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MIGRAÇÃO CONTEMPORÂNEA: DESLOCAMENTOS E FORMAS DE MOBILIDADE

1.2 Dados e contextos: a visibilidade do problema do tráfico de pessoas

1.2.2 Armadilhas no percurso migratório

No tráfico de pessoas, o migrante pode atravessar a fronteira legal ou ilegalmente215, e

aquele pode ser interno ou transnacional, mas a relação do traficante com o traficado não acaba quando este chega ao local de destino, pois se inicia uma relação de comercialização e exploração. O migrante torna-se vítima e, de acordo com o Protocolo de Palermo, deve ser protegido de seus exploradores, não podendo ser julgado em processos criminais caso tenha infringido alguma norma ao ingressar no país de acolhida216. Nos casos mais “clássicos” divulgados pela mídia, por ONGs e agências governamentais, não há pagamento antecipado da travessia, mas a aquisição de uma dívida que é cobrada posteriormente, com acréscimos que a tornam, por vezes, impagável, e a sua cobrança passa a ser o motor inicial da exploração da vítima, podendo ocorrer cárcere privado, confisco de passaporte e violência.

213 BLANCHETTE e SILVA, As rotas da PESTRAF: empreendedorismo moral e a invenção do tráfico de pessoas

no Brasil, op. cit., p.24-25.

214 Ver PISCITELLI, Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de pessoas, op.

cit., p.39; CASTILHO, A criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero?, op. cit.; e KEMPADOO, op. cit.

215 O que pode induzir a erros, e a situação de tráfico de pessoas ser confundida com tráfico de migrantes. Ver

RODRIGUES, Thaís de Camargo. O tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual e a questão

do consentimento. 204p. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. 216 Ibidem.

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Entre os dados coletados na pesquisa de campo realizada na Holanda, em 2013, há o caso de uma brasileira cujo acompanhamento foi feito pela Fundação Tenda até o momento em que passou a ser tratado pelas autoridades desse país. O caso foi acompanhado por Marcos Viana217, 46 anos, pastor e empresário, duas filhas, ensino médio completo, natural de Minas Gerais. Marcos migrou para a Holanda em 1997, aos 30 anos, para trabalhar; na época da pesquisa de campo atuava (e ainda atua) como liderança religiosa e social na Fundação Tenda, uma ONG que não conta com financiamento externo: realiza o trabalho através de uma equipe interdisciplinar de voluntários que fazem orientação e aconselhamento nos âmbitos jurídico, social, psicológico e pastoral, dando apoio sobretudo a brasileiros em situação difícil na Holanda — em suas palavras, “desde o passaporte que a pessoa perdeu ou até mesmo a pessoa que disse que fugiu de um cativeiro desses”.

Segundo Marcos, tratava-se de uma vítima de tráfico de pessoas para exploração sexual, e ocorreu em 2008 ou 2009 (por atender várias demandas, não soube precisar o ano), em uma cidade do norte da Holanda: a mulher ficou presa em um clube durante três meses, “presa literalmente naquele processo, porque quando ela chegou e tomou conhecimento que o que ela veio fazer não foi ser recepcionista de um pequeno hotel, mas sim ser prostituta, ela rejeitou imediatamente”.

A mulher não sofreu violência física, mas foi enganada e mantida em cárcere privado, e teve o passaporte retido. Vivendo em situação de vulnerabilidade, nos três meses que ficou presa no local era coagida a prostituir-se; acabou adoecendo e, ao se restabelecer, as pressões aumentaram, pois queriam receber os valores pagos com a viagem: “eles fizeram a seguinte proposta pra ela: ‘Bom, faz o seguinte: você trabalha uma noite, fatura o valor que nós pagamos pela sua passagem e algumas outras despesas, isso vai dar. Uma noite que você trabalhar, você fatura isso’. E ela falou: ‘Tá bom’”.

Coagida, ela concordou em prostituir-se, para recuperar o passaporte, pagar o que “devia” e libertar-se, mas combinou que atenderia clientes uma única noite. Ela conseguiu o dinheiro, mas eles não cumpriram o acordo:

E ela, muito feliz, foi apresentar as contas, e disse: “Agora me dá meu passaporte”. Eles bateram nas costas dela e disseram: “Agora nós sabemos que você pode trabalhar”. Aí, ela se desesperou, ficou doente de novo [...]. Quando ela começou a se restaurar, ela começou a fazer alguns servicinhos lá, limpeza: “Pelo menos isso você tem que fazer”.

