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7 – As deusas vulneráveis: Hera, Deméter e Perséfone

No documento As Deusas e a Mulher.pdf (páginas 110-115)

As três deusas vulneráveis são Hera, deusa do casamento, Deméter, deusa do cereal, e Perséfone, conhecida como Core, ou jovem, e como rainha do inferno. Essas três deusas personificam arquétipos que representam os papéis tradicionais das mulheres – esposa, mãe e filha. Elas são as deusas orientadas para o relacionamento, cujas identidades e bem-estar dependem de um relacionamento significativo. Expressam as necessidades de afiliação das mulheres.

Em suas mitologias, essas três deusas foram estupradas, raptadas, dominadas ou humilhadas pelos deuses. Cada uma sofreu quando uma ligação foi rompida ou desonrada.

Cada uma experienciou a impotência, e cada uma reagiu a seu modo - Hera com raiva e ciúme, Deméter e Perséfone com depressão. Cada uma demonstrou sintomas que se assemelham psicologicamente a doenças. As mulheres nas quais essas deusas existem como arquétipos são do mesmo modo vulneráveis. O conhecimento de Hera, Deméter e Perséfone pode proporcionar às mulheres insights rumo à natureza de suas necessidades de relacionamentos e rumo ao padrão de sua reação à perda.

Quando Hera, Deméter e Perséfone são arquétipos dominantes, a atração motivacional é o relacionamento, mais do que o empreendimento, a autonomia ou uma nova experiência. O enfoque da atenção é nos outros, não num objetivo exterior ou estado interior. Conseqüentemente, as mulheres identificadas com essas deusas são atenciosas e receptivas com os outros, são motivadas pelas recompensas do relacionamento - aprovação, amor, atenção - e pela necessidade do arquétipo: casar (Hera), alimentar (Deméter) ou ser dependente (Perséfone enquanto Core). Para essas mulheres, cumprir os papéis tradicionais das mulheres pode ser pessoalmente significativo.

Qualidade da consciência: como luz difusamente radiante

Cada uma das três categorias de deusa tem uma qualidade característica de consciência. A qualidade associada com os arquétipos das deusas vulneráveis é a da "percepção difusa". Irene Claremont de Castillejo, analista junguiana, descreveu esse tipo de percepção em seu livro Knowing Woman como "atitude de aceitação, conhecimento da unidade de toda a vida, e prontidão para o relacionamento".1 Essa qualidade da consciência exemplifica as pessoas, de ambos os sexos, orientadas para o relacionamento.

Penso nessa qualidade de consciência como análoga à luz da lâmpada de uma sala de estar, que ilumina e lança uma quente incandescência a tudo o que está dentro de seu raio. É uma atenciosidade generalizada que permite a uma pessoa perceber sensíveis nuanças, uma receptividade ao tom emocional numa situação, uma

1 Irene Claremont de Castillejo, Knowing Woman. Putnam's (para a C. G. Jung Foundation for

percepção dos sons de fundo como também tudo o que se encontre no centro da atenção no primeiro plano.

A percepção difusa explica a consciência perscrutadora que permite a um pai ouvir uma criança choramingar por entre os rumores da conversa, ou que possibilita à esposa saber que seu marido está contrariado, sentindo-se mal ou sob pressão quando ele entra em casa, algumas vezes até mesmo antes que ela tenha consciência disso. Essa espécie de consciência receptiva e difusa pode levar à abrangência ou à gestalt de uma situação. Em contraste, a "consciência enfocada", característica de Ártemis, Atenas e Héstia - as três deusas virgens - se concentra num elemento com a inclusão de tudo o mais.

Quando tive dois filhos que ainda há pouco usavam fraldas aprendi como o comportamento das mães pode ser modificado pelos filhos a fim de mantê-las num estado de percepção difusa. A maior parte do tempo em que estava ao redor de meus filhos, eu permanecia sintonizada com eles, num estado mental receptivo em que minha mente não estava focalizada. Descobri que quando eu mudava de modos e me concentrava atentamente em algo diferente deles, eles invariavelmente me interrompiam.

Por exemplo, se eles estivessem calmamente brincando juntos na sala ao lado, e eu me ocupasse em limpar a pia, pôr em ordem as roupas ou até mesmo fazer alguma leitura leve, havia chances de que eu poderia continuar fazendo a atividade "desatenta" por algum tempo. Mas se decidisse tirar proveito da sossegada hora de folga, para ler o jornal ou estudar alguma coisa que me exigisse atenção enfocada, parecia que um ou dois minutos mais tarde pequeninos pés sempre entravam correndo para interromper. Parecia que as crianças tinham percepção extra-sensorial de quando meu estado mental atento-a-elas e explorador-de-detalhes era substituído pela atenção enfocada, que os "dessintonizava".

