, são consideradas – nesta exposição – velhas e novas características e dimensões que demarcam as suas várias formas de manifestação, situadas historicamente no modo de produção capitalista, conforme sugere Montaño (2012, p. 280):

“questão social”, como fenômeno próprio do MPC, constitui‑se da relação capital trabalho a partir do processo produtivo suas contradições de interesses e suas formas de enfrentamento e lutas de classes. Expressa a relação entre as classes (e seu antagonismo de interesses) conformadas a partir do lugar que ocupam e o papel que desempenham os sujeitos no processo produtivo.

Esse pensamento ganha pertinência a partir da escolha metodológica de uso da abordagem histórico-crítica como referência central na construção desta tese. Mesmo reconhecendo a multiplicidade de concepções, algumas, inclusive, visivelmente conservadoras, umbilicalmente ligadas à gênese da assistência social, não serão destacadas nessa compilação ideias liberalizantes que segmentam a questão social concebendo-a como

14 As flores do mal, título do livro de poema do francês Charles Baudelaire, publicado em 1857, retrata as

frustrações e desejos de um tempo histórico: os movimentos revolucionários da França moderna. Com um estilo ousado e provocador, o escritor denunciou a miséria que envolvia a sociedade parisiense.

problemas sociais, disfunções do sistema, associados à moralidade dos indivíduos, numa perspectiva funcionalista. Nem serão discorridos os pensamentos que, mesmo incluindo a temática na ordem social do capital, reduzem à questão social problemas associados aos pífios resultados de determinado estágio do desenvolvimento, colocando-a na agenda institucional de gestão dos problemas sociais.

Implica dizer, portanto, que serão priorizadas nesta exposição abordagens de base marxiana que incorporam nas análises o entrelaçamento dos fundamentos econômicos – estrutura da produção/reprodução – e políticos – luta dos trabalhadores contra a exploração – que regem a ordem social capitalista.

A questão social desabrochou na “primavera dos povos”,15 em meados do século XIX no templo sagrado da bélle époque – a cidade de Paris, na efervescência dos movimentos revolucionários, quando se intensificou a luta de classes, em plena crise econômica europeia.

Baudelaire (1857), poeta francês considerado na época um grande ofensor da moral pública, circulando pela periferia da metrópole que se erguia no tempo das luzes e envolvido com todas as mazelas decorrentes do processo acelerado de industrialização/urbanização, cantou em versos o mal-estar da nova cidade, no poema “Embriaguem-se” da obra As flores do mal:

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso. Com quê? Com vinho, poesia ou virtude a escolher. Mas embriaguem-se.

O polêmico escritor da modernidade manifestou em sua arte a construção social de homens e mulheres na emergente vida moderna nas cidades, reino do egocentrismo, onde o indivíduo se torna o centro das atenções, para quem se voltam todas as estratégias do

15 Entre vitórias e derrotas, o conjunto de revoluções europeias eclodidas no final do século XIX inscreveu-se na

história como a Era das Revoluções. “Na França, o centro natural e detonador das revoluções europeias [...], a república foi proclamada em 24 de fevereiro. Por volta de 2 de março, a revolução havia ganho o sudoeste alemão; em 6 de março a Bavária, 11 de março Berlim, 13 de março Viena, e quase imediatamente a Hungria; em 18 de março Milão e, em seguida, a Itália (onde uma revolta independente havia tomado a Sicília). [...] Em poucas semanas nenhum governo ficou de pé numa área da Europa que hoje é ocupada completa ou parcialmente por dez estados, sem contar as repercussões em um bom número de outros. Além disso, 1848 foi a primeira revolução potencialmente global, cuja influência direta pode ser detectada na insurreição de 1848 em Pernambuco (Brasil) e poucos anos depois na remota Colômbia. Num certo sentido, foi o paradigma de um tipo de „revolução mundial‟ com o qual, dali em diante, rebeldes poderiam sonhar e que, em raros momentos como no após-guerra das duas conflagrações mundiais, eles pensaram poder reconhecer” (HOBSBAWN, 1982, p. 26).

mercado. Sua obra se espraiou por todo o mundo, ecoada no Brasil nos versos de Carlos Drummond de Andrade em “Poema da Necessidade”:

É preciso estudar volapuque, é preciso estar sempre bêbado, é preciso ser Baudelaire,

é preciso colher as flores de que rezam os velhos autores. É preciso viver com os homens,

é preciso não assassiná-los,

é preciso ter mãos pálidas e anunciar o fim do mundo.