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Em uma manhã, pouco depois do encerramento do expediente do clube, a responsável pela organização do local pediu que ela trancasse a porta; ela fingiu que fechou e devolveu a chave, e quando as mulheres dormiram ela fugiu. Sem saber para onde ir, entrou numa estação de trem e pegou o primeiro que passou:

Ela entrou pra dentro de uma plataforma, justamente a plataforma que dava acesso a Amsterdam, e encontrou na plataforma uma pessoa que falava português de Portugal, e que era agente da IOM [International Organization for Migration]. [...] Quando falou com ele em português — que a única coisa que ela podia fazer — e recebeu uma resposta... Ele disse: “Calma lá, miúda, calma, calma”. E ele também tinha uma certa dificuldade, que é holandês que fala português, e ela: “Me ajuda. Me ajuda”. Aí, ele colocou ela no trem, de dentro do trem ele me ligou: “Olha, tô numa situação aqui, me parece que é isso, isso e isso”. E aí eu fui tomando as providências nesse meio tempo, que era uma viagem de mais ou menos uns quarenta minutos [...].

A mulher foi incluída no programa de proteção a vítimas de tráfico de pessoas da Holanda, pois começou a colaborar com a polícia do país. Marcos não soube informar como foi que se desenrolou processo, se ela permaneceu no país e obteve a proteção necessária, uma vez que ele não pôde acompanhar o caso:

Outra coisa: ela denunciou também, na época, de que houve, nesse período, vários controles da polícia no local, e elas eram avisadas com antecedência de que haveria o controle. Então o envolvimento de pessoas nessa máfia que fazem parte dos órgãos que deveriam reprimir isso, é evidente. Então você já imaginou o tamanho dessa bomba, né. Por exemplo: vai haver uma blitz e você, com antecedência, sabe que tem uma blitz, você tem um informante que faz parte.

Falhas e desvios de conduta na fiscalização de locais oficiais de oferta de serviços sexuais, nesse caso, são percebidos por Marcos como a existência de uma “máfia”, uma vez que houve fiscalização no local em que a mulher estava e não foram detectadas irregularidades. O caso foi configurado como tráfico de pessoas pelas autoridades holandesas. A mulher, embora em cárcere privado, não foi submetida a maus-tratos, mas foi submetida à violência psicológica e coagida a trabalhar, seja na prostituição, seja nos serviços domésticos, sob o pretexto de que teria que quitar a dívida adquirida com a viagem. Quando arrecadou o suficiente para pagar a passagem, isso não satisfez os traficantes, pois a intenção não era libertá-la, mas explorá-la. Um caso grave que, sem dúvida, viola a dignidade e os direitos humanos. Casos

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semelhantes não foram relatados pelos interlocutores na Guiana, na Guiana Francesa e no Suriname, mas, na Holanda, segundo Marcos, houve outros casos em que ele foi acionado para fazer o primeiro contato com a suposta vítima de tráfico para fins de prostituição e para serviços domésticos. Os casos que descreveu envolvem fuga, resgate, o acolhimento de sua parte, mas ele não tinha informações dos procedimentos efetuados pelas autoridades; apresentou apenas informações preliminares, do atendimento inicial, porque não lhe era permitido saber como se dava o atendimento das supostas vítimas, se foi adequado ou se elas simplesmente foram deportadas após prestarem informações:

Mais ou menos uns três ou quatro meses, apareceu uma senhora que... ela afirma que tava presa numa casa. [...] Ela fugiu da casa. E ela se negou a dizer onde era e tudo, mas eu, com o foco em ajudar, não questionei a veracidade dos fatos e propus a ela um encaminhamento pra protegê-la, que é a primeira coisa a fazer: uma denúncia na polícia. [...] E ela não queria muito se expor. Eu falei: “Não, a sua privacidade, a partir do momento que eu vou te encaminhar pra polícia, até eu mesmo vou ter dificuldade a ter acesso a você”. Porque tem um procedimento aqui, conhecido como B9, que é um procedimento que protege vítimas do tráfico de pessoas de forma geral, tanto sexual como do trabalho. E ela aceitou fazer a denúncia, e depois disso eu perdi contato com ela, porque automaticamente eles isolam a pessoa.