Tentar enfocar entre contínuas interrupções é frustrante. O efeito imediato era desencorajar a consciência enfocada, e portanto modificar meu comportamento mental.

Quando começava a compreender a situação, tentava uma experiência que você também poderia tentar. Espere por uma dessas épocas calmas quando um pré- escolar está contente e acordado fazendo alguma coisa sem você. Note que ele pode ocupar-se com alguma coisa que não requer concentração. Depois verifique o relógio e mude da consciência difusa para a consciência enfocada em algum outro tipo de tarefa. Observe quanto tempo você pode enfocar nessa tarefa antes que a criança o interrompa. Não apenas as criancinhas reagem dessa maneira quando a mulher importante de suas vidas as tira de sintonia para dar enfoque a algo que lhe diz respeito. Minhas pacientes mulheres também têm descrito incidentes incontatáveis com outras pessoas. Por exemplo, quando a mulher orientada para o relacionamento se matricula num curso ou retorna à faculdade como estudante graduada, uma inevitável fonte de atrito entre ela e os que com ela convivem - marido, amante, filhos mais velhos - são suas intromissões e interrupções quando ela estuda. Ela própria muitas vezes tem problema ao se concentrar em seu trabalho: o estado de mente

receptivo e difuso, que permite à mulher atender aos outros, também lhes permite que a distraiam facilmente.

E quando ela se concentra, o homem de sua vida pode inconscientemente reagir a seu trabalho, como se este fosse um rival que a afasta dele. Sua reação é à perda de sua atenção, que até então era parte do meio ambiente familiar. Ele pode estar reagindo à ausência temporária de Hera ou de Deméter na mulher, e esta pode não estar respondendo a ele como de costume. E como se uma tépida luz não vista tenha sido desligada, fazendo-o sentir de modo vagamente ansioso e inseguro, que alguma coisa está errada. E as coisas ficam pior depois das intromissões dele "por nenhum bom motivo", porque a resposta usual a interrupções do enfoque é a irritação. Portanto, é provável que ela reaja com contrariedade ou raiva, fundamentando assim os sentimentos de rejeição. Cada casal que eu conheço - onde o homem realmente apoia as aspirações acadêmicas ou a carreira da mulher, e onde ele é realmente amado e importante para ela - tem achado útil reconhecer esse padrão gerador de atrito. Tão logo ele não se ressinta pessoalmente que ela mude da consciência difusa para a consciência enfocada, o padrão de suas interrupções injustificadas e sua conseqüente raiva e ressentimento se transformam, e a tensão se dissolve.

Vulnerabilidade, vitimação e consciência difusa

As deusas vulneráveis foram vitimadas. Hera foi humilhada e abusada por seu marido Zeus, que não levou em conta sua necessidade de fidelidade. O elo de Deméter com sua filha foi ignorado, como também o seu sofrimento quando Perséfone foi raptada e mantida prisioneira no mundo das trevas. Deméter e Perséfone foram ambas estupradas. Como as mulheres humanas em situações em que se tornam indefesas, todas as três deusas vulneráveis mostravam sintomas psiquiátricos.

As mulheres que se assemelham interiormente a essas três deusas e que têm a percepção difusa como modo de consciência são também suscetíveis de vitimação. Em contraste, as deusas associadas com a capacidade de definir limites e apontar para objetivos (Artemis), ou de pensar através dos problemas e planejar estratégias (Atenas), que requerem consciência enfocada, são as deusas virgens e invulneráveis. As mulheres que com elas se identificam são menos prováveis de serem vítimas. Para evitar ser vitimada, a mulher precisa parecer enfocada e confiante. Deve caminhar rapidamente, como se estivesse com pressa de chegar em algum lugar, pois mostrar-se sem objetivo ou distraída convida a aborrecimentos. Embora a mulher receptiva e acessível ajude a tornar os relacionamentos e os lares calorosos, levar essas mesmas qualidades pelo mundo fora pode conduzir a intrusões indesejáveis. Qualquer mulher que se encontre sozinha, esperando por alguém ou sentada sozinha num restaurante ou numa sala de espera, pode esperar ser abordada por homens que presumem que qualquer mulher desacompanhada seja "caça" permitida para conversa ou atenção. Se ela for receptiva e afável, então sua afabilidade pode provocar suposições de que ela seja um objeto sexual prontamente disponível. Pode receber propostas sexuais inesperadas e tornar-se vítima de tormento sexual ou de raiva quando recusa. Dois fatores a predispõem à vitimação: a interpretação errônea da receptividade ou da afabilidade como convite ao sexo, e a suposição geral de que qualquer mulher solitária pode ser abordada e está potencialmente disponível.

