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A multiplicidade em diferentes espaços

A dissertação que apresento se constituiu através de movimentos nas escolas multisseriadas do campo em Caçapava do Sul/RS. Em idas e vindas, paradas e partidas, através de documentos, entrevistas, observações e caminhadas trago algumas considerações e recortes para que possa analisar o chão que pisei, o espaço que observei e as possibilidades de ver como a Educação do Campo se constituiu ou se constitui nos espaços multisseriados nesta cidade.

Como diz Larrosa, o que proponho é “abrir uma reflexão sobre nossas próprias experiências de escrita e leitura no mundo acadêmico. Tudo o que direi nada mais é que uma série de anotações orientadas para provocar essa conversação” (2003, p.102). Foi assim que juntei as anotações do início da pesquisa com o que estudo agora e com as sensações e sentimentos que me movem para pensar outras possibilidades a partir das curiosidades que surgiram durante o caminho.

A pesquisa e o produto dela resultante tiveram como primeiro passo plantar signos-férteis, como no projeto de qualificação, para que nascessem outras possibilidades e entrecruzamentos, que são múltiplos, infinitos, abundantes e plurais. E isso exigiu movimentos de parada para semear e outros de partida para abandonar fertilidades que se deixam plantar em outros espaços, pois a escrita possibilita o cultivo de sentidos que são incapturáveis, restando-nos apenas a contemplação2.

Por isso essa escrita é um misto de paradas, fertilidades, abandonos e de contemplação, caracterizado como uma construção artesã. Pois sempre há um limite para dizer/escrever e não dizer/não escrever, o incapturável, que faz da

2 Um dos abandonos foi sair do espaço pedagógico em que se configuram as escolas multisseriadas e transitar nos caminhos da Escola do Campo sem delimitar a ideia do pedagógico, que resultaria em outra forma de entender essa organização escolar. Deixo em aberto essa categoria de análise a fomentar outros espaços de estudo em olhar para as pessoas que compõem esses espaços e o que elas têm a dizer sobre suas experiências e lembranças, a constituir uma historicidade a partir do que foi vivido nas Escolas do Campo.

experiência3 essa coisa que toca, que atravessa e nem sempre pode ser dita, apenas sentida.

É isso que me atravessou quando iniciei as observações e visitas e me levou a perceber que as Escolas do Campo sempre estiveram presentes na minha trajetória como educadora especial. Desde que ingressei na profissão tenho uma ligação profissional e afetiva com a Escola do Campo, que até então estava adormecida em mim.

Quando iniciei meus atendimentos em uma Escola do Campo seriada, trabalhar nela me parecia ser a mesma coisa que estar numa escola urbana, pois os objetivos, conteúdos e todos os documentos escolares eram comuns ao que se tinha na escola da cidade, o que caracteriza a seriação.

A única diferença notada por mim era o local: um espaço amplo, sereno em que se podia ouvir os pássaros e, ao mesmo tempo, um lugar barulhento na hora da partida, com o roncar dos ônibus e as batidas de pés correndo em direção ao portão, com medo de ficar para trás, perder o ônibus que levava o mais próximo de suas casas. Sim! Eram crianças de quatro a doze anos que dividiam o mesmo espaço e pareciam também dividir as mesmas preocupações. Na Escola do Campo a vida me parecia pulsante, marcada pelos horários e pelos afazeres, mas, também dormente, ao estar aprisionada a determinadas rotinas que caracterizam o escolar comum a todas as instituições.

A Escola do Campo e o que acontece nela me movimentaram a pensar possibilidades em torno do que não estava tão visível, do que era silenciado, ou ainda, talvez não dito, por estarmos, às vezes, restritos às descrições e representações sobre a escola e sua organização, naturalizadas nas proposições pré-existentes e representativas do espaço escolar, onde tudo que figura a escola já foi dito: os horários, as enturmações, os intervalos, as tarefas diárias, os planejamentos, a organização das crianças, a avaliação...

Quando me coloco a pensar sobre o espaço da Escola do Campo e o que acontece nela recorro à noção de que aquilo que é dito não passa de uma representação que inventa tanto a escola como o que nela acontece. A invenção está nesse jogo de linguagem que, para Wittgenstein, segundo Hacker, são

3 A noção de experiência, aqui, inspira-se em Larrosa (2021), para quem a experiência é subjetiva, única, peculiar de cada pessoa, diferente do conhecimento científico, que é externo.

