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1.1. CHARAUDEAU E O PROCESSO DE ENCENAÇÃO DO ATO DE LINGUAGEM

1.1.3. AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS

Apesar das restrições (ou “cláusulas”) relativas ao contrato comunicacional, o sujeito falante contaria, sempre, com um espaço de estratégias, dispondo de uma relativa margem de manobra para realizar o seu projeto de fala. Essa margem pode variar – sendo maior ou menor – de acordo com as especificidades da situação de comunicação,

e se traduz na escolha dos modos de dizer (como dizer?), os quais implicam comportamentos discursivos, ou seja, enunciadores (Eue’s) destinados a produzir determinados efeitos no destinatário.

Nesse sentido, segundo suas possibilidades e finalidades, o sujeito enunciador poderia optar – de modo mais ou menos consciente – por utilizar operações como narrar, descrever, argumentar; instaurar o seu discurso na primeira, segunda ou terceira pessoas (produzindo, respectivamente, “efeitos de subjetividade”, “interlocução” ou “objetividade”); mostrar explícita ou implicitamente a sua adesão a certos valores, representações, estereótipos; em suma, dar a entender infinitas atitudes discursivas convenientes e/ou apropriadas ao contexto de interação. Em alguns momentos, Charaudeau (1992 e 1994) agrupa as estratégias discursivas em três domínios de possibilidade, comportando um vasto conjunto de operações discursivas. Assim, os elementos lingüísticos poderiam configurar estratégias de:

• Legitimidade: ocorre quando se está diante de toda e qualquer operação lingüístico-discursiva que instaura a posição de autoridade do sujeito. Assim, o enunciador, de alguma maneira, poderia deixar indícios discursivos da validade/legalidade da sua posição, enquanto profissional, candidato a um cargo político, porta-voz de uma moral, chefe de família etc16. Nesse sentido, ele

mostra o seu vínculo legítimo ao contrato de comunicação em funcionamento no presente enunciativo. Poderíamos dizer, também, que a legitimidade está em consonância com um certo histórico, com uma experiência acumulada com o tempo e que se deixa revelar (ou é forjada) pela linguagem.

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• Credibilidade: da mesma forma, ocorre diante de elementos discursivos propensos a instaurar uma posição de verdade do sujeito, com a qual poderia/deveria ser tomado a sério. Trata-se, por um lado, de fazer passar a

autenticidade das idéias e/ou fatos asseverados. Por outro, dar explicações e provas daquilo que foi dito, explicitando as causas e as conseqüências. Assim,

temos uma série de procedimentos como: a atenção ao detalhe, a precisão descritiva, os discursos reportados (do senso comum, do especialista, da ciência...), as analogias, os exemplos etc.

• Captação: trata-se aqui das estratégias e artifícios de linguagem capazes de

tocar a sensibilidade do interlocutor, fazendo-o entrar no quadro de pensamento

do sujeito falante. Para tanto, é necessário captar o universo de crença e os estados emocionais do interlocutor em questão, fazendo apelo a imaginários discursivos ou, em outros termos, a valores e representações sociais integrantes dos saberes, desejos e anseios do destinatário do discurso. Assim, pode-se, dentre outras coisas, seduzi-lo ou agradá-lo com brincadeiras; tratar de seus temas preferidos (que o alegra, o empolga...), de temas polêmicos (que o choca, o deixa perplexo, paralisado, chama a sua atenção...) etc. Pode-se falar aqui, seguramente, em espetáculo (caso das mídias), dramatização, demagogia...

De um modo mais associado ao processo de encenação do ato de linguagem, sistematizado anteriormente através do quadro enunciativo, a noção de estratégia é colocada da seguinte forma:

(...) la notion de stratégie, elle, repose sur l’hypothèse que le sujet communiquant (JEc) conçoit, organise et met en scène ses intentions de façon à produire certains effets – de conviction ou séduction – sur le sujet interprétant (TUi), pour amener

celui-ci à s’identifier – consciemment ou non – au sujet destinataire idéal (TUd) construit par Jec17. (Charaudeau, 1983:50)

As estratégias, portanto, são passíveis de produzir efeitos de discurso no interlocutor, mas deve-se atentar para a diferença entre os efeitos possíveis, que poderíamos repertoriar num dado discurso, e os efeitos produzidos concretamente junto ao sujeito interpretante (Tui). Nesse último caso, entraríamos (ou deveríamos entrar) no âmbito dos estudos sobre a recepção, que exige uma metodologia toda particular, que não pretendemos tratar neste trabalho. Caberia dizer também que o termo estratégia não deve ser entendido, neste quadro teórico, como uma ação necessariamente premeditada. Como já ressaltamos, o ato de linguagem não é totalmente consciente, visto que é subsumido por um certo número de rituais sócio-linguageiros.