Outro fator que contribui é a suposição social de que as mulheres são propriedades. Essa suposição proíbe os homens de fazer comentários, falar com, ou até mesmo "perdoar" a mulher acompanhada, enquanto eles são livres para agir de outro modo. As mulheres que são como Deméter e Perséfone, que se sentem vulneráveis ou desprotegidas, muitas vezes têm sonhos de ansiedade. Podem sonhar que homens estão penetrando em seus quartos ou casas, ou que homens sorrateiros ou agressivos as estão pondo em perigo ou seguindo-as. Algumas vezes os homens hostis em seus sonhos são familiares: homens de cuja crítica elas têm medo, homens que as intimidam por ameaças físicas abusivas ou por explosões de raiva. Se na infância a mulher sentiu-se desprotegida ou foi verdadeiramente abusada, as figuras que a atacam nos sonhos são muitas vezes da infância, ou elas ocuparam espaço nos meios familiares da infância.

Nem todas as mulheres que são orientadas para o relacionamento, mulheres do tipo da deusa vulnerável, têm sonhos de vítima. Como as fases das próprias deusas, as mulheres que se assemelham a essas deusas podem passar por um período de vida durante o qual sentem-se seguras e fora de perigo. Sua vida onírica pode ser da mesma forma agradável. Contudo, algumas mulheres têm sonhos de vítima em boas épocas, como que para lembrá-las de sua vulnerabilidade. Em qualquer caso, os sonhos das mulheres vulneráveis são cheios de pessoas e freqüentemente acontecem dentro de edifícios. Tais sonhos evocam tanto memórias de vínculos emocionais passados como descrevem relacionamentos presentes em termos simbólicos.

Padrões de vida e comportamento

Cada uma das três deusas vulneráveis tem em sua mitologia uma fase feliz e realizada; uma fase durante a qual ela foi vitimada, sofreu e foi sintomática; e uma fase de restauração ou transformação. Cada uma representa um estágio na vida da mulher através do qual ela pode passar rapidamente ou no qual pode permanecer por certo espaço de tempo.

A mulher que descobre ser como Hera, Deméter ou Perséfone pode aprender mais sobre si própria, sobre suas forças, suscetibilidades e potencialidades negativas, compreendendo os paralelos que existem entre ela e essas deusas arquetípicas. Se pode aprender predizer seus próprios problemas, pode se livrar de algum sofrimento. Por exemplo, a mulher tipo Hera pode evitar muito sofrimento ao não se permitir ser impelida insensatamente ou prematuramente para o casamento. Precisa aprender como julgar o temperamento e a capacidade de amar antes de se casar, porque seu destino será determinado por seu marido. Da mesma forma, a mulher tipo Deméter deve ser clara quanto às circunstâncias em que tornaria grávida e deve tomar precauções antes, porque a deusa nela presente - sentida como um instinto maternal compulsivo - não tem nada a ver com as conseqüências. E uma jovem mulher Perséfone faria bem em se mudar do lar para a faculdade ou trabalho, de tal forma que tenha oportunidade de crescer para além da submissa filhinha da mamãe.

Desenvolvendo-se além das deusas vulneráveis

Embora as deusas vulneráveis não personifiquem qualidades que conduzem à realização, a mulher na qual esses arquétipos vivem pode crescer para além deles.

Ela pode descobrir suas qualidades de Atenas ou de Ártemis, ou descobrir que competência e competição no mundo vêm através do desenvolvimento do que a ela parece o aspecto masculino de si mesma. E pode explorar dimensões espirituais e sensuais associadas com Héstia, deusa da lareira, e com Afrodite, deusa do amor. Os três capítulos seguintes aprofundam as mitologias e características de Hera, Deméter e Perséfone. Cada capítulo descreve os padrões arquetípicos que personifica, e cada um mostra como uma deusa não só influencia a vida das mulheres nas quais ela vive, mas também afeta os outros que estão relacionados com tais mulheres, como cônjuges, pais, amigos, amantes ou filhos.

Toda mulher que já sentiu ímpeto de se casar, ou teve um filho, ou sentiu que estava esperando que alguma coisa acontecesse para mudar sua vida - o que inclui exatamente todas as mulheres - descobrir-se-á aparentada com uma das deusas vulneráveis em algum ponto de sua vida.

No documento As Deusas e a Mulher.pdf (páginas 110-115)