“práticas, atividades, ações e reações em contextos característicos, dos quais o uso regrado das palavras é parte integrante” (HACKER, 2000, p. 13). Isto significa que as descrições e as possíveis explicações constituídas em jogos de linguagem são uma forma metodológica e epistêmica de um modo de compreensão das práticas sociais, culturais e das próprias pessoas, por isso da Escola do Campo e do que acontece nela.

No decorrer da pesquisa, enquanto anoto e me atento ao que observo sobre o espaço na Escola do Campo a partir das visitas, percebo que é possível me afastar de interpretações ou descrições dessa escola com a qual não tinha uma aproximação, deixando sobressair, sem nenhum julgamento ou preconceito, o que as pessoas experienciaram e ainda sentem em relação às suas vivências na Escola do Campo multisseriada. Ter essa sensibilidade da escuta foi um exercício difícil e exigiu de mim um certo desnude de conceitos e comparações entre escolas urbanas e do campo, e ainda do campo seriada e multisseriada. Pensando nas palavras de Larrosa, “por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe” (LARROSA, 2014, p.

26).

Antes de partir para um campo analítico dos materiais e descrever detalhadamente os caminhos da pesquisa, sinto necessidade de colocar como essa temática me envolveu e fez ser objeto de pesquisa.

A maior aproximação com as Escolas do Campo se deu no momento em que passei a trabalhar na Secretaria Municipal de Educação do município de Caçapava do Sul, RS, em 2018, momento em que fui desafiada a acompanhar as Escolas do Campo que se organizavam de modo multisseriadas. Escolas que exigiam, a partir de necessidades levantadas pela Secretaria de Educação do município, a priori4, uma educadora especial, entendida aqui como especialista, a recuperar as aprendizagens, devido ao histórico de insucesso escolar.

Gostaria de destacar que antes de iniciar o trabalho de acompanhamento das Escolas do Campo multisseriadas, já havia trilhado uma caminhada na

4 O mundo acadêmico, e porque não especificamente o da pesquisa, está acostumado a conceber os objetos a serem trabalhados a priori tentando anteceder alguns pressupostos, como se fosse possível prever o que será pesquisado. Aqui, cito o termo me referindo ao que já estava afirmado, acordado em uma lógica Kantiana de resolver o problema a partir de uma solução premeditada e planejada. Movimentar-me ao adverso foi necessário para desconstruir essa lógica tão impregnada em nossa prática, ao educador, ao conhecimento, ao escolar, ao... (sentido de incompletude).

educação especial do município. Em 2010 terminei o curso de graduação em Educação Especial pela UFSM, e em 2012 fui nomeada como professora efetiva da Secretaria Municipal de Educação de Caçapava do Sul. Assumi uma Sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE) em uma Escola do Campo, tendo essa a característica de ser polo de encontro de múltiplas regiões da área rural do município, com estudantes sendo agrupados a partir do deslocamento via transporte escolar. Com a escola polo, o número de estudantes matriculados permitia que a organização da instituição fosse seriada.

Nessa primeira experiência profissional estive inserida, portanto, em uma instituição grande também caracterizada por oferecer escolarização em uma localidade em que há geração de mais de 4 mil empregos diretos e indiretos, e que se originou justamente para alfabetizar os filhos e os empregados das empresas de calcário que geram esses empregos. Uma escola afamada e tradicional no município, que me trouxe algumas experiências que forjaram o início de uma vida profissional ainda crua, mas que permite criar possibilidades e análises sobre os casos.

Na referida escola, à época, estudavam 250 estudantes recebidos de diferentes localidades do interior, mas também da cidade assim como a maioria dos professores. Na composição dos grupos de estudantes estavam presentes também alunos oriundos de algumas escolas multisseriadas que vinham terminar o ensino fundamental, especificamente o 6º ano, já que as multisseriadas encerram seu ciclo no 5º ano. Além desses alunos, outros já iniciavam sua escolarização na escola seriada devido ao fechamento recente de escolas multisseriadas em localidades próximas.

Quando recebíamos os estudantes na escola polo, em sua maioria apresentavam dificuldades em relação aos conteúdos e metodologias trabalhadas nas turmas seriadas. Haviam problemas de escrita e leitura, compreensão e lógica, situações essas que deixavam os professores incomodados e aflitos, tendo em vista que esperavam um perfil de estudante condizente, normalizado a uma regra cujo padrão era o urbano em relação ao ano escolar que estavam matriculados.