Com todo o conteúdo acima, podemos dizer enfim que as reflexões de Charaudeau oferecem um instrumental teórico apto a analisar vários tipos de discurso, fato possibilitado por (re)considerar um “elemento” há muito tempo excluído, pelo estruturalismo, das teorias lingüísticas: o próprio sujeito. Na Semiolingüística, “(...) a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis, são levados em consideração”18. (Charaudeau, 2001:27) Como vimos, o ato de

linguagem passaria a ter de acordo com o autor quatro sujeitos ou instâncias enunciativas: duas situacionais (Euc e Tui) e duas discursivas (Eue e Tud). Apesar de nossa adesão ao pensamento de Charaudeau, expresso nas linhas anteriores, teríamos

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A noção de estratégia é baseada na hipótese de que o sujeito comunicante (Euc) concebe, organiza e põe em cena suas intenções de maneira a produzir certos efeitos – de convicção ou sedução – sobre o sujeito interpretante (Tui), para levá-lo a se identificar – conscientemente ou não – ao sujeito destinatário ideal (Tud) construído por Euc. (Esta e as futuras traduções são nossas)

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Não queremos dizer, com isso, que essa teoria foi a primeira a reconsiderar o sujeito. Antes de Charaudeau, como este mesmo afirma (2001:27), outros teóricos como Jakobson, Benveniste (...) já haviam resgatado esse “elemento”, abordando-o muito além de uma simples realidade gramatical.

uma pequena ressalva a fazer. Ela diria respeito às duas dimensões instituídas pela encenação do ato de linguagem – os níveis situacional e discursivo –, mais precisamente sobre como Charaudeau as nomeia em certo momento: circuito externo e circuito

interno, respectivamente.

A escolha desses termos, a nosso ver, daria margem a um mal entendido que gostaríamos de evitar: de que existiria uma realidade “extralingüística” (ou “pré- discursiva”) demarcada do discurso a ser analisado, instituindo-o mecanicamente. Acreditamos que tal “realidade”, supostamente externa, onde se encontram os seres empíricos e as variáveis psicossócio-culturais, também é plenamente constituída de linguagem. Tal afirmativa seria pertinente na medida em que o homem (ou analista) só poderia acessar esse “mundo real” através do material simbólico que o reveste e, concomitantemente, com o material semiótico que constitui a sua própria subjetividade, isto é, vivências e competências lingüístico-discursivas.

Sendo assim, no dito circuito interno, teríamos sobretudo um discurso atravessado/abastecido por uma complexa discursividade ao redor, à qual ele se liga visceralmente e revela enquanto acontecimento. Para o analista, então, cada corpus instituiria uma busca dessa “parafernália simbólica” que o constituiu (esse mesmo

corpus) como discurso, e que, por sua vez, também foi constituída por ele. Nesse

sentido, preferimos pensar que a dita discursividade (ao redor do objeto estudado), assim como as circunstâncias sociais reveladas por ela, não poderiam ser encaradas como algo externo, mas sim como elementos que já fariam parte da substância do discurso, de modo acentuado ou não.

Queremos enfatizar que a nossa ressalva a Charaudeau se dá apenas quanto à escolha das ditas terminologias (externo/interno), a qual poderia dar margem à crença de que existiriam duas realidades separadas (uma situacional e outra discursiva), e que a primeira seria isenta de um material simbólico. O próprio autor nos mostra em alguns momentos que o seu pensamento não seria esse, quando, por exemplo, afirma: “(...) esta dupla realidade do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem é uma

totalidade que se compõe de um circuito externo (fazer) e de um circuito interno

(dizer), indissociáveis um do outro”. (Charaudeau, 2001:28) (grifo nosso). Assim, os termos em negrito, que salientam o pensamento do autor (e o nosso), entrariam em contradição com as terminologias externo/interno, que preferimos evitar posteriormente em nossa análise do canto orfeônico por questões de coerência19. Acreditamos que na

próxima seção, dedicada aos conceitos de interdiscurso e arquivo, poderemos precisar melhor o problema aqui evocado.

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