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CAPÍTULO II Os Acordos Prévios sobre Preços de Transferência

5. Os acordos prévios sobre preços de transferência

5.2 Os acordos prévios na União Europeia

Em outubro de 2002, a Comissão Europeia procedeu à criação do Fórum conjunto da UE sobre preços de transferência (FCPT), tendo apresentado diversas comunicações com propostas de soluções pragmáticas para a resolução dos problemas originados pela coexistência de várias normas nacionais independentes em matéria de preços de transferência.48

Neste sentido, em 2007 a Comissão Europeia adotou a Comunicação da Comissão Europeia ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu, relativa às atividades do Fórum Conjunto da UE sobre Preços de Transferência no domínio da prevenção e resolução de litígios e às directrizes para os acordos prévios em matéria de preços de transferência na UE. No âmbito de tal Comunicação foi adotada uma visão bastante mais aberta à utilização dos acordos prévios do que aquela que parece pautar o comportamento da Comissão Europeia atualmente, tendo as conta as suas recentes decisões neste âmbito.49 À data a Comissão Europeia chegou a considerar que um sistema de acordos prévios seria mesmo capaz de eliminar toda a dupla tributação na EU.50

Segundo a Comissão, as Diretrizes em causa fornecem pistas úteis para os processos de acordos sobre preços de transferência em toda a União Europeia e, seguindo-as, os Estados-Membros incentivariam o recurso a este mecanismo, de forma a obter uma melhor prevenção e diminuição do número de litígios, bem como limitação dos casos de dupla tributação. Além disso, a Comissão Europeia acreditava que incentivo de tal prática eliminaria barreiras fiscais e contribuiria para a realização de

48 Sendo que a primeira propunha um Código de Conduta para a aplicação da Convenção relativa à

eliminação da dupla tributação com vista a tornar mais eficaz a sua aplicação e a segunda propunha um Código de Conduta relativo à documentação dos preços de transferência na UE.

49 Referimo-nos às decisões emitidas no âmbito das investigações da Comissão, designadamente, à

decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Starbucks (2015) e decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Apple (2016), supra n. 6., entre outras.

50

Comissão Europeia, Comunicação ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu, relativa às atividades do Fórum Conjunto da UE sobre Preços de Transferência no domínio da prevenção e resolução de litígios e às directrizes para os acordos prévios em matéria de preços de transferência na UE,, p. 5.

“objetivos primordiais do mercado interno: um clima mais propício ao investimento, à competitividade das empresas e à criação de emprego”.51

As Diretrizes começam por referir que os acordos prévios fornecem segurança quanto ao tratamento fiscal das operações por eles abrangidas, tanto em benefício da administração tributária, que fica dispensada de proceder a inspeções de modo a confirmar/corrigir a determinação dos preços de transferência, como dos contribuintes que “ficariam a saber como determinar preços de transferência corretos”, evitando assim litígios desnecessários.52

Dadas as vantagens da adoção de tal mecanismo a Comissão Europeia entendeu ser conveniente definir um processo de acordos prévios eficaz, concretizando-o nas referidas Diretrizes que definem as quatro fases que normalmente devem estar presentes na elaboração deste tipo de acordos (fase preliminar/pedido informal, pedido formal, avaliação e negociação do acordo e conclusão formal do acordo), descrevendo o desenrolar de cada uma delas.

Neste sentido, o processo deveria começar com uma fase preliminar e informal em que tanto o contribuinte como a administração fiscal do respetivo Estado avaliassem a possibilidade de obter um acordo prévio bem-sucedido. É então recomendada uma “lista” não exaustiva de informações básicas a serem instruídas com o pedido por parte do contribuinte, que deve incluir, pelo menos, a descrição da atividade e operações a incluir, bem como os países que devem ser envolvidos no processo. Esta informação deve ser utilizada pela administração fiscal para decidir sobre a admissibilidade do pedido e, sempre que necessário, consultar as autoridades competentes dos outros Estados incluídos no processo. Nesta fase deve também ser discutido entre as partes a documentação que deve ser anexada ao pedido formal.