Em sua narrativa fica evidente que, depois que a pessoa aceita fazer a denúncia, ela é isolada e seu caso segue em sigilo, não há como saber quais os procedimentos seguidos. Um dos casos que ele narrou era ligado a serviços domésticos e envolvia duas vítimas, e uma delas retornou ao Brasil — pelo que contou, pode-se pensar que ela voltou por não cooperar com as autoridades locais, porque a outra vítima conseguiu o direito de permanecer na Holanda em razão de sua colaboração —, e não dá para saber se sua estada no país foi demarcada pelo período dos procedimentos legais do caso:

– O caso anterior foi um caso de... absurdo até, mas foi tipo escravidão: duas jovens estavam escravizadas dentro de uma casa e, além de escravizadas, maltratadas. Serviço doméstico. E uma criou coragem, fugiu depois de tomar uma pancada com um objeto — não sei se foi de ferro —, que abriu uma brecha na testa, e ela entrou num restaurante, e a pessoa do restaurante identificou como uma brasileira; eles ligaram para o consulado, o consulado me acionou e eu fui buscá-la. Essa também, depois de muita resistência, ela aceitou fazer o B9, ou seja, essa denúncia, que automaticamente também livraria a outra que ficou. Então, quando ela foi levada pra polícia, a polícia imediatamente acionou uma equipe, que foi até o local e resgatou a menina. – As duas estavam irregulares?

– As duas estavam irregulares. [...] Uma conseguiu o direito de permanecer na Holanda, porque o B9 dá uma abertura pra isso, enquanto o processo de

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investigação se dá; e a outra já até retornou pro Brasil. Mas os relatos são absurdos, coisas do tipo tortura, noites inteiras de tortura psicológica, além de marcadas com ferro quente. Coisa fora do normal. Água quente jogada nas meninas. Essa, principalmente, que ficou, que era mais frágil e não reagia muito, essa foi mais vitimada. [...] Ela passou um processo aqui, de acompanhamento; ela ficou numa casa aqui, que é uma casa de endereço secreto, né, e a gente sabe que a estrutura oferece todo acompanhamento psicológico, mas são marcas na alma, que ficam.

A coação para que a mulher atue na prostituição de maneira forçada ou trabalhe em serviços domésticos — sob o pretexto de uma dívida, sob ameaça de denunciar sua situação irregular no país às autoridades, etc., e mesmo o desconhecimento da língua e de direitos — parece surtir mais efeito em territórios em que as exigências migratórias e a fiscalização são mais rígidas. Dois casos encontrados em campo mostram formas de coação para que a mulher atue na prostituição.

Ângela218, 40 anos, vendedora, dois filhos, ensino médio completo, natural de Santarém (Pará), em 2011 fazia dezenove anos que vivia na Guiana Francesa. Quando foi, acompanhou outra brasileira, que morava em Caiena e costumava fazer a travessia: vendeu tudo o que tinha para pagar as despesas com a viagem e o atravessador. A mulher lhe prometeu que a hospedaria em sua casa até que conseguisse um emprego, mas alguns dias depois da chegada lhe propôs o trabalho como prostituta em um bar de sua propriedade. Como ela não aceitou, foi expulsa da casa pela mulher, que se mudou e disse que não a ajudaria mais. Como gastara todas as economias com a travessia da fronteira, Ângela pediu abrigo para um vizinho da casa onde se hospedara, um francês; ele a acolheu e ela passou a fazer os serviços domésticos, para pagar a estadia. Posteriormente começaram uma relação amorosa, e ela conseguiu regularizar sua situação administrativa no país. Tiveram dois filhos e, na época da pesquisa de campo (quando a filha tinha 16 anos e o filho, 19), embora dividissem o mesmo teto, estavam separados. Ângela contou que dormiam em quartos separados, que evitava chegar cedo em casa, para não falar com ele: não saíra da casa porque considerava que pertencia aos dois, que tinha direitos em relação a ela, pois investira muito na sua construção — esperava que ele saísse ou repassasse sua parte em dinheiro, o que ele se recusava a fazer. Ângela trabalhava na loja de uma francesa, ganhava o suficiente para ser independente. Com a ajuda do ex-companheiro ela conseguiu se estruturar e sair da vulnerabilidade em que a mulher a deixou quando a expulsou na perspectiva de que se submetesse à exploração sexual.