Na relação dialética vida/arte, revela-se o traço mais marcante do modo de vida imposto pela emergente burguesia de um padrão de acumulação primitiva: a contradição entre o individualismo exacerbado requerido por uma sociedade liberal que ganha forma e conteúdo sob os princípios regentes da expansão do capitalismo concorrencial e a necessidade de preservação de uma ordem política e moral capaz de conter os previsíveis riscos de fraturas.

A liberdade que favorecia as empresas era demasiado forte, demasiado selvagem para os que podiam apenas suportá-la. A liberdade e o individualismo triunfantes comportam uma face sombria: a individualidade negativa de todos aqueles que se encontram sem vínculos e sem suportes, privados de qualquer proteção e de qualquer reconhecimento (CASTEL, 1998, p. 45).

No contexto da recente sociedade industrial, a governabilidade liberal sustentada na contratualidade entre indivíduos fracassa na sua tarefa de contenção das tensões sociais pela via da moralidade individual e das trocas entre possuidores e (des)possuidores, constituindo- se uma verdadeira ameaça à ordem moral e política requerida à reprodução e expansão do capital industrial.

Foi o triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico repousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais caro. Uma economia assim baseada, e, portanto repousando naturalmente nas sólidas fundações de uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e inteligência, elevou-os a tal posição, deveria – assim se acreditava – não somente criar um mundo de plena distribuição material, mas também de crescente felicidade, oportunidade humana e razão, de avanço das ciências e das artes, numa palavra, um mundo de contínuo e acelerado progresso material e moral (HOBSBAWN, 1982, p. 17).

Na análise do historiador, se a revolução industrial inglesa criou condições para que a sociedade burguesa se completasse historicamente, os movimentos revolucionários nascidos da França romperam com a aparente simetria e unidade da ordem social em curso.

Atrás dos ideólogos políticos burgueses estavam as massas, prontas para transformar revoluções moderadamente liberais em revoluções sociais. Por baixo e em volta dos empresários capitalistas, os "pobres proletários", descontentes e sem lugar, que agitavam e se insurgiam (HOBSBAWN, 1982, p. 18).

A “primavera dos povos” no século XIX – uma primavera cultivada16 – fez florescer novas ideias no campo político e social, pondo em xeque certezas até então difundidas pelo ideário burguês da modernidade. Do ponto de vista político, o amadurecimento do capitalismo desnudou os princípios norteadores da cidadania liberal, desmistificando a desigualdade de oportunidades e a chamada liberdade individual, argumenta Neves (1994).

Do mesmo modo, floresce uma semente, até então ignorada na dimensão pública: o social. Mais do que pobreza e desigualdade, a questão social, diz Iamamoto (2009, p. 31), “[...] expressa a banalização do humano, resultante de indiferença frente à esfera das necessidades das grandes maiorias e dos direitos a elas atinentes”.

“Direito ao trabalho” foi o grito de guerra de homens e mulheres que, unidos, se entrincheiraram em barricadas para derrubar, em fevereiro de 1848, a monarquia constitucional do rei Luis Felipe, da dinastia de Órleans. [...] Na verdade, a luta pelo direito de trabalhar lançou um sério desafio aos planos republicanos de reforma eleitoral, pois introduziu os problemas conhecidos como a “questão social” nas discussões sobre direitos políticos (SCOTT, 2002, p. 107-108).