Após a discussão inicial entre o contribuinte e as administrações fiscais envolvidas, deve ter lugar a apresentação de um pedido formal por parte do contribuinte, simultaneamente a todas as administrações fiscais dos países interessados,

51 Comunicação da Comissão (2007), supra n. 40, p. 8. 52 Ibid.

que devem logo que possível informar o contribuinte sobre a aceitação do pedido. No pedido formal devem ser apensadas todas as informações necessárias para que a administração fiscal possa avaliar o pedido e decidir a metodologia a utilizar ulteriormente para determinar o preço de plena concorrência, ainda que as administrações fiscais possam exigir informações suplementares para efeitos da avaliação do pedido.

No seguimento da aceitação do pedido formal, deve ter lugar a fase de avaliação e negociação do acordo prévio, devendo ser adotada uma abordagem equilibrada, sendo mesmo estabelecido um calendário para o processo em questão, com a participação ativa do contribuinte. No caso dos acordos prévios multilaterais pode inclusive ser designada uma das autoridades envolvidas como competente por liderar o processo, sendo ainda previsto que todas as informações partilhadas pelo contribuinte devem ser transmitidas às outras administrações fiscais envolvidas, sendo que cada uma delas deverá preparar uma tomada de posição por escrito, na qual figure a sua avaliação quanto ao acordo.

A fase de avaliação e negociação seria então seguida da conclusão formal do acordo prévio que implicaria, no caso dos acordos bilaterais ou multilaterais, um convénio formal entre as administrações fiscais interessadas em que se encontrem especificados os termos e condições do acordo, de modo a conceder garantias quanto ao tratamento fiscal das operações tanto ao contribuinte, quanto aos Estados envolvidos no processo.

Neste âmbito a Comissão Europeia reconheceu que as especificidades nacionais condicionam legitimamente o modo como a administração fiscal gere o seu programa de acordos prévios. Ademais, embora fosse admitido um certo nível de “negociação” com o contribuinte na determinação do acordo prévio, a verdade é que já em 2007, aquando da emissão das Diretrizes, a Comissão Europeia fazia referência ao princípio da plena concorrência, indicando que os acordos prévios deveriam definir, com base nesse

princípio, os métodos de determinação dos preços de transferência para as operações por eles abrangidas.53

A Comissão Europeia entendia ainda que “embora possa haver circunstâncias em que o contribuinte tenha boas razões para crer que um acordo prévio unilateral é mais indicado do que um bilateral, os segundos são preferíveis aos primeiros”, uma vez que no entender da Comissão Europeia é necessário assegurar que o mesmo é “compatível com princípio da plena concorrência” e que tal era mais provável no caso dos acordos celebrados com mais de um Estado.54

A análise do conteúdo das diretrizes permite perceber que já há mais de uma década a Comissão Europeia entendia que o princípio da plena concorrência deveria pautar o estabelecimento dos acordos prévios em que fossem fixados preços de transferência.

De facto, os APPT encontram-se já há algum tempo na mira da Comissão Europeia, havendo dois indícios significantes dessa maior atenção aos eventuais problemas inerentes aos mesmos.

Em primeiro lugar, as investigações da Comissão, iniciadas em meados de 2013, ocasião em que a Comissão enviou a todos os Estados-Membros um questionário extenso sobre as suas práticas em matéria de auxílios de Estado e que continuam a decorrer até ao momento, prevendo-se que possam ser iniciadas novas investigações devido à quantidade substancial de informação disponibilizada. O objetivo da Comissão é claro, identificar os APPT que sejam utilizados como forma de reduzir a carga fiscal das respetivas empresas envolvidas, com o aval dos Estados-Membros em causa.

As afirmações da Comissária Margrethe Vestager, reproduzidas no comunicado de imprensa da Comissão Europeia de 21 de outubro de 2015, no âmbito dos Casos

Starbucks e Fiat, demonstram bem essa intenção, ao referir que os “acordos fiscais que reduzem artificialmente a carga fiscal das empresas não respeitam as regras da UE em

53 Comunicação da Comissão (2007), supra n. 40, p. 9. 54 Ibid., p. 17.

matéria de auxílios estatais e são, por isso, ilegais”, acrescentando ainda que com as

decisões adotadas pela Comissão, esperava que a mensagem fosse “ouvida pelos

governos dos Estados-Membros e pelas empresas. Todas as empresas, grandes ou pequenas, multinacionais ou não, devem pagar a parte do imposto que lhes

corresponde”.55

Além do desenvolvimento das investigações com o intuito de identificar APPT incompatíveis com o mercado único, em 28 de janeiro de 2016, a Comissão Europeu divulgou o seu “Pacote Antielisão Fiscal” no qual convidou os Estados-Membros a tomarem uma posição mais firme e coordenada contra as empresas que procuram evitar o pagamento da parte de imposto que lhes corresponde e a aplicarem as normas internacionais de combate à erosão da base tributável e à transferência de lucros. As propostas em questão basearam-se em três pilares fundamentais, designadamente: (i) Garantir uma tributação efetiva na EU; (ii) promover uma maior transparência fiscal; e (iii) garantir condições de concorrência equitativas.56