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A outra tentativa de prostituição forçada ocorreu na Holanda, e o caso foi considerado pelas autoridades do país como tráfico internacional de pessoas. Aline219, 25 anos, garçonete, sem filhos, ensino superior incompleto, é natural de Belo Horizonte (capital de Minas Gerais). Quando tinha 2 anos, ela e a irmã mais nova (de 1 ano) foram entregues pelos pais a um orfanato, onde ficaram até completarem 11 e 10 anos, respectivamente; depois, por determinação judicial, a mãe, já separada do pai, teve que acolhê-las em casa: como o casal não assinara os papéis liberando-as para adoção, a mãe foi chamada para assiná-los ou assumir a guarda das duas. Posteriormente, Aline foi morar com o pai, a avó de 69 anos, uma tia e uma prima; a irmã ficou com a mãe (e se casou ainda adolescente). Mesmo morando com o pai, quase não tinham contato: alcoólatra, ele saía do trabalho e, antes de ir para casa, ia ao bar. A casa em que moravam era de uma outra tia, que acabou vendendo, e todos tiveram que procurar onde morar — Aline e o pai foram morar sozinhos, em uma casa alugada. Quando ela estava com 14 anos, ele foi trabalhar na cidade de São Paulo, e não retornou; por não pagar o aluguel, ela teve que desocupar a casa. Morou dois meses na rua, depois foi para a casa de uma amiga mais velha, mãe de três filhos, dos quais ela cuidava quando aquela ia trabalhar. Após alguns meses nessa casa, aproximou-se de um vizinho, que tinha então 25 anos; não demorou e foram morar juntos, na casa da mãe dele. Ao completar 17 anos, por sofrer violência doméstica, Aline decidiu voltar para a casa da mãe, mas a convivência das duas não deu certo. Ao completar 18, foi embora para a cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhou em serviços domésticos, depois como garçonete. No Rio voltou a estudar: fez o supletivo para concluir o ensino médio e um curso de inglês, pois no local em que trabalhava circulavam muitos estrangeiros. Ainda no Rio, reatou a relação com a mãe, que a visitou algumas vezes; com o pai, perdeu o contato. Em 2010 voltou para Belo Horizonte, alugou uma casa, matriculou-se num curso de Licenciatura em Letras, em uma faculdade privada — e conheceu um rapaz, com quem namorou por algum tempo. Quando o relacionamento terminou, ele, que a ameaçava de morte, colocou fogo na casa dela, que perdeu tudo o que tinha. Com dificuldade em recomeçar a vida em sua cidade natal e com medo do namorado, retornou ao Rio em 2011:

Eu fiquei com medo, né, porque eu pensei: “Poxa, a polícia não prende ele? Eu já falei com a polícia que ele tá me ameaçando, eles não prendem ele?”. E, aí, eu não tive escolha, eu juntei minhas coisas e falei: “Vou voltar pro Rio, que no Rio eu tenho muito mais amigos do que em Belo Horizonte”. E voltei pro Rio, e ele ficou lá, mas a polícia não fez mais nada. E eu tive que pagar todo o prejuízo da casa, o dinheiro que eu tinha, né. Eu paguei o conserto da casa, ele não me ajudou em nada. Eu voltei pro Rio.

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No Rio, procurando emprego, recebeu a proposta de trabalhar num restaurante em Amsterdam, de um holandês de origem turca, Zeki, a quem um conhecido com quem trabalhara como garçonete a apresentou. Zeki disse que poderia lhe conseguir um trabalho regular em seu restaurante quando retornasse à Holanda, e ela aceitou a proposta; tirou o passaporte e ficou aguardando a passagem:

Foi recomendação, entendeu? [...] Era amigo de um dos meus conhecidos. [...] Ele falou: “Olha, eu tô voltando pra Holanda, assim que eu chegar lá eu já vou ajeitar tudo, e você pode vir”. [...] Ele mandou a passagem, entendeu?, mandou tudo direitinho, mandou os contatos dele. E quando eu cheguei... Eu vim sozinha, eu peguei o voo do Rio de Janeiro pra Portugal. [...] chegou lá [Portugal], eles me perguntaram e tudo, eu falei: “Olha, eu tô indo pra Holanda”. Só que eu não podia dizer pra eles que eu tava indo trabalhar, porque com visto de turista — que ele já tinha me dito que eu não ia poder trabalhar [legalmente] — eu não podia falar pro governo, pra Imigração, que eu ia vir pra trabalhar; tinha que falar que eu ia vir como turista. Quando eu chegasse lá, ele ia ajeitar pra mim os papéis, para que eu trabalhasse legalmente no restaurante. [...] Cheguei em Portugal, eu falei direitinho: “Eu tenho uns amigos, estou indo lá visitar eles”. “Ah, sim. O.k.” Ligaram pra ele, que era o contato, tudo certo.