A normalização de um perfil discente regular, esperado e desejado pelo professor, me parece importante considerar aqui, pois é a partir desse lugar que:

A escola registra um número elevado de crianças com os mais variados tipos de diagnósticos e situações. Ela recebe cada vez mais sujeitos que causam certo estranhamento, certo incômodo, mas que nem sempre são considerados casos de inclusão. Esse lugar da “dificuldade de aprendizagem” é um espaço inseguro que produz desconforto e confronto constante com o “não saber” onde encaixar e, ao mesmo tempo, a necessidade do encaixe” (FABRIS, 2011, p. 37).

Nessa incessante busca pelo enquadramento dos estudantes, ou legitimação do não-aprender, o AEE e a Educação Especial eram procurados pela gestão pedagógica escolar. A expectativa em torno de uma avaliação das habilidades e competências dos alunos que originasse a constatação de alguma deficiência ou dificuldade do indivíduo se colocava como meta e poderia ser comprovada por testes e até mesmo encaminhamentos médicos. Falas como

“alguma coisa ele tem”, “não é normal um aluno no sexto ano não saber calcular as quatro operações” ou “ele é de família complicada” são rótulos que levam a produzir o pertencimento de um lugar no qual esses perfis devem se encaixar: no lugar da falta e no lugar da falha.

Todos aqueles, então, que apresentavam certo “desvio no padrão”

esperado acabavam sendo listados para uma avaliação na sala de AEE comigo.

Quando chegavam nesse espaço da escola, eu propunha a realização de atividades que envolvessem leitura, escrita, pensamento lógico-matemático e interpretação. No processo de avaliação percebia que os alunos não demonstravam grandes atrasos no desenvolvimento que pudessem sugerir alguma deficiência, mas era claro que eles não se adequavam ao padrão e critérios avaliativos docentes da escola organizada de forma seriada, levando a um discurso de defasagens em relação ao conhecimento formal, o que dificultava a inserção na nova escola e, por conseguinte, nas turmas seriadas.

São essas práticas discursivas que tem um lugar da verdade, do certo, que se naturalizam e se proliferam no espaço pedagógico e social,

São práticas discursivas que obedecem a regras e que se estruturam, as quais têm relação com outros discursos que articulados produzem saberes e naturalizam verdades, que se potencializam como mais verdadeiras em determinadas épocas e em decorrência de determinados acontecimentos (POSSA et al., 2012, p. 469).

Assim, com a minha experiência nessa escola, a primeira impressão pessoal que se configurava sobre as escolas multisseriadas era a de que elas não

davam conta de uma escolarização de sucesso, o que me levava a acreditar que realmente o fechamento delas tinha uma lógica fundada nessas questões de aproveitamento e aprendizagem. Um pensamento, uma verdade dentro do limite da prática que vivenciava como profissional em sete anos.

Em 2018 fui indicada pelas colegas professoras de Educação Especial para assumir a coordenação de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação de Caçapava do Sul. Um grande desafio que me propus aceitar e me colocou no lugar de quem precisava olhar de forma ampla todas as escolas municipais que tinham salas de AEE, as dificuldades enfrentadas pelos professores e pela gestão escolar e pedagógica, acompanhar e orientar os pais que me procuravam, além de dar conta das questões administrativas e burocráticas.

Quando assumi a Coordenação fui chamada pelo Secretário de Educação para visitar as Escolas do Campo, aquelas escolas multisseriadas, e com isso observar e avaliar como estavam as aprendizagens dos alunos, além de fazer um acompanhamento especial, caso fosse necessário.

Foi dessa forma que tive os primeiros contatos com as quatro Escolas do Campo organizadas de forma multisseriada em Caçapava do Sul. Permaneciam, assim, vivas e resistentes as escolas Lino Azambuja, Padre Fidêncio, José Luís Moreira e São Judas Tadeu5.

As impressões que registrei anteriormente sobre a organização multisseriada e a relação com os processos de avaliação da aprendizagem dos estudantes que havia experenciado no início da carreira profissional - o pensamento e verdade constituídos a partir da minha experiência na Escola do Campo seriada e a relação com a suposta qualidade de ensino - se esmaeceram.

Vivi um momento muito importante em minha profissão, que foi colocar em tensão o que vinha construindo a partir das minhas experiências. Qual era e de onde advinha meu pré-conceito em relação à Escola do Campo multisseriada? De que forma estaria reproduzindo isso? Não sabia explicar.

5 São essas escolas que delineiam a dissertação, espaços os quais visitei e nos quais me inspirei a partir das entrevistas e conversas com as comunidades. Elas compõem esse chão de pesquisa, de fotos e inspirações, principalmente as duas escolas na qual trabalho como educadora especial: EMEF Padre Fidêncio e EMEF Lino Azambuja.