No que se refere particularmente aos APPT, no âmbito do Pacote Antielisão a Comissão propôs que todos os acordos transfronteiriços fossem sujeitos à troca automática de informação, iniciativa que se veio a concretizar na Diretiva relativa à troca automática de informações obrigatória no domínio da fiscalidade 57, que sofreu a sua última alteração em 2016.

A partir de 1 de janeiro de 2017 os Estados-Membros ficaram obrigados a proceder à troca de informações sobre APPT, independentemente do facto de o contribuinte ter acatado os termos da decisão fiscal prévia transfronteiriça ou do acordo

55 Comissão Europeia, Comunicado de Imprensa: Vantagens fiscais seletivas concedidas à Fiat no Luxemburgo e à Starbucks nos Países Baixos, 21 de outubro de 2015.

56

Vd., Comissão Europeia, Comunicado de Imprensa: Justiça fiscal: Comissão apresenta novas medidas

contra a elisão fiscal das empresas, 28 de janeiro de 2016 , Pacote Antielisão Fiscal, janeiro de 2016, e, Commission Staff Working Document - Anti Tax Avoidance Package: Next Steps towards delivering effective taxation and greater tax transparency in the EU, 28 de janeiro de 2016.

57

Diretiva 2011/16/EU, do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade, alterada pelas seguintes Diretivas: Diretiva 2014/107/UE, do Conselho, de 9 de dezembro de 2014; Diretiva (UE) 2015/2376, do Conselho, de 8 de dezembro de 2015; e Diretiva (UE) 2016/881, do Conselho, de 25 de maio de 2016.

prévio sobre preços de transferências. As informações em questão devem ser comunicadas pelo respetivo Estado-Membro após a sua emissão, alteração ou renovação em intervalos regulares. Ademais, os Estados-Membros apenas ficam autorizados a excluir das comunicações realizadas neste âmbito os APPT alterados ou renovados antes de 1 de abril de 2016, em relação a uma determinada pessoa ou a um grupo de pessoas, com exceção daquelas pessoas ou grupos que exerçam principalmente atividades financeiras ou de investimento, e cujo volume de negócios líquido anual seja, no conjunto do grupo, inferior a EUR 40.000.000, no exercício que antecede a data de emissão, alteração ou renovação do APPT.58

Em conclusão, a partir de 2017 a Comissão conseguiu ter acesso automático aos APPT mais relevantes emitidos dentro da União, no entanto, os seus esforços direcionados a aumentar a transparência fiscal continuam a ser desenvolvidos.

Um exemplo bastante explícito dos esforços da Comissão tem sido a pressão constante no sentido de tornar públicos os relatórios país por país (“country-by-country

reporting”), de modo a tornar acessível a todos os cidadãos da União Europeia

informações como o lucro tributável e imposto efetivamente pago pelos grupos multinacionais nos diferentes Estados-Membros bem como, e especialmente, nas jurisdições consideradas paraísos fiscais. De acordo com as informações mais recentes, a proposta da Comissão relativa à publicidade destes relatórios59, pelo menos em relação aos grupos sedeados na União Europeia ou não, mas que aí desenvolvam atividade de forma permanente, e cujo volume de negócios consolidado a nível mundial seja igual ou superior a EUR 750.000.000, encontra-se neste momento a ser estudada tanto pelo Parlamento Europeu como pelo Conselho.60

58 A título de curiosidade, em Portugal estas obrigações encontram-se transpostas na Lei n.º 98/2017, de

24 de Agosto.

59

Comissão Europeia, Fact Sheet: Introducing public country-by-country reporting for multinational

enterprises - Questions & Answers, 12 de abril de 2016.

60 Parlamento Europeu, European Parliament Think Tank Briefing: Public country-by-country reporting by multinational enterprises, 26 de abril de 2019.

CAPÍTULO III

OS AUXÍLIOS DE ESTADO NO DIREITO EUROPEU