As despesas da viagem foram pagas por Zeki, e ela pagaria a dívida parceladamente, quando começasse a trabalhar. Ao chegar em Amsterdam, Zeki lhe apresentou um homem, que a hospedaria enquanto ele providenciava sua regularização no país. Esse homem morava sozinho (esporadicamente recebia a visita da filha, uma criança de aproximadamente nove anos), falava alemão e muito pouco de inglês, e o diálogo entre ambos se limitava a cumprimentos e gestos, e umas poucas palavras nesse último idioma quando ela perguntava sobre sua contratação:

Chegando na Holanda, ele tava me esperando [...]; ele veio com outro homem. [...] E ele falou: “Olha, Aline, por enquanto você vai ficando na casa desse homem, entendeu?, até eu acertar todos os papéis pra você começar a trabalhar”. Eu falei: “Não tem problema, eu fico. Mas eu vou ajudando aqui com as coisas, não tem problema. Eu vou ajudando com a limpeza, o que eu puder fazer eu vou fazer” — pra manter uma base de respeito ali, né. “Não, tá bom, tá bom.”

Esperando pela vaga prometida, Aline ficou quase dois meses nessa casa (tempo em que pôde circular por Amsterdam sozinha e conhecer outras pessoas); conforme o tempo passava,

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começou a se preocupar com a possibilidade de se esgotar o tempo de sua permanência como turista:

Ele me mostrou o quarto que eu ia dormir, ele me tratou superbem de início, sabe?, só que, depois, o tempo foi passando. Eu fiquei um mês, e eu perguntando do trabalho. “O teu amigo vai ajeitar, tá ajeitando os papéis.” Aí, passou dois meses, e eu continuei perguntando: “Ué, o que tá acontecendo, cadê o emprego? Eu não vou começar a trabalhar?”. Aí, esse homem falou: “Eu vou conversar com Zeki” — que é o nome dele — “eu vou conversar com ele, ver o que tá acontecendo”. Eu tentando comunicar, né. Eu falei: “Eu tenho que falar com o moço”, tal, fazendo os gestos, pra ele entrar em contato pra ver se o homem que me prometeu o emprego conversava comigo. E, aí, a gente ia conversando: “Não, tá dando tudo certo, tá quase lá, eu tô quase ajeitando os papéis, você vai poder trabalhar no restaurante”. Foi nessa aí que eu comecei a desconfiar. Eu falei: “Alguma coisa tá dando errado, porque tá demorando muito. Eu vou terminar o meu tempo de permissão aqui” — que era três meses o visto de turista. E aí eu fui ficando, e já tava quase terminando o tempo do visto. Eu fiquei com medo.

E então ele começou a pressioná-la para que pagasse o que devia, e a maneira sugerida de ganhar dinheiro foi ela trabalhar em uma vitrine da Red Light District, mas ela se recusou e pediu ajuda para fugir:

Eu podia sair, eu saía [...], me divertia, conheci pessoas lá em Raverla, sabe?, fiz até amizade lá. E voltava. Só que, quando foi chegando no final do segundo mês, o dono da casa, ele começou a me tratar de uma forma diferente. Ele já falava, assim, que eu ia ter que arrumar dinheiro, que ele queria o dinheiro. [...] Ele falou: “Eu quero dinheiro do voo que você tá me devendo”. Eu falei assim: “Olha, eu vou trabalhar, eu quero te pagar, mas o Zeki não tá adiantando o trabalho pra mim, entendeu?”. E ele: “Não, eu não quero saber, eu quero o dinheiro”. Aí, ele ligava pro Zeki, o Zeki falou comigo: “Olha, Aline, você tem que esperar, eu vou ajeitar o negócio do serviço, entendeu?, mas você tem que esperar”. [...] Só que o homem não queria esperar. Ele