A luta trouxe para a cena pública a constatação de que a solução para os problemas da pobreza e das desigualdades, em governos democráticos, não deveriam surgir da filantropia privada, mas do justo atendimento a direitos inalienáveis.

16 A botânica diferencia a primavera comum, da qual brotam naturalmente flores silvestres nos campos e

florestas, da primavera cultivada, de onde emergem os belos jardins com plantas e flores ornamentais (Disponível em: www.dicio.com.br. Acesso em: 3 dez. 2013).

Na apreciação do historiador Hobsbawn (1982, p. 40) sobre as conquistas desse tempo histórico, “os defensores da ordem social precisaram aprender a política do povo. Esta foi a maior inovação trazida pelas revoluções de 1848”. A expansão das atividades trabalhistas e o crescente movimento de organização dos trabalhadores desafiaram as forças burguesas a adotarem uma política de reformas sociais que viabilizasse o reconhecimento da luta dos trabalhadores, colocando-se, ao mesmo tempo, como estratégias de controle do ímpeto revolucionários dos movimentos.

Sem dúvida, o tempo das luzes trouxe consigo o aprofundamento da questão social. Na fase monopolista da ordem do capital, as condições de trabalho da classe trabalhadora são cada vez mais aviltantes. Na flexão do processo de produção e reprodução das condições de vida, da cultura e da riqueza, a questão social assume múltiplas configurações e matizes. Afirmam Behring e Santos (2009, p. 271):

A questão social, nessa perspectiva, é expressão das contradições inerentes ao capitalismo que, ao constituir o trabalho vivo como única fonte de valor, e, ao mesmo tempo, reduzi-lo progressivamente em decorrência da elevação da composição orgânica do capital – o que implica um predomínio do trabalho morto (capital constante) sobre o trabalho vivo (capital variável) – promove a expansão do exército industrial de reserva (ou superpopulação relativa) em larga escala.

Numa outra linha de raciocínio sobre o modo de produzir-se e reproduzir-se do capital, o conceito de questão social, em Castell (1998), restringe-se a uma certa naturalização de uma contradição insolúvel que expõe para a sociedade burguesa o enigma de sua coesão e o desafio de criar mecanismos que possam conter o risco de sua fratura.

Se um único fator dominava a vida dos trabalhadores do século XIX, este fator era a insegurança. Eles não sabiam no princípio da semana quanto iriam levar para casa na sexta-feira. Eles não sabiam quanto tempo iria durar o emprego presente ou, se viessem a perdê-lo, quando voltariam a encontrar um novo trabalho e em que condições. Eles não sabiam que acidentes ou doenças iriam afetá-los, e embora soubessem que algum dia no meio da vida – talvez 40 anos para os trabalhadores não especializados, talvez 50 para os especializados – iriam se tornar incapazes para o trabalho pleno e adulto, não sabiam o que iria acontecer então entre este momento e a morte (HOBSBAWN, 1982, p. 227).

Antes do movimento revolucionário dessa época, não existia nada assemelhado às seguranças sociais da modernidade, senão a caridade – às vezes, nem mesmo isso, narra o historiador. Os trabalhadores pobres e os pobres não trabalhadores, embora unidos pelo destino imposto a cada um deles – homens e mulheres –, a condição possível de operários, viram-se divididos pela condição de permanente precariedade como classe trabalhadora: “trabalhadores respeitáveis” – inseridos diretamente na exploração da força do trabalho – e os “trabalhadores não respeitáveis” – os pobres fora do mercado de trabalho.

É nesse cenário de expansão e crise do capitalismo do século XIX que as contradições de classes ganham visibilidade. De um lado, as pressões por medidas protecionistas da emergente indústria. De outro, as pressões por proteção social do trabalho.

Na análise de Hobsbawn (1982), os anos pós-primavera foram tempos ensolarados. As reivindicações dos trabalhadores por segurança social, por medidas contra o desemprego, por salários dignos, tornaram-se audíveis e politicamente eficazes, fazendo emergir um “novo Estado”: intervencionista, mais forte, e dentro dele uma política mais democrática.