Ao longo das visitas e dos encontros fui me aproximando, experimentando, conversando, questionando, deixando florescer outros sentidos… as escolas multisseriadas tinham espaço, tinham movimento, tinham vida, tinham cor e cheiro. Cheiro de baunilha, ao servir o mingau quentinho na merenda escolar, pois a cozinha era muito próxima à sala de aula; Cheiro de bergamota que os alunos compartilhavam no recreio, cheiro da tinta guache na folha de papel, cheiro dos morangos trazidos por uma mãe que os vendia no portão… Como era livre, desprendido, independente tudo isso! Como poderia existir um lugar que permitisse tantos sentidos?

Mas, aos poucos, os cheiros pareciam se dissipar… A volta à aula depois da bergamota ao sol já não tinha tanta poesia. Eram textos a serem copiados, folhas a serem preenchidas, filas separando um ano do outro, quadro negro em duas paredes, e alunos virados uns de costas para os outros… Porém, isso tinha cheiro também… cheiro da docilidade de quem é comandado pelo outro, do poder que se exerce com o outro, das amarras conteudistas que não permitem aos outros sentidos perceberem o que há de múltiplo, de natural e de vida acontecendo. Principalmente, tinha a sensação de um espaço em que todos estavam individualmente sós, novamente divididos por séries, filas e conteúdos, apesar de toda coletividade que caracteriza esse espaço do campo.

A disciplina6, ali na sala de aula multisseriada, operava segundo Ferrari (2012), como

uma modalidade do poder uma forma mesma do poder. Para tanto, ela se caracteriza por métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo e que realizam a sujeição de suas forças, impondo-lhes uma relação de docilidade/utilidade (FERRARI, 2012, p.402).

E assim aconteciam as aulas: não era possível enxergar para além do que estava programado. Para tanto se fazia necessário separar os anos a partir de fileiras, ou de grupos virados uns para os outros, pois com essas práticas se aproveitava o máximo de conteúdos a serem trabalhados e, para isso, os estudantes precisariam estar organizados da mesma forma e habituados a essas práticas, pois o escolar exige a ordem e a classificação. Nessa lógica não há espaço para outras possibilidades.

6 A disciplina, inspirada nos estudos foucaultianos, tem como função fazer a apropriação do corpo com a finalidade de aproveitar o máximo de suas potencialidades individuais.

Lá, nos espaços das Escolas do Campo, em alguns momentos dos processos e das práticas, não via as diferenças e os modelos de separação, pelo menos física, das crianças por idade e por ano. Via que as crianças, quando estavam nos espaços livres, fora da sala de aula, compartilhavam saberes, brincavam juntas a partir da singularidade de cada uma, demostrando a potência de vidas em movimento. Percebia que o mundo da infância das crianças dos anos iniciais na escola multisseriada me fazia colocar outras perguntas no lugar daquelas que me fazia quando avaliava, na sala de recursos, essas mesmas crianças que lá chegavam na escola seriada e eram massacradas pelo poder comparativo e classificatório da seriação.

Não cabiam mais as perguntas fundadas em: o quê? Qual? Por quê?

Chegavam e eram avaliadas com defasagem na aprendizagem dos conteúdos escolares, crianças como aquelas que brincavam nas áreas livres das escolas, que compartilhavam suas experiências, que sabiam viver em um coletivo, mas que tinham em comum uma origem multisseriada pouco apreciada na escola seriada.

Com a ideia de compreensão, me despedia aos poucos das perguntas e tentava entender como essas situações/comparações/afirmações aconteciam.

Assim, não podia acomodar mais os motivos iniciais pelos quais, eu, a professora de Educação Especial, havia sido demandada e enviada para as escolas do campo multisseriadas. Não era possível agora estar nas escolas multisseriadas para avaliar as “defasagens dos alunos” ou possíveis deficiências a eles delegadas.

Essas inquietações foram mobilizadoras para minha entrada no mestrado profissional. Precisava pensar sobre essas questões e é isso que apresento a partir desta dissertação. Nesse sentido faço recortes relacionados principalmente ao espaço da Escola do Campo e as experiências nela vividas e contadas. Então, o problema de pesquisa surge de uma pergunta que impulsiona minha vontade de saber: como histórias das Escolas do Campo em Caçapava do Sul podem constituir pistas para a construção coletiva de uma escola de educação no campo